Moby Dick
Herman Melville
3.1 - A estalagem do jato
Mas o que mais intrigava e confundia era a massa alongada, difusa e negra de uma coisa que pairava no centro do quadro, por sobre três linhas azuis, indistintas e perpendiculares, que flutuava numa espuma indefinível. Um quadro verdadeiramente molhado, enlameado e alagado, capaz de perturbar um homem doente dos nervos. Contudo, havia nele uma espécie de sublimidade indefinida, incompleta, inimaginável, que congelava sua atenção, até que involuntariamente você jurasse a si mesmo desvendar o significado daquela pintura extraordinária. Vez por outra uma ideia brilhante, mas, ai, ilusória, o atingia. – É o Mar Negro, durante uma tormenta, à meia-noite. – É o combate sobrenatural dos quatro elementos da natureza. – Uma charneca arruinada. – É uma cena do inverno hiperbóreo. – É o degelo do rio do Tempo. Mas todas essas fantasias convergiam para algo portentoso no centro do quadro. Se aquilo fosse revelado, todo o resto seria simples. Mas pare; não há uma vaga semelhança com um peixe gigantesco? Com o próprio Leviatã?
De fato, segundo minha tese definitiva, baseada em parte nas opiniões conjuntas de várias pessoas idosas com quem conversei sobre o assunto, o propósito do artista parecia ser o seguinte: o quadro representa um navio no cabo Horn em meio a um grande furacão; veem-se apenas os três mastros destruídos de uma embarcação semiafundada; e uma baleia exasperada, pretendendo saltar por cima do barco, aparece sob o grandioso ato de empalar-se sobre os três mastros.
A parede oposta da recepção estava inteiramente coberta por uma selvagem exposição de clavas e espadas monstruosas. Algumas eram pesadamente decoradas com dentes resplandecentes que lembravam serras de marfim; outras traziam tufos de cabelo humano; e uma delas tinha forma de foice, com um cabo enorme arqueado, como o desenho produzido na grama recém-cortada por um ceifador de braços compridos. Você estremeceria ao vê-la e ficaria pensando que canibal selvagem e monstruoso poderia ter usado na colheita da morte um instrumento tão cortante e tão horripilante. Misturados a essas havia umas lanças e arpões velhos e enferrujados, todos quebrados e deformados. Algumas dessas armas eram famosas. Com esta lança outrora comprida, agora drasticamente encurtada, Nathan Swain matou há cinquenta anos quinze baleias entre o amanhecer e o anoitecer. E aquele arpão – agora tão parecido com um saca-rolha – fora atirado nos mares javaneses e carregado por uma baleia, que muitos anos depois foi morta na região do cabo Branco. O ferro original penetrou-a junto à cauda e, como uma agulha agitada que se instala no corpo de um homem, viajou por mais de doze metros, quando foi finalmente encontrado dentro da corcova.
Atravessando a recepção tenebrosa e continuando por uma passagem baixa em forma de arco – construído a partir do que outrora deve ter sido uma grande chaminé central com lareiras em volta –, você chegará ao salão. Este é um lugar ainda mais tenebroso, com um teto de vigas tão pesadas e baixas, e um assoalho de tábuas tão velhas e deformadas, que se tem quase a impressão de estar andando na cabine de uma velha embarcação, especialmente numa noite assombrada como aquela, em que esta velha arca ancorada num canto balançava tão furiosamente. De um lado havia uma mesa comprida e baixa, parecida com uma prateleira coberta por caixas de vidro quebrado, cheias de curiosidades empoeiradas, vindas dos recantos mais remotos deste vasto mundo. Projetando-se do ângulo mais afastado do salão há um cubículo escuro – o bar –, uma imitação malfeita de uma cabeça de baleia. Seja como for, ali fica um enorme osso arqueado de mandíbula de baleia, tão grande que uma carroça quase poderia passar por debaixo dele. Dentro ficavam prateleiras em mau estado, sobre as quais pousavam garrafas, frascos e outros recipientes velhos; e dentro daquela mandíbula de destruição instantânea, como outro Jonas maldito (nome pelo qual o chamavam), apressava-se um velhinho enrugado, que, por um alto preço, vendia o delírio e a morte aos marinheiros.
Abomináveis são os copos nos quais ele derrama seu veneno. Embora verdadeiros cilindros por fora – por dentro, os copos vis, feitos de um verde ostensivo, afunilavam enganosos em direção a um fundo falso. Linhas paralelas eram porcamente picadas à volta desses copos gatunos. Encha até esta marca e sua conta será de um centavo; até esta, mais um centavo; e assim por diante, até encher o copo – ou seja, até o cabo Horn, que você traga por um xelim.
Ao entrar no lugar encontrei uns jovens marinheiros reunidos em volta de uma mesa, examinando sob uma luz fraca diferentes tipos de artesanato em osso de baleia. Procurei o estalajadeiro, e ao dizer-lhe que queria ser acomodado em um quarto recebi como resposta que sua casa estava cheia, nenhuma cama desocupada. “Mas… alto lá!”, acrescentou, batendo na testa, “‘cê tem alguma coisa contra dividir o cobertor com um arpoador, hein? Imagino que ‘cê ‘tá indo atrás de baleia, então é melhor ir se acostumando com essas coisas.”
Eu lhe disse que jamais gostei de dormir com alguém na mesma cama; mas que se tivesse que fazê-lo, dependeria do tipo de pessoa que o tal arpoador era, e se ele (o estalajadeiro) não tivesse mesmo outro lugar para mim, e se o tal arpoador não fosse de todo desagradável, então, em vez de andar mais em uma cidade estranha numa noite tão lúgubre, eu ficaria com meio cobertor de um homem decente.
“Logo imaginei. Pois bem; sente-se. Jantar? Quer jantar? O jantar logo fica pronto.
” Sentei-me num velho banco de madeira, entalhado como um banco de Battery. Numa ponta, um marinheiro fazia mais adornos com seu canivete, trabalhando debruçado e com afinco no espaço entre suas pernas. Tentava fazer um navio a toda vela, mas não me parecia que estivesse progredindo muito.
Por fim, uns quatro ou cinco de nós fomos chamados para a refeição numa sala vizinha. Estava frio como na Islândia – não havia nenhum fogo –; disse o estalajadeiro que não tinha dinheiro para isso. Nada além de duas velas de sebo melancólicas, com gotas de graxa. Resignadamente abotoamos nossas jaquetas e levamos aos lábios as xícaras de chá quente com os nossos dedos quase congelados. Mas a comida era substanciosa – não apenas carne e batatas como também bolinhos; valha-me Deus! Bolinhos no jantar! Um jovem rapaz, de capote verde, atacou esses bolinhos do modo mais horrível.
“Meu jovem”, disse o estalajadeiro, “com certeza ‘cê vai ter um pesadelo de matar.”
“Senhor”, sussurrei, “esse não é o arpoador, é?”
“Ah, não!”, disse ele, parecendo divertir-se diabolicamente. “O arpoador é um cara de pele escura. Não, ele nunca come bolinho – só come bife, e ainda gosta malpassado.”
“Que diabos!”, disse eu. “Onde está esse arpoador? Está aqui?”
“Vai chegar logo”, foi a sua resposta.
Não pude evitar, e comecei a suspeitar desse arpoador de “pele escura”. De qualquer modo, tinha decidido que, se tivéssemos que dormir juntos, ele teria que se despir e entrar na cama antes de mim.
Acabado o jantar, o grupo voltou ao bar, e eu, não tendo nada melhor a fazer, resolvi passar o resto da noite como espectador.
Dali a pouco, ouviu-se um barulho de uma rixa na rua. Levantando-se, o estalajadeiro exclamou:
“É a tripulação do Orca. Vi hoje de manhã um comunicado dizendo que estava chegando; uma viagem de quatro anos, com o navio cheio. Hurra! Vamos saber as últimas notícias de Fiji.”
Na recepção ouviu-se um tropel de botas, a porta se abriu com violência e um bando turbulento de marinheiros atirou-se para dentro. Enfiados em seus casacos grosseiros de sentinelas, com as cabeças protegidas por cachecóis de lã, remendados e esfarrapados, e as barbas duras com pedaços de gelo, eles pareciam uma invasão de ursos de Labrador. Tinham acabado de desembarcar do navio, e esta era a primeira casa onde entravam. Por isso, não é de se admirar que fossem direto para a boca da baleia – o bar – onde o enrugado e mirrado velho Jonas, que lá oficiava, rapidamente lhes serviu copos cheios a todos. Um reclamou de um resfriado, ao que Jonas lhe preparou uma poção cor de piche de gim e melado, que jurou ser um remédio infalível para todos os resfriados e catarros, fossem eles crônicos ou apanhados, quer na costa de Labrador, quer a barlavento de uma geleira.
O álcool lhes subiu rapidamente à cabeça e, como acontece com os mais notórios beberrões recém-chegados do mar, eles começaram uma algazarra sem tamanho.
Observei, contudo, que um deles se mantinha um tanto arredio e, embora não quisesse estragar a festividade de seus companheiros com sua expressão sóbria, abstinha-se de fazer tanto barulho quanto os outros. Este homem despertou meu interesse de imediato; e já que os deuses do mar ordenaram que ele fosse em breve meu companheiro de bordo (se bem que apenas dividindo um quarto, no que concerne a esta narrativa) vou me aventurar a fazer uma breve descrição dele. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, com ombros nobres, e o peito como o de uma ensecadeira. Raras vezes vi tanta força muscular num homem. Seu rosto profundamente melancólico e queimado fazia um contraste deslumbrante com seus dentes brancos, enquanto nas sombras profundas de seus olhos flutuavam reminiscências que pareciam não lhe trazer muita alegria. Sua voz denunciava imediatamente que vinha do sul, e seu porte elegante me fez pensar que ele devia ser um dos montanheses altos que vêm da serra de Allegany, na Virgínia. Quando a festança de seus companheiros alcançou o auge, o homem fugiu despercebido, e só tornei a vê-lo como companheiro de bordo no mar. Mas dentro em pouco seus companheiros sentiram sua falta e, sendo ele, como parecia, por algum motivo, bastante popular entre eles, começaram uma gritaria de “Bulkington! Bulkington! Onde está Bulkington?”, precipitando-se para fora da casa, a procurá-lo.
Agora eram cerca de nove horas e, como o salão parecia estar sobrenaturalmente quieto após essas orgias, eu me congratulei por um pequeno plano que me ocorrera um pouco antes da entrada dos homens do mar.
Homem nenhum prefere dormir a dois numa cama. A bem da verdade, a gente prefere não dormir nem mesmo com um irmão. Não sei bem a razão, mas as pessoas gostam de privacidade para dormir. E quando se trata de dormir com um estranho, numa estalagem estranha, numa cidade estranha, sendo esse estranho um arpoador, então as objeções se multiplicam. Também não havia nenhum motivo terrestre para que eu, um marinheiro, mais do que qualquer outro, dormisse a dois numa cama; pois os marinheiros não dormem juntos em alto-mar, como tampouco os Reis solteiros dormem a dois em terra. É claro que todos dormem juntos num mesmo compartimento, mas você tem sua própria rede, cobre-se com seu próprio cobertor, e dorme em sua própria pele.
Quanto mais eu pensava sobre este arpoador, mais eu abominava a ideia de dormir com ele. Era justo presumir que, em se tratando de um arpoador, seu linho ou lã não seria dos mais limpos e certamente não seria dos melhores. Comecei a ficar todo crispado. Além disso, estava ficando tarde e um arpoador que prestasse deveria estar em casa, indo para a cama. Imagine se ele caísse em cima de mim à meia-noite. Como eu saberia de que buraco imundo ele estaria chegando?
“Senhor! Mudei de ideia sobre o arpoador. Não vou dormir com ele. Vou experimentar este banco aqui.”
“Como quiser. Sinto não poder oferecer uma toalha pra você usar de colchão, e esta maldita tábua é muito ruim” – disse, mexendo nos nós e nas fendas. “Mas espere aí, entalhador de ossos; tem uma plaina de carpinteiro no bar – espere um pouco, vou deixá-la bem confortável para você.” Dizendo isto, trouxe a plaina; tirou o pó do banco com seu velho lenço de seda e começou a aplainar vigorosamente minha cama, sorrindo como um macaco. As aparas voavam para a esquerda e para a direita; até que, por fim, o ferro se chocou contra um nó indestrutível. O estalajadeiro estava quase torcendo o pulso, e pedi-lhe que parasse, pelo amor de Deus – a cama estava bastante confortável para mim, e eu não sabia como todo o aplainamento do mundo poderia fazer de uma placa de pinho um edredom. Juntou então as aparas com mais um sorriso, jogou-as no fogão do centro do salão e foi cuidar de seus afazeres, deixando-me numa meditação profunda.
Tomei ali as medidas do banco e descobri que era curto demais para mim; mas isso poderia ser remediado com uma cadeira. Mas também era estreito demais, e o outro banco do salão era cerca de dez centímetros mais alto do que o aplainado – por isso não havia como emparelhá-los. Coloquei então o primeiro banco ao comprido no único espaço vazio junto à parede, deixando um pequeno intervalo para que minhas costas se acomodassem. Mas logo percebi que havia uma corrente de ar frio que vinha do peitoril da janela e que esse plano não daria certo, ainda mais que uma outra corrente, vinda da frágil porta, se encontrava com a da janela, e as duas juntas formavam uma série de pequenos redemoinhos na imediata vizinhança do local onde eu havia pensado passar a noite.
O diabo que carregue o arpoador, pensei, mas não, eu não poderia tomar-lhe a dianteira – trancar a porta por dentro e pular em sua cama, sem ser acordado sequer pelas batidas mais violentas? Não me pareceu uma má ideia; mas, pensando melhor, descartei-a. Pois quem podia me garantir que na manhã seguinte, assim que eu pulasse fora do quarto, o arpoador não estaria de pé na recepção, pronto para me arrebentar!
Todavia, olhando à minha volta, não vendo nenhuma possibilidade de passar uma noite tolerável senão na cama de outra pessoa, comecei a achar que, afinal de contas, eu poderia estar cultivando preconceitos absurdos contra esse arpoador desconhecido. Pensei comigo, vou esperar um pouco; ele deve estar chegando logo. Vou dar uma boa olhada nele, e talvez nos tornemos bons companheiros de cama – nunca se sabe.
Mas embora os outros hóspedes continuassem chegando sozinhos, de dois em dois, ou de três em três, e indo se deitar, ainda não havia sinal do meu arpoador.
“Senhor!”, perguntei, “que tipo de sujeito é esse – ele sempre chega assim tão tarde?” Já era quase meia-noite.
O estalajadeiro riu de novo, seu riso magro, e parecia divertir-se extraordinariamente com algo que estava além da minha compreensão. “Não!”, disse, “esse aí acorda co’as galinha’ – deita cedo e levanta cedo – eh, é o passarinho que encontra a minhoca primeiro. Mas hoje ele saiu a negócio, entendeu, e não sei por que diabos ‘tá demorando, a não ser, talvez, que não tenha conseguido vender sua cabeça.”
“Vender a cabeça? – Que história de louco é essa que o senhor está me contando?”, meu sangue começava a esquentar. “O senhor quer dizer, estalajadeiro, que esse arpoador está mesmo envolvido, nesta abençoada noite de sábado, ou melhor, nesta manhã de domingo, com a tarefa de vender a sua cabeça na cidade?”
Continua na página 31...
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O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.
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