Ópera do malandro
Ópera do malandro
INTRODUÇÃO
Luz no produtor, de smoking, à frente da cortina fechada
PRODUTOR
Prezados espectadores, boa noite. Alguém já disse que, quando o artista sente a necessidade de explicar sua arte ao público, um dos dois é burro. É excusado dizer que não pretendemos arremessar semelhante adjetivo sobre a distinta plateia. Quanto a nós, mesmo correndo o risco de endossar tal qualificação, achamos por bem dirigir-lhes umas palavrinhas à guisa de introdução. Eu pessoalmente, como produtor deste espetáculo, devo dizer que ele representa uma nova vereda para a nossa companhia teatral. Acredito que é tempo de abrirmos os olhos para a realidade que nos cerca, que nos toca tão de perto e que às vezes relutamos em reconhecer. E a nossa companhia chegou à conclusão que é chegada a hora e a vez do autor nacional, esse profissional sempre às voltas com intrincados problemas que o impedem de se comunicar mais amiúde com seus conterrâneos e, não raro, de viver dignamente do ofício que um dia resolveu abraçar. Pois bem. Após longa e persistente pesquisa, logramos encontrar uma peça de autor ainda inédito em nossos palcos mas que goza de palpável prestígio nas chamadas rodas de malandragem da noite carioca. E estou certo de que não há desdouro algum para o curriculum da companhia que aqui represento em montar esta "Ópera do Malandro", cujo autor eu gostaria de chamar neste momento ao palco. Com vocês, João Alegre! (João Alegre entra no palco vestido de malandro carioca) Boa noite, João! Devo dizer que Alegre abriu mão dos direitos autorais relativos ao espetáculo desta noite, permitindo que a bilheteria revertesse integralmente para as obras caritativas da Morada da Mãe Solteira que, como todos sabemos, é uma organização que vem prestando inestimáveis serviços à nossa sociedade. E neste instante eu tenho o prazer de chamar ao palco a presidente da Morada da Mãe Solteira, sra. Vitória Fernandes de Duran... Onde está dona Vitória? Ah, sim, lá vem vindo ela... Os senhores que contribuíram para o brilho desta noitada beneficente certamente conhecem as muitas virtudes da senhora Vitória. . . Boa noite, dona Vitória! (Puxa aplausos)
VITÓRIA
Muitíssimo obrigada! Saibam todos que o orgulho é todo meu em ter esta chance de vincular o nome da Morada da Mãe Solteira ao de uma companhia que só tem feito abrilhantar o Teatro com "T" maiúsculo em nosso país e no exterior!
PRODUTOR
O que o público provavelmente não conhece é o talento dramático de dona Vitória. Sim senhores! Tenho o gosto de anunciar que nesta noite tão especial o nosso elenco contará com a generosa participação da própria senhora Vitória Fernandes de Duran! Em pessoa e ao vivo! (Black-out)
PRÓLOGO
A cortina permanece fechada; luz em João Alegre que batuca numa caixinha de fósforos; a orquestra entra aos poucos
João Alegre canta "O Malandro"
O malandro / Na dureza
Senta à mesa / Do café
Bebe um gole / De cachaça
Acha graça / E dá no pé
O garçom no / Prejuízo
Sem sorriso / Sem freguês
De passagem / Pela caixa
Dá uma baixa / No português
O galego / Acha estranho
Que o seu ganho / Tá um horror
Pega o lápis / Soma os canos
Passa os danos / Pro distribuidor
Mas o frete / Vê que ao todo
Há engodo / Nos papéis
E pra cima / Do alambique
Dá um trambique / De cem mil réis
O usineiro / Nessa luta
Grita puta / Que o pariu
Não é idiota / Trunca a nota
Lesa o Banco / Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem /Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arreglo/Cobra mais
A cachaça /Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado /Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom
O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação
Breque na orquestra; black-out
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
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Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
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