segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(4.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío






O CORONEL AURELIANO BUENDÍA promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobrevive u a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito que lhe outorgou o Presidente da República. Chegou a ser comandante geral das forças revolucionárias, com jurisdição e mando de uma fronteira à outra, e o homem mais temido pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia. Dispensou a pensão vitalícia que lhe ofereceram depois da guerra e viveu até a velhice dos peixinhos de ouro que fabricava na sua oficina de Macondo. Embora lutasse sempre à frente dos seus homens, a única ferida que recebeu foi produzida por ele mesmo, depois de assinar a capitulação da Neerlândia, que pôs fim a quase vinte anos de guerras civis. Desfechou um tiro de pistola no peito e o projétil saiu-lhe pelas costas sem ofender nenhum centro vital. A única coisa que ficou de tudo isso foi uma rua com o seu nome em Macondo. Entretanto, conforme declarou poucos anos antes de morrer de velho, nem mesmo isso ele esperava, na madrugada em que partiu com os seus vinte e um homens, para se reunir às forças do General Victorio Medina.

— Nós deixamos Macondo aí para você — foi tudo quanto disse a Arcadio antes de partir. — Nós o deixamos bem, faça com que o encontremos melhor.

Arcadio deu uma interpretação muito pessoal à recomendação. Inventou para si mesmo um uniforme com galões e dragonas de marechal, inspirado nas gravuras de um livro de Melquíades, e pendurou no cinto o sabre com borlas douradas do capitão fuzilado. Colocou as duas peças de artilharia na entrada do povoado, uniformizou os seus antigos alunos, inflamados pelos seus pronunciamentos incendiários, e deixou-os vagar armados pelas ruas, para dar aos forasteiros uma impressão de invulnerabilidade. Foi uma faca de dois gumes, porque o governo não se atreveu a atacar a praça durante dez meses, mas quando o fez, descarregou contra ela uma força tão desproporcional que liquidou com a resistência em meia hora. Desde o primeiro dia de seu mandato Arcadio revelou ser partidário dos decretos. Chegou a baixar até quatro por dia, para ordenar e determinar o que lhe passava pela cabeça. Implantou o serviço militar obrigatório a partir dos dezoito anos, declarou de utilidade pública os animais que transitavam pelas ruas depois das seis da tarde e impôs aos homens maiores de idade a obrigação de usar uma faixa vermelha na manga. Enclausurou o Padre Nicanor na casa paroquial, sob a ameaça de fuzilamento, e proibiu-o de dizer missa e tocar os sinos, se não fosse para celebrar as vitórias liberais. Para que ninguém pusesse em dúvida a severidade dos seus propósitos, mandou que um pelotão de fuzilamento treinasse em praça pública atirando contra um espantalho. No começo, ninguém o levou a sério. Eram, afinal de contas, os rapazes da escola brincando de gente grande. Mas certa noite, ao entrar na taberna, o trompetista da banda saudou Arcadio com um toque de fanfarra que provocou o riso da clientela, e Arcadio o mandou fuzilar por falta de respeito à autoridade. Aos que protestaram pôs a pão e água, com os tornozelos num tronco que instalara num quarto da escola. “Você é um assassino! “, gritavalhe Úrsula cada vez que sabia de alguma nova arbitrariedade. “Quando Aureliano souber disso, vai fuzilar é você mesmo, e eu vou ser a primeira a me alegrar!” Mas tudo foi inútil. Arcadio continuou apertando as cravelhas com um rigor desnecessário, até se converter no mais cruel dos governantes que passaram por Macondo. “Agora sofram a diferença”, disse o Sr. Apolinar Moscote em certa ocasião. “Isto é paraíso liberal.”

Arcadio soube. A frente de uma patrulha, assaltou a casa, quebrou os móveis, açoitou as filhas e levou de rastros o Sr. Apolinar Moscote. Quando Úrsula irrompeu no pátio do quartel, depois de ter atravessado o povoado miando de vergonha e brandindo de raiva um rebenque cheio de alcatrão, o próprio Arcadio se dispunha a dar a ordem de ao pelotão de fuzilamento.

— Atreva-se, bastardo! — gritou Úrsula.

Antes que Arcadio tivesse tempo de reagir, descarregou a primeira vergastada.

“Atreva-se, assassino”, gritava. “E me mate também, seu filho da mãe. Assim não vou ter olhos para chorar a vergonha de ter criado um monstro.” Açoitando-o sem misericórdia, perseguiu-o até o fundo do pátio, onde Arcadio se enrolou como um caracol. O Sr. Apolinar Moscote estava inconsciente, amarrado no poste onde tinham antes o espantalho arrebentado pelos tiros de treinamento. Os rapazes do pelotão se dispersaram, temerosos de que Úrsula terminasse de se desafogar neles. Mas ela nem sequer lhes dirigiu o olhar. Deixou Arcadio com o uniforme espedaçado, bramando de dor e de raiva, e desamarrou o Sr. Apolinar Moscote para levá-lo em casa. Antes de abandonar o quartel, soltou os presos do tronco.

A partir de então, foi ela quem passou a mandar no povoado. Restabeleceu a missa dominical, suspendeu o uso das insígnias vermelhas e invalidou os decretos atrabiliários. Mas apesar da sua força, continuou chorando a infelicidade do seu destino. Sentiu-se tão sozinha que procurou a inútil companhia do marido, esquecido debaixo do castanheiro. “Olha só onde fomos parar”, dizia a ele, enquanto as chuvas de junho ameaçavam derrubar a coberta de sapé. “Olhe só a casa vazia, nossos filhos espalhados pelo mundo, e nós dois sozinhos outra vez como no princípio.” José Arcadio Buendía, afundado num abismo de inconsciência, era surdo aos seus lamentos. No começo da sua loucura, anunciava com latinórios agoniantes as suas urgências cotidianas. Em fugazes clarões de lucidez, quando Amaranta trazia a comida, ele lhe comunicava os seus pesares mais desagradáveis e se prestava com docilidade às suas ventosas e sinapismos. Mas na época em que Úrsula foi se lamentar ao seu lado, já tinha perdido todo o contato com a realidade. Ela o banhava por partes, sentado no banquinho, enquanto lhe dava notícias da família. “Aureliano foi para a guerra, faz mais de quatro meses, e não soubemos mais dele”, dizia, esfregando-lhe as costas com uma bucha ensaboada. “José Arcadio voltou, feito um homenzarrão mais alto que você e todo bordado em ponto de cruz, mas só veio trazer vergonha para a nossa casa.”

Acreditou observar, entretanto, que o marido se entristecia com as más notícias. Então, optou por mentir para ele. “Não acredite no que eu digo”, dizia, enquanto jogava cinzas sobre os excrementos, para recolhê-los com a pá. “Deus quis que José Arcadio e Rebeca se casassem, e agora são muito felizes.” Chegou a ser tão sincera no engano que ela mesma acabou se consolando com as suas próprias mentiras. “Arcadio já é um homem sério”, dizia, “e muito valente, e muito bonito com o seu uniforme e o seu sabre.” Era como falar a um morto, porque José Arcadio Buendía já estava fora do alcance de qualquer preocupação. Mas ela insistiu. Via-o tão manso, tão indiferente a tudo, que decidiu soltá-lo. Ele nem sequer se mexeu do banquinho. Continuou exposto ao sol e à chuva, como se as cordas fossem desnecessárias, porque um domínio superior a qualquer prisão visível o mantinha amarrado ao tronco do castanheiro. Pelo mês de agosto, quando o inverno começava eternizar, Úrsula pôde por fim lhe dar uma notícia que parecia verdade.

— Veja que a boa sorte continua nos perseguindo — disse a ele. — Amaranta e o italiano da pianola vão se casar.

Amaranta e Pietro Crespi, na verdade, tinham aprofundado a amizade, amparados pela confiança de Úrsula, que desta vez não pensou ser necessário vigiar as visitas. Era um namoro crepuscular. O italiano chegava ao entardecer, com uma gardênia na lapela, e traduzia para Amaranta os sonetos de arca. Permaneciam na varanda sufocada pelo orégão e pelas rosas, ele lendo e ela fazendo renda de bilros, indiferentes aos sobressaltos e às más notícias da guerra, até que os mosquitos os obrigassem a se refugiar na sala. A sensibilidade de Amaranta, sua discreta mas envolvente ternura, foram urdindo volta do namorado uma teia invisível que ele tinha que afastar materialmente com os dedos pálidos e sem anéis, para abandonar a casa às oito. Tinham feito um lindo álbum com os postais que Pietro Crespi recebia da Itália. Eram imagens de apaixonados em parques solitários, com vinhetas de corações flechados e fitas douradas sustentadas por pombinhos. “Eu conheço este parque em Florença”, dizia Pietro Crespi repassando os postais. “A gente estende a mão e os pássaros descem para comer.” As vezes, diante de uma aquarela de Veneza, a saudade transformava em suaves aromas de flores o cheiro de limo e mariscos podres dos canais. Amaranta suspirava, sonhava com uma segunda pátria de homens e mulheres formosos que falavam uma língua que parecia de crianças, com cidades antigas de cuja passada grandeza restavam apenas os gatos entre os escombros. Depois de atravessar o oceano na sua busca, depois de tê-lo confundido com a paixão nas carícias veementes de Rebeca, Pietro Crespi tinha encontrado o amor. A felicidade trouxe consigo a prosperidade. A sua loja ocupava agora quase um quarteirão, e era um refúgio de fantasia, com reproduções do campanário de Florença, que davam as horas num concerto de carrilhões, e caixinhas de música de Sorrento, e de pó-de-arroz da China que cantavam, se abrir a tampa, toadas de cinco notas, e todos os instrumentos musicais que se podiam imaginar e todos os artifícios de corda que se podiam conceber. Bruno Crespi, seu irmão mais novo, estava à frente da loja, porque ele já não chegava para atender à escola de música. Graças a ele, a Rua dos Turcos, com a sua deslumbrante exposição de quinquilharias, transformou-se num remanso melódico, para esquecer as arbitrariedades de Arcadio e o pesadelo remoto da guerra. Quando Úrsula determinou a retomada da missa dominical, Pietro Crespi presenteou o templo com um harmônio alemão, organizou um coro infantil e preparou um repertório gregoriano que deu uma nota esplêndida ao ritual taciturno do Padre Nicanor. Ninguém punha em dúvida que faria de Amaranta uma esposa feliz. Sem apressar os sentimentos, deixando-se arrastar pela fluidez natural do coração, chegaram a um ponto em que só faltava marcar a data do casamento. Não encontrariam obstáculos. Úrsula se acusava intimamente de ter torcido com adiamentos repetidos o destino de Rebeca, e não estava disposta a acumular remorsos. O rigor do luto pela morte de Remedios tinha sido relegado a segundo plano em favor da mortificação da guerra, da ausência de Aureliano, da brutalidade de Arcadio e da expulsão de José Arcadio e Rebeca. Diante da iminência do casamento, o próprio Pietro Crespi insinuara que Aureliano José, em favor de quem desenvolveu um carinho quase paternal, fosse considerado como seu filho mais velho. Tudo fazia crer que Amaranta se orientava para uma felicidade sem tropeços. Mas ao contrário de Rebeca, ela não revelava a menor ansiedade. Com a mesma paciência com que sarapintava toalhas de mesa, e tecia primores de passamanaria, e bordava pavões em ponto de cruz, esperou que Pietro Crespi não suportasse mais as urgências do coração. Sua hora chegou com as chuvas aziagas de outubro. Pietro Crespi tirou-lhe do colo o cesto de costura e apertou-lhe a mão entre as suas. “Não agüento mais esta espera”, disse a ela.

“Nós casamos no mês que vem.” Amaranta não tremeu ao contato das suas mãos de gelo. Retirou a sua, como um animalzinho em fuga e voltou ao trabalho.

— Não seja ingênuo, Crespi — sorriu — nem morta eu me caso com você. Pietro Crespi perdeu o domínio de si mesmo.

Chorou sem dor, quase quebrando os dedos de desespero, mas não conseguiu comovê -la. “Não perca tempo”, foi tudo quanto disse Amaranta. “Se realmente você me ama tanto, não volte a pisar nesta casa.”

Úrsula pensou enlouquecer de vergonha. Pietro Crespi esgotou os recursos da súplica. Chegou a incríveis exemplos de humilhação. Chorou uma tarde inteira no colo de Úrsula, que teria vendido a alma para consolálo. Em noites chuva, foi visto vagando nas proximidades da casa, com guarda-chuva de seda, tentando surpreender uma luz no quarto de Amaranta. Nunca andou tão bem vestido quanto nessa época. A sua augusta cabeça de imperador atormentado adquiriu um estranho ar de grandeza. Importunou as amigas de Amaranta, as que iam bordar na varanda, para que tentassem persuadi-la. Descuidou dos negócios. Passava o dia nos fundos da loja, escrevendo bilhetes desatinados, que fazia chegar a Amaranta com membranas de pétalas e borboletas embalsamadas, e que ela devolvia sem abrir. Trancava-se durante horas e horas tocando cítara. Certa noite cantou. Macondo acordou numa espécie de êxtase, angelizado por uma cítara que não podia ser deste mundo e uma voz que não se dia conceber que existisse na terra, tão cheia de amor. Pietro Crespi viu então a luz acesa em todas as janelas do povoado, menos na de Amaranta. A dois de novembro, dia de todos os mortos, seu irmão abriu a loja e encontrou todas as luzes acesas e todas as caixas de músicas abertas e todos os relógios travados numa hora interminável, e no meio daquele concerto disparatado encontrou Pietro Crespi no escritório dos fundos da loja com os pulsos cortados a navalha e as duas mãos metidas numa bacia de benjoim.

Úrsula ordenou que ele fosse velado na sua casa. O Padre Nicanor se opunha aos ofícios religiosos e à sepultura no campo santo. Úrsula enfrentou-o. “De uma maneira que nem senhor nem eu podemos entender, esse homem era um santo”, disse. “De modo que vou enterrá-lo, contra a sua vontade, junto à tumba de Melquíades.” Fê-lo, com o apoio de todo o povo, em funerais magníficos. Amaranta não saiu do quarto. Ouviu de sua cama o pranto de Úrsula, os passos e murmúrios da multidão que invadiu a casa, os uivos das carpideiras, e depois um profundo silêncio cheirando a flores pisadas. Durante muito tempo continuou a sentir o aroma da lavanda de Pietro Crespi ao entardecer, mas teve forças para não sucumbir ao delírio. Úrsula abandonou-a. Nem sequer levantou os olhos para se apiedar dela, na tarde em que Amaranta entrou na cozinha e pôs a mão nas brasas do fogão, até doer tanto que não sentiu mais a dor, e sim o fedor da sua própria carne chamuscada. Foi uma dose cavalar para o remorso. Durante vários dias andou pela casa com a mão metida numa caneca cheia de claras de ovo, e quando sararam as queimaduras era como se as claras de ovo tivessem cicatrizado também as úlceras do coração. A única marca externa que lhe deixou a tragédia foi a atadura de gaze negra que pôs na mão queimada, e que haveria, de usar até a morte.

Arcadio deu uma rara prova de generosidade, ao proclamar, mediante um decreto, o luto oficial pela morte de Pietro Crespi. Úrsula interpretou o fato como a volta do cordeiro extraviado. Mas se enganou. Tinha perdido Arcadio, não desde que vestiu o uniforme militar, mas desde sempre. Acreditava tê-lo criado como um filho, como criou Rebeca, sem privilégios nem discriminações. Entretanto, Arcadio era um menino solitário e assustado durante a peste da insônia, em meio à febre utilitária de Úrsula, aos delírios de José Arcadio Buendía, ao hermetismo de Aureliano, à rivalidade mortal entre Amaranta e Rebeca. Aureliano ensinou-o a ler e escrever, pensando em outra coisa, como o teria feito um estranho. Presenteava-o com a sua roupa, para que Visitación a diminuísse, quando já estava boa para jogar fora. Arcadio sofria com os seus sapatos grandes demais, com as suas calças remendadas, com as suas nádegas de mulher. Nunca conseguiu se comunicar com ninguém melhor do que o fizera com Visitación e Cataure, na língua deles. Melquíades foi o único que na realidade se ocupou dele, que lhe fazia escutar os seus textos incompreensíveis e lhe dava instruções sobre a arte da daguerreotipia. Ninguém imaginava o quanto chorara a sua morte em segredo e com que desespero tentou revivê-lo no estudo inútil dos seus papéis. A escola, onde lhe prestavam atenção e o respeitavam, e depois o poder, com os seus decretos peremptórios e o seu uniforme de glória, livraram-no do peso de uma antiga amargura. Uma noite, na taberna de Catarino, alguém se atreveu a lhe dizer:

“Você não merece o sobrenome que usa.” Ao contrário do que todos esperavam, Arcadio não mandou fuzilá-lo.

— Com muita honra — disse — não sou um Buendía.

Os que conheciam o segredo da sua filiação pensaram por aquela réplica que também ele estava a par, mas na realidade não o esteve nunca. Pilar Ternera, sua mãe, que lhe tinha feito ferver o sangue no gabinete de daguerreotipia, foi para ele uma obsessão tão irresistível como tinha sido primeiro para José Arcadio e depois para Aureliano. Apesar de ela haver perdido os encantos e o esplendor do riso, ele a procurava e a encontrava no rastro do seu cheiro de fumo. Pouco antes da guerra, num meio-dia em que ela foi mais tarde que de costume buscar o seu filho mais novo na escola, Arcadio a estava esperando no quarto onde costumava fazer a sesta, e onde depois instalou o tronco. Enquanto o menino brincava no pátio, ele esperou na rede, tremendo de ansiedade, sabendo que Pilar Temera tinha que passar por ali. Chegou. Arcadio agarrou-a pelo braço e tentou metê-la na rede. “Não posso, não posso”, disse Pilar Temera horrorizada. “Você não imagina como eu gostaria de lhe dar prazer, mas Deus é testemunha de que não posso.” Arcadio agarrou-a pela cintura com a sua tremenda força hereditária, e sentiu que o mundo se apagava ao contato da sua pele.

“Não se faça de santa”, dizia. “Afinal, todo mundo sabe que você é uma puta.” Pilar se refez do nojo que lhe inspirava o seu miserável destino.

— As crianças vão perceber — murmurou. — E melhor que esta noite você deixe a porta sem trancar.

Arcadio esperou-a naquela noite, tiritando de febre na rede. Esperou sem dormir, ouvindo os grilos alvoroçados da madrugada sem fim e o horário implacável dos socós, cada vez mais convencido de que o haviam enganado. De repente, quando a ansiedade já se havia decomposto em raiva, a porta se abriu. Poucos meses depois, diante do pelotão de fuzilamento, Arcadio haveria de reviver os passos perdidos na sala de aula, os tropeções contra os bancos, e por último a densidade de um corpo nas trevas do quarto e as batidas do ar bombeado por um coração que não era o seu. Estendeu a mão e encontrou outra mão com dois anéis num mesmo dedo, que estava a ponto de naufragar na escuridão. Sentiu a nervação das suas veias, o pulso do seu infortúnio e sentiu a palma úmida com a linha da vida cortada na base do polegar pela estocada da morte. Então compreendeu que não era essa a mulher que esperava, porque não cheirava a fumo, mas a brilhantina de florzinha, e tinha os seios inchados e cegos com mamilos de homem, e o sexo pétreo e redondo como uma noz, e a ternura caótica da inexperiência exaltada. Era virgem e tinha o nome inverossímil de Santa Sofía de la Piedad. Pilar Ternera lhe havia pago cinquenta pesos, a metade de suas economias de toda a vida, para que fizesse o que estava fazendo. Arcadio a vira muitas vezes, atendendo na lojinha de comestíveis dos pais, e nunca tinha prestado atenção nela, porque tinha a rara virtude de não existir por completo, a não ser no momento oportuno. Mas a partir daquele dia, enroscou-se como um gato no calor da sua axila. Ela ia à escola na hora da sesta, com o consentimento dos pais, a quem Pilar Ternera havia pago a outra metade das suas economias. Mais tarde, quando as tropas do Governo os desalojaram do local, amavam-se entre as latas de manteiga e os sacos de milho do depósito. Na época em que Arcadio foi nomeado chefe civil e militar, tiveram uma filha.



continua página 73...


_______________________


Leia também:


Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.2) - Quando os ciganos voltaram...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.3) - Quando o pirata Francis Drake assaltou
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.4) - O pai deu-lhe com as costas da mão
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.5) - O filho de Pilar Ternera
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.6) - Foi Aureliano quem concebeu
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.7) - O tempo aplacou o seu propósito
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.2) - Aureliano foi o único..
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.3) - ... as suas nove noites de velório
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.1) - ... puberdade antes de superar os hábitos infantis
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.2) - ... Não é hora de andar pensando em casamentos
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.3) - ... Ele mesmo diante do pelotão de fuzilamento
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA 
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.2) - ... Os únicos parentes que souberam

Nenhum comentário:

Postar um comentário