terça-feira, 2 de novembro de 2021

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.3) - ... Ele mesmo diante do pelotão de fuzilamento

  Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(3.3)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





continuando...



Aquela opinião, que Úrsula só compreendeu alguns meses depois era a única que ele podia expressar sinceramente no momento, não só no que diz respeito ao casamento, mas a qualquer assunto que não fosse a guerra. Ele mesmo diante do pelotão de fuzilamento, não haveria de entender muito bem como se fora encadeando a série de sutis mas irrevogáveis casualidades que o tinham levado a esse ponto. A morte de Remedios não lhe produzira a comoção que temia. Foi mais um surdo sentimento de raiva que paulatinamente se dissolveu numa frustração solitária e passiva, semelhante à que experimentara na época em que estava resignado a viver sem mulher. Voltou a afundar-se no trabalho, mas conservou o costume de jogar dominó com o sogro. Numa casa amordaçada pelo luto, as conversas noturnas consolidaram a amizade dos dois homens. “Case outra vez, Aurelito”, dizia-lhe o sogro. “Tenho seis filhas para você escolher.” Certa ocasião, às vésperas das eleições, o Sr. Apolinar Moscote voltou de uma das suas frequentes viagens preocupado com a situação política do país. Os liberais estavam decididos a se lançar à guerra. Como Aurelíano tinha nessa época noções muito confusas das diferenças entre conservadores e liberais, o sogro lhe dava lições esquemáticas. Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e aos legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade suprema. Os conservadores, ao contrário, que tinham recebido o poder diretamente de Deus, pugnavam pela estabilidade da ordem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de Cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades autônomas. Por sentimentos humanitários, Aureliano simpatizava com a atitude liberal, no que se refere aos direitos dos filhos naturais, mas, de qualquer maneira, não entendia como se chegava ao extremo de fazer uma guerra por coisas que não se podiam tocar com as mãos. Pareceu-lhe um despropósito que o seu sogro fizesse vir para as eleições seis soldados armados com fuzis, sob o comando de um sargento, num povoado sem paixões políticas. Não só chegaram, mas foram até de casa em casa, confiscando armas de caça, facões e até facas de cozinha, antes de repartir entre os homens maiores de vinte e um anos as cédulas azuis, com os nomes dos candidatos conservadores, e as cédulas vermelhas, com os nomes dos candidatos liberais. Na véspera das eleições, o próprio Sr. Apolinar Moscote leu uma ordem que proibia, desde a meia-noite de sábado, e por quarenta e oito horas, a venda de bebidas alcoólicas e a reunião de mais de três pessoas que não fossem da mesma família. As eleições transcorreram sem incidentes. Desde as oito da manhã de domingo, instalou-se na praça a urna de madeira guardada pelos seis soldados. Votou-se com inteira liberdade, como pôde comprovar o próprio Aureliano que esteve quase o dia inteiro com o sogro, vigiando para ninguém votasse mais de uma vez. As quatro da tarde, o rufar de um tambor na praça anunciou o término da jornada, e o Sr. Apolinar Moscote selou a urna com uma etiqueta atravessada pela sua assinatura. Nessa noite, enquanto jogava dominó com Aureliano, ordenou ao sargento rasgar a etiqueta para contar os votos. Havia quase tantas cédulas vermelhas quanto azuis, mas o sargento só deixou dez vermelhas e completou a diferença com azuis. Depois voltaram a selar a urna com uma etiqueta nova e no dia seguinte cedo levaram-na para a capital da província. “Os liberais irão à guerra”, disse Aureliano. O Sr. Apolinar não abandonou as suas pedras de dominó. “Se você está dizendo isso por causa da troca das cédulas, não irão”, disse. “Sempre se deixam algumas verbas para não haver reclamação.” Aureliano compreendeu as desvantagens da oposição. “Se eu fosse liberal”, disse, “iria à guerra por causa do negócio das cédulas.” O sogro o olhou cima dos óculos.

— Ah, Aurelito — disse — se você fosse liberal, ainda que fosse meu genro, não teria visto a troca das cédulas.

O que na verdade causou indignação no povoado não foi o resultado das eleições, mas o fato de os soldados não terem devolvido as armas. Um grupo de mulheres falou com Aureliano para que conseguisse do sogro a devolução das facas de cozinha. O Sr. Apolinar Moscote lhe explicou, muito em particular, que os soldados tinham levado as armas confiscadas como prova de que os liberais estavam se preparando para a guerra. Ficou alarmado com o cinismo da declaração. Não fez nenhum comentário, mas certa noite em que Gerineldo Márquez e Magnífico Visbal falavam com outros amigos do incidente das facas, perguntaram-lhe se era liberal ou conservador e Aureliano não vacilou:

— Se fosse preciso ser alguma coisa, eu seria liberal — disse porque os conservadores são uns trapaceiros.

No dia seguinte, por insistência dos amigos, foi visitar o Doutor Alirio Noguera para que o curasse de uma pretensa no fígado. Não sabia sequer o sentido da patranha. O Doutor Alirio Noguera chegara a Macondo poucos anos antes, com uma maleta de comprimidos sem sabor e uma divisa médica que não convenceu ninguém: “Uma doença cura a outra.” Na verdade era um farsante. Detrás da sua inocente fachada de médico sem prestígio, escondia-se um terrorista que tapava com polainas de meia-perna as cicatrizes que deixaram nos seus tornozelos cinco anos de cadeia. Capturado na primeira aventura federalista, conseguiu fugir para Curaçao disfarçado na roupa que mais detestava neste mundo: uma batina. Ao fim de um prolongado desterro, enganado pelas exaltadas notícias que os exilados de todo o Caribe traziam a Curaçao, embarcou numa escuna de contrabandistas e apareceu em Riohacha com os vidrinhos de comprimidos que não eram mais que açúcar refinado, e um diploma da Universidade de Leipzig falsificado por ele mesmo: Chorou de desilusão. O fervor federalista, que os exilados definiam como um estopim já quase aceso, tinha-se dissolvido numa vaga ilusão eleitoral. Amargurado pelo fracasso, ansioso por um lugar seguro onde esperar a velhice, o falso homeopata se refugiou em Macondo. No estreito quartinho abarrotado de frascos vazios que alugou num canto da praça, viveu vários anos dos doentes sem esperanças que, depois de terem provado tudo, se consolavam com comprimidos de açúcar. Seus instintos de agitador permaneceram em repouso enquanto o Sr. Apolinar Moscote foi uma autoridade decorativa. Passava o tempo em recordações e na luta contra a asma. A proximidade das eleições foi o fio que lhe permitiu encontrar de novo o novelo da subversão. Estabeleceu contato com a gente jovem do povoado, que carecia de formação política, e se empenhou numa sigilosa campanha de instigação. As numerosas cédulas vermelhas que apareceram na urna, e que foram atribuídas pelo Sr. Apolinar Moscote à mania de novidade da juventude, eram parte do seu plano: obrigou os discípulos a votarem, para convencê-los de que as eleições eram uma farsa. “A única coisa eficaz”, dizia, “é a violência.” A maioria dos amigos de Aureliano andava entusiasmada com a ideia de liquidar a ordem conservadora, mas ninguém tinha se atrevido a incluí-lo nos planos, não só pelos seus vínculos com o delegado, mas também pelo temperamento solitário e evasivo. Era mais que sabido, além disso, que tinha votado azul por indicação do sogro. De modo que foi uma simples casualidade que revelasse os seus sentimentos políticos, e foi uma mera pontinha de curiosidade o que veio a lhe dar na veneta de visitar o médico, para tratar de uma dor que não tinha. Na pocilga cheirando a teia aranha canforada, deu de cara com uma espécie de lagarto empoeirado cujos pulmões assoviavam ao respirar. Antes de fazer qualquer pergunta, o doutor o levou à janela e examinou a parte de dentro da pálpebra inferior. “Não é aí”, disse Aureliano, conforme tinham ensinado. Apertou o fígado com ponta dos dedos e acrescentou: “É aqui que tenho a dor que não me deixa dormir.” Então o Doutor Noguera fechou a janela sob o pretexto de que havia muito sol, e lhe explicou em termos simples por que era um dever patriótico assassinar os conservadores. Durante vários dias, Aureliano carregou um vidrinho no bolso da camisa. Tirava-o de duas em duas horas, punha três comprimidos na palma da mão e jogava-os na boca para dissolvê-los lentamente na língua. O Sr. Apolinar Moscote caçoou da sua fé na homeopatia, mas os que estavam no complô reconheceram nele mais um dos seus. Quase todos os filhos dos fundadores estavam implicados, embora nenhum soubesse concretamente em que consistia a ação que os mesmos tramavam. Entretanto, no dia em que o médico velou o segredo a Aureliano, este tirou o corpo fora da conspiração. Embora estivesse mais do que convencido da urgência de liquidar com o regime conservador, o plano o horrorizou. O Doutor Noguera era um místico do atentado pessoal. O seu sistema se reduzia a coordenar uma série de ações individuais que, num golpe de mestre de alcance nacional, liquidasse com os funcionários do regime e as suas respectivas famílias, sobretudo as crianças, para exterminar o conservadorismo na semente. O Sr. Apolinar Moscote, sua esposa e suas seis filhas, evidentemente, estavam na lista.

— O senhor não é liberal coisa nenhuma — disse Aureliano sem se alterar. — O senhor não passa de um magarefe.

— Nesse caso — replicou o doutor com a mesma calma — devolva o vidrinho. Você já não precisa dele.

Apenas seis meses mais tarde é que Aureliano soube que o doutor o tinha desacreditado como homem de ação, por ser um sentimental sem futuro, com um temperamento passivo e uma clara vocação solitária. Trataram de o cercar, temendo que denunciasse a conspiração. Aureliano tranquilizou-os: não diria uma palavra, mas na noite em que fossem assassinar família Moscote encontrá-lo-iam defendendo a porta. Demonstrou uma decisão tão convincente que o plano foi adiado por tempo indeterminado. Foi por esses dias que Úrsula consultou a sua opinião sobre o casamento de Pietro Crespi e Amaranta, e ele respondeu que a época não estava para pensar nestas coisas. Há uma semana que trazia sob a camisa uma pistola arcaica. Vigiava os amigos. Ia de tarde tomar café com José Arcadio e Rebeca, que começavam a arrumar a sua casa, e desde as sete ficava jogando dominó com o sogro. Na hora do almoço conversava com Arcadio, que já era um adolescente monumental, e o encontrava cada vez mais exaltado com a iminência da guerra. Na escola, onde Arcadio tinha alunos mais velhos que ele, misturados com crianças que mal começavam a falar, tinha-se alastrado a febre liberal. Falava-se em fuzilar o Padre Nicanor, converter o templo em escola, implantar o amor livre. Aureliano procurou arrefecer os seus ânimos. Recomendou-lhes discrição e prudência. Surdo ao seu raciocínio sereno, ao seu sentido da realidade, Arcadio reprovou em público a sua debilidade de temperamento. Aureliano esperou. Por fim, no início de dezembro, Úrsula irrompeu transtornada na oficina.

— Rebentou a guerra!

Realmente, rebentara há três meses. A lei marcial imperava em todo o país. O único a sabê-lo era o Sr. Apolinar Moscote, que não deu a noticia nem à sua mulher enquanto não chegava o pelotão do exército que haveria de ocupar o povoado de surpresa. Entraram de mansinho antes do amanhecer, com duas peças de artilharia ligeira puxadas por mulas, e instalaram o quartel na escola. Impôs-se o toque de recolher às seis da tarde. Fez-se uma revista mais drástica que a anterior, casa por casa, e desta vez levaram até as ferramentas de agricultura. Levaram arrastado o Doutor Noguera, amarraram-no a uma árvore da praça e o fuzilaram sem qualquer julgamento. O Padre Nicanor tratou de impressionar as autoridades militares com o milagre da levitação e um soldado lhe deu uma coronhada na cabeça. A exaltação liberal se apagou num terror silencioso. Aureliano, pálido, hermético, continuou jogando dominó com o sogro. Compreendeu que apesar do seu título atual de chefe civil e militar da praça, o Sr. Apolinar Moscote era outra vez uma autoridade decorativa. As decisões quem tomava era um capitão do exército que todas as manhãs recolhia um tributo extraordinário para a defesa da ordem pública. Quatro soldados, a mando seu, arrebataram de casa uma mulher que tinha sido mordida por um cão raivoso e a mataram a coronhadas em plena rua. Um domingo, duas semanas depois da ocupação, Aureliano entrou na casa de Gerineldo Márquez e com a sua parcimônia habitual pediu uma caneca café sem açúcar. Quando os dois ficaram sozinhos na cozinha Aureliano imprimiu à voz uma autoridade que nunca lhe havia conhecido. “Prepare os rapazes”, disse. “Vamos para a guerra.” Gerineldo Márquez não acreditou.

— Com que armas? — perguntou.

— Com as deles — respondeu Aureliano.

Na terça-feira, à meia-noite, numa operação tresloucada vinte e um homens menores de trinta anos, chefiados por Aureliano Buendía, armados com facas de mesa e ferros afiados tomaram de assalto a guarnição, apoderaram-se das armas e fuzilaram no pátio o capitão e os quatro soldados que tinham assassinado a mulher. Nessa mesma noite, enquanto se escutavam as descargas do pelotão de fuzilamento, Arcadio foi nomeado chefe civil e militar da praça Os rebeldes casados mal tiveram tempo de despedir das esposas, que abandonaram aos seus próprios recursos. Foram embora ao amanhecer, aclamados pela população liberada do terror, para se unir às forças do general revolucionário Victorio Medina, que, segundo as últimas noticias, andava pelo rumo de Manaure. Antes de ir embora, Aureliano tirou o Sr. Apolinar Moscote de um armário. “O senhor fique tranquilo, meu sogro”, disse a ele. “O novo governo garante, sob palavra de honra, a sua segurança pessoal e a da sua família.” O Sr. Apolinar Moscote teve dificuldade de identificar aquele conspirador de botas altas e fuzil pendurado no ombro com quem tinha jogado dominó até as nove da noite.

— Isto é um disparate, Aurelito — exclamou.

— Disparate nenhum — disse Aureliano. — É a guerra. E não torne a me chamar de Aurelito, porque já sou o Coronel Aureliano Buendía.




continua página 67...


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