quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (6b.) Parece que me reconheceu ...

 O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


6b.



Parece que me reconheceu quando lhe segurei e apertei a mão pela última vez. Como seus dedos se haviam descamado! Na manhã seguinte vieram participar-me que Marie tinha morrido. Não houve quem pudesse conter as crianças. Elas lhe enfeitaram o caixão com flores e lhe puseram uma grinalda na cabeça. O pastor, na igreja, não cometeu nenhuma aviltação desta vez. Não foi um funeral concorrido, havia pouca gente, atraída pela curiosidade; mas quando o caixão teve de ser carregado para fora, a criançada investiu para o carregar. E conquanto não fossem suficientemente fortes para aguentar o peso - sozinhas, ajudaram a levá-lo, e caminhavam atrás do ataúde, chorando. Desde então, as crianças zelaram pela sepultura de Marie. Plantaram rosas, em toda volta, e cada ano a cobriam de flores.

Foi, porém, depois do enterro, que eu fui mais perseguido pelos aldeões, por causa da criançada, O pastor e o mestre-escola os atiçavam. As crianças ficaram estritamente proibidas de se encontrarem comigo, e Schneider empregou todo o seu esforço para que tal proibição fosse efetiva. Mas nós nos víamos, assim mesmo; comunicávamo-nos a distância, por sinais. Enviávamo-nos pequenos bilhetes. Por fim as coisas se aplainaram. Mas foi esplêndido.

Todo esse tempo. Essa perseguição ainda me aproximou mais das crianças. No último ano, o pastor e Thibault estavam quase reconciliados comigo. E Schneider argumentava muito comigo a respeito do meu sistema” pernicioso para com as crianças. Como se eu tivesse algum “sistema”! Por fim. Schneider revelou um muito estranho pensamento, o que fez pouco antes de eu vir embora. Confessou me que tinha chegado à conclusão de que eu era uma completa criança, eu próprio. Nem mais nem menos do que uma criança; que eu era adulto apenas na cara e no tamanho, mas que, no desenvolvimento, na alma, no caráter, e talvez até na inteligência, não tinha crescido, e que permaneceria sempre assim, mesmo que vivesse até aos sessenta!... Ri-me muito. Ele estava errado, é lógico, pois não sou nenhuma criança. Mas em uma coisa ele tem razão.

Não gosto de ser como as pessoas crescidas. Notei isso, desde muito. E não gosto, porque não sei como agir diante delas. Digam-me seja o que for, por mais gentis que sejam comigo, sempre me sinto de certo modo oprimido diante delas e fico medonhamente alegre quando posso voltar para os meus companheiros; e os meus companheiros têm sido sempre as crianças, não porque eu próprio seja uma criança, mas porque sempre me senti atraído por elas. Quando eu era novato na aldeia, ao tempo em que empreendia melancólicos passeios pela montanha, sozinho, e me acontecia, especialmente por volta do meio-dia, encontrar o bando barulhento saindo da escola, a correr, com suas sacolas e com suas lousas, entre gritos, jogos e risadas, imediatamente a minha alma corria para eles. Não sei como se dava, mas a verdade é que tinha uma espécie de intensa e feliz sensação cada vez que os encontrava. Ficava parado, quieto, sorria com felicidade vendo-lhes as pequeninas pernas sempre voando por aí afora, meninas e meninos correndo juntos, com seus sorrisos e com suas lágrimas (pois muitos deles armavam rixas, choravam, interrompiam as brigas, passavam a brincar de novo, à saída da escola, de volta para casa) e isso me fazia esquecer todos os meus lúgubres pensamentos. Depois do que, nos três últimos anos, eu nunca pude compreender como e por que há gente triste. O centro de minha vida foram as crianças. Não contava ter de deixar a aldeia e nem me passava pelo espírito que um dia teria de regressar à Rússia.

Pensava permanecer sempre lá. Mas por fim acabei vendo que Schneider não podia continuar me conservando consigo. Foi então que as coisas viraram subitamente, e tão importantes foram elas em sua evidência, que o próprio Schneider instou comigo para vir embora e garantiu minha volta. Vou examinar essas coisas e aconselhar-me com alguém. Minha vida talvez mude completamente. Deixei muita coisa lá, muita, mesmo! Ao tomar o trem, pensei: “Vou agora me encontrar com o mundo. Ignoro tudo, por assim dizer, mas uma vida nova começou para mim”. Tomei a resolução de fazer a minha tarefa resoluta e honestamente. Deve ser duro e difícil viver no mundo. Em primeiro lugar, resolvi ser cortês e sincero como todo o mundo. “Ninguém deve esperar mais do que isso, de mim. Talvez aqui também me olhem como uma criança; não faz mal”. Todo o mundo me toma por um idiota e isso também pela mesma razão. Outrora estive tão doente que realmente parecia um idiota. Mas posso eu ser idiota, agora, se me sinto apto a ver, por mim próprio, que todo mundo me toma por um idiota? Quando cheguei, pensei: “Bem sei que me tomam por um idiota; todavia tenho discernimento e eles não se dão conta disso!...” Muitas vezes tive este pensamento. Mal cheguei a Berlim, recebi algumas cartinhas que as crianças tinham conseguido me escrever, e então compreendi quanto gosto de crianças. A primeira carta dá sempre muita saudade. Como as crianças lamentavam a minha ausência! E todavia tinham tido um mês, de antemão; para se prepararem para minha partida. “Léon s’en va, Léon s’en va pour toujours!” Como antes, encontrávamo-nos sempre na cascata e falávamos da nossa separação. E, certas vezes, tão radiantes como outrora! Era só quando nos separávamos, à noitinha, que elas me abraçavam e beijavam com mais calor do que o faziam antigamente. Uma ou outra vinha me ver sozinha e em segredo, simplesmente para me beijar e abraçar sem ser diante das demais. Quando vim embora, elas todas, todo o bando me acompanhou à estação. A estação da estrada de ferro distava da aldeia cerca de uma verstá.

Esforçavam-se por não chorar, mas algumas não se puderam conter e soluçavam alto, principalmente as meninas. Apressamo-nos para não chegar atrasados; mas aqui e além, uma delas saía correndo de uma azinhaga, pulava para os meus braços, beijava-me, obrigando toda a procissão a parar, simplesmente para isso. E embora tivéssemos pressa, parávamos, esperando que este, ou aquele, me dissesse adeus. Quando me acomodei e o trem partiu, todas elas exclamaram “Hurra!” e permaneceram lá até perderem o trem de vista. Eu também não tirava os olhos delas... E agora lhes digo, quando entrei aqui e olhei para os rostos tão doces das senhoritas - eu agora estudo o rosto de todo mundo, perfeitamente! – e lhes ouvi as primeiras palavras, meu coração sentiu luz pela primeira vez, desde a Suíça. E então pensei comigo que talvez eu seja uma pessoa de sorte. Sei bem que nem sempre a gente encontra pessoas com quem logo simpatize! E não é que vim para aqui diretamente da estação e as encontrei?

Sei bem que a gente se peja de falar do seu próprio sentimento com qualquer um, mas lhes falei sem sentir nenhum pejo. Sou muito insociável. e, provavelmente, não voltarei a vê-las tão cedo. Não tomem isso como desconsideração. Nem estou dizendo isso por não dar valor a esta amizade, e não pensem, muito menos ainda, que me considerei ofendido por qualquer coisa. As senhoritas me perguntaram a respeito da impressão que tive do rosto de cada uma e o que teria eu notado neles. Terei muito prazer em responder. Vós, Adelaída Ivánovna, tendes um rosto feliz, o mais simpático dos três. Além de serdes muito bonita, a gente verifica, olhando-vos, “que tendes o rosto de uma extremosa irmã”. Vosso contato é simples e alegre. mas tendes especial habilidade em ver dentro dos corações. Eis como o vosso rosto me impressionou. Vós, Aleksándra Ivánovna. tendes também um rosto belo e doce; mas talvez haja nele uma secreta perturbação. Vosso coração, certamente, é dos mais bondosos, mas não é alegre. Há qualquer peculiaridade em vosso rosto. algo do que vemos na Madona de Holbein, em Dresde. Bem. quanto ao vossos rosto, isto basta. Acertei? Eu, pelo menos, acho que sois assim. Mas, pelo vosso rosto, Lizavéta Prokófievna - ele se voltou repentinamente para a Sra. Epantchiná - pelo vosso rosto distingo perfeitamente que sois uma criança em tudo, em tudo, no bem e no mal igualmente, a despeito de vossa idade.

Aborrece-vos, dizer-vos eu isso? Já esclareci, e bem, o que penso a respeito das crianças. E não penseis que foi a minha simplicidade que me fez falar tão sinceramente sobre o rosto de cada uma. Oh! Absolutamente, não! Talvez haja algum propósito bem meu no que acabo de fazer!



continua página 069...



_____________________


Leia também:

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (1a.) Em dada manhã...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (1b.) Parecia estar ainda doente...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (2a.) O General Epantchín vivia em casa própria
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (2b.) Tais visitas não são atribuição minha.
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (3a.) O General Iván Fiódorovitch Epantchín...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (3b.) Míchkin, sentado no canto...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (4a.) Míchkin, sentado no canto..
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (4b.) Afanássii Ivánovitch...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (5a.) A Sra. Epantchiná era muito ciosa...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (5b.) Um jumento? Isso é originalíssimo!
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (5c.) Até então estivera contemplando Agláia...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (6a.) Estão todas me olhando ...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (6b.) Parece que me reconheceu ...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (7a.) Quando o príncipe acabou de falar...

Nenhum comentário:

Postar um comentário