segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (1 - A Imagem)

 Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER




Ensaios para uma futura filosofia da fotografia




1 - A Imagem


Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espacio-temporais , para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstituir as duas dimensões abstraídas na imagem. Em outros termos: imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens.

O fator decisivo no deciframento de imagens é tratar-se de planos. O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning.

O traçado do scanning segue a estrutura da imagem, mas também impulsos no íntimo do observador. O significado decifrado por este método será, pois, resultado de síntese entre duas “intencionalidades”: a do emissor e a do receptor. Imagens não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: não são “denotativas”. Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos “conotativos”.

Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos.

Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear, o qual estabelece relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo; no circular, o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis.

O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens. Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. E tal poder mágico, inerente à estruturação plana da imagem, domina a dialética interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de forma incomparável.

Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra – o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicização da vida: as imagens técnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imaginística e remagicizam a vida.

Trata-se de alienação do homem em relação a seus próprios instrumentos. O homem se esquece do motivo pelo qual imagens são produzidas: servirem de instrumentos para orientá-lo no mundo. Imaginação torna-se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas. No segundo milênio A. C., tal alucinação alcançou seu apogeu. Surgiram pessoas empenhadas no “relembramento” da função originária das imagens, que passaram a rasgá-las, a fim de abrir a visão para o mundo concreto escondido pelas imagens. O método do rasgamento consistia em desfiar as superfícies da imagens em linhas e alinhar os elementos imaginísticos . Eis como foi inventada a escrita linear. Tratava-se de transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens. Fato nitidamente observável entre os filósofos présocráticos e sobretudo entre os profetas judeus.

A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica contra a consciência mágica caracteriza a História toda. E terá consequências imprevistas. A escrita se funda sobre a nova capacidade de codificar planos em retas e abstrair todas as dimensões, com exceção de uma: a da conceituação, que permite codificar textos e decifrá-los. Isto mostra que o pensamento conceitual é mais abstrato que o pensamento imaginativo, pois preserva apenas uma das dimensões do espaço-tempo. Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar. A escrita surge de um passo para aquém das imagens e não de um passo em direção ao mundo. Os textos não significam o mundo diretamente, mas através de imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenômenos, significam ideias. Decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A função dos textos é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Em outros termos: a escrita é meta-código da imagem.

A relação texto-imagem é fundamental para a compreensão da história do Ocidente. Na Idade Média, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imaginístico; na Idade Moderna, luta entre a ciência textual e as ideologias imaginísticas. A luta, porém, é dialética. À medida que o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele próprio vai absorvendo imagens e se paganizando; à medida que a ciência vai combatendo ideologias, vai ela própria absorvendo imagens e se ideologizando . Por que isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens são capazes de ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação e conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando. As imagens se tornam cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos. Atualmente o maior poder conceitual reside em certas imagens, e o maior poder imaginativo, em determinados textos da ciência exata. Deste modo, a hierarquia dos códigos vai se perturbando: embora os textos sejam metacódigo de imagens, determinadas imagens passam a ser metacódigo de textos.

No entanto, a situação se complica ainda mais devido à contradição interna dos textos. São eles mediações tanto quanto o são as imagens. Seu propósito é mediar entre homem e imagens. Ocorre, porém, que os textos podem tapar as imagens que pretendem representar algo para o homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, não conseguindo reconstituir as imagens abstraídas. Passa a viver não mais para se servir dos textos, mas em função destes.

Surge textolatria, tão alucinatória como a idolatria. Exemplo impressionante de textolatria é “fidelidade ao texto”, tanto nas ideologias ( cristã, marxista, etc.), quanto nas ciências exatas. Tais textos passam a ser inimagináveis, como o é o universo das ciências exatas: não pode e não deve ser imaginado. No entanto, como são imagens o derradeiro significado dos conceitos, o discurso científico passa a ser composto de conceitos vazios; o universo da ciência torna-se universo vazio. A textolatria assumiu proporções críticas no percurso do século passado.

A crise dos textos implica o naufrágio da História toda, que é, estritamente, processo de recodificação de imagens em conceitos. História é explicação progressiva de imagens, desmagiciação, conceituação. Lá, onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a história para. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade.

Pois é precisamente em tal mundo que vão sendo inventadas as imagens técnicas. E em primeiro lugar, as fotografias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.





continua pág 10



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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Foto da contracapa: Sakae Tajima.

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Leia também:

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (Prefácio e Glossário)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (1 - A Imagem)
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