parábolas de uma professora
atrás do rabo
Ensaio 018B – 3ª.ed
baitasar e paulus e marko e kamilá
o professor Rodolfo levanta a fórmica verde, exaltado, danado, a voz alterada, fazendo alvoroço, olhar assombrado, desarticulado, Povinho inculto com cara de fome. Rui Barbosa deve estar se revirando no túmulo. Gente preguiçosa e com má vontade de suportar privações. Quem passa fome é o vagabundo, quem trabalha não passa fome. Haja zoológico para enfiar tanto vileiro.
qual a razão para palavras tão preconceituosas, desumanas, tanto desprezo e ódio, gente cafajeste e canalha, experimento o ódio e a impotência, sei que não é somente o Rodolfo, outros e outras, nesta sala, pensam e sentem assim, apenas não falam, silêncio conveniente
com raras exceções, as comunidades das nossas escolas reconhecem a necessidade de trabalhar e estudar, compreendem que esses são interesses mútuos, Professor.. por favor, não fale assim. Não diga isso, essa sua postura agressiva assume um caráter primitivo, desqualifica a escola, reduz o nosso trabalho em doença e morte.
E todos não iremos morrer um dia, Marko? Por que não hoje?
nunca sei quando a crueldade é apenas crueldade ou ignorância, Colega, parece-me que o cotidiano da nossa comunidade é algo desconhecido e distante para você e, pelo qual, nutre um profundo desprezo.
tristeza e desespero brotavam silenciosamente em meu coração, precisava salvar-me a todo custo deste ódio deprimente e desesperado, mas é preciso estranhar e reagir contra, fazer esse infeliz retornar ao seu papel vazio costumeiro no rebanho
não é o medo que vai nos salvar e nos manter na linha justa, só nos faz definhar até virarmos zumbis de nós mesmas, não existindo, desaparecendo nas prateleiras de cimento e flores de plástico
parecia inútil tentar conversar, mas mesmo assim voltei-me para o colega, Não faz muito sentido o colega usar o nome de Rui Barbosa no seu raciocínio sobre OSPB e Moral e Cívica...
E o que faz sentido para a colega?
Eu posso lhe dizer com mais certeza o que não faz sentido.
E o que não faz sentido?
uma parte das pessoas daquela reunião evitava encarar-me, e se pudessem me calariam, estava cercada por sentimentos clandestinos, sabia que seria preciso fustigar quem estava estava ali sem estar, uma presença sem entusiasmo e olhar baixo, um comparecimento de fachada, fisionomias suspeitas, sem curiosidade, sem desejo, dispersas num desprezo generalizado, essa reunião, por exemplo, caro colega, não faz sentido, fiz uma pequena pausa, um pouco de pose, talvez, gargalhava e me preparava para arreganhar os dentes, para mim não faz sentido ficarmos aqui, neste calorão do inferno, derretendo e escutando essa merda toda que sai da boca do colega.
Anita!
o desafio estava aceito, precisamos avançar na prática dialética da reflexão e do debate, encontrar pontos para motivar a discussão, superar compromissos machistas, racistas, preconceitos que não libertam e não transformam a realidade, mas também precisamos arreganhar os dentes e cerrar os punhos, E as outras vidas possíveis, professor? Continuaremos contando histórias de lagartas e borboletas? A lagarta não se vê borboleta, a borboleta não se sabe lagarta, é isso? Uma depende da morte da outra para voar? É isso que queremos contar? E as outras vidas possíveis? Vidas no casulo autoritário da escola que inviabiliza a criticidade, a conscientização, a aceitação das outras vidas possíveis. Chega, professor, meus ouvidos não são esgoto.
nunca haverá na escola que se submete a ser domicílio das relações verticais militares espaço para transformar as relações sociais que estabelecem e fixam as desigualdades de moradia, saúde, alimentação, transporte, emprego, a raiz do analfabetismo é o medo que as pessoas se descubram
Anita, por favor...
O que foi? Eu disse algo mais estúpido que o colega? Ah, o colega é mestre em alguma coisa... aham, o diploma diz cada vez menos sobre as nossas competências pessoais de empatia, gentileza e compromisso com as vidas.
Anita, a escola se transformou num centro de mediação com o mercado...
Quanta merda, Cabayba! Esse deus mercado, o deus da prosperidade, são pessoas manipuladoras, gente atrás de estratégias e estatísticas que lucra com o meu trabalho, o teu, o nosso, o trabalho dos jovens desta escola. E quem não se adapta é eliminada no paredão da vila. Olha aí, é o meu guri!
o silêncio se espalha em pânico e o mais furioso se cala, esconde os dentes, desfaz seu olhar assombrado, relaxa os punhos, não vai se engalfinhar comigo, estou fervendo clara e espontaneamente, eu sei que essa selvageria não acaba aqui
gente burra e surda
o silêncio começa a pesar sobre nossa reunião pedagógica – ou seria... a reunião administrativa da altíssima?
sei lá, já pouco me importa, parecemos em círculos tentando agarrar o rabo
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