quinta-feira, 10 de abril de 2014

04 – General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
Um armário na parede
baitasar
Peguei a caneta carregada de tinta vermelha em meu bolso, mirei as duas pequenas buchas nas ventas do defunto. Espiava as duas bolinhas de papel, não queria que as ventas entupidas fossem notadas nem deixassem alguma rota de fuga para o animalzinho
—        Chupa-racha!
—        Sim senhor, General!
Não conseguia evitar a posição retesada do respeito à sua autoridade. Não adianta, nunca vou esquecer este hábito de obedecer. Não adianta, alguns nascem para comandar, os reis; outros, para obedecer, esses brotam como musgos, boi e boiada. Não adianta. Eu tenho uma teoria. O senhor gerou-se do medo e do cacoete depois das primeiras sessões de tortura. A desgraça lhe invadiu o coração e o senhor não conseguiu mais contrariar os sentimentos da tirania, emoções irreconciliáveis com a vida
—        Estou entregue nas mãos de um soldado que não consegue sumir com duas bolinhas de papel. Imagine se eu largo um corpo em seus braços e a missão de fazer o desaparecimento do falecido. Já pensou nisso, chupa-racha?
Forcei as buchinhas, novamente. Fui até os pés do defunto. Olhei desconfiado para os lados, tive a sensação de estar sendo vigiado. Fiquei com os pelos do corpo arrepiados. Cacoete de soldado. Sentinela de prontidão. Sentimento de culpa. Fui até a porta da capela, amanhecia suavemente. A beleza daquele amanhecimento colorido e a certeza da morte nas costas. Como se a madrugada não quisesse entregar-se para o acordar do dia seguinte, cansada daquela invariável angústia de chegar e partir. Não havia o que fazer. Envergonhada ela tenta ficar longe, mas descobre que não consegue. Passou do tempo de desistir. Acumula a tristeza e a saudade de tantas madrugadas sozinha. Uma capela fantasma. Nada de estranho. Voltei aos pés do General. Fixei minha mira nas duas ventas. Sorri satisfeito. Quem não soubesse não ia desconfiar. E ninguém mais sabia. Olhei à volta. Parei as vistas através da porta da capela. Lá fora, um mundo de mortos aguardava o General. Voltei para o morto. Mais uma pequena espetadinha e nem a curiosidade desmedida iria desconfiar do outro corpo dentro do finado. Duas lágrimas escorregaram deslizando em minhas bochechas. O sentimento do dever se cumprindo.
Guardei a caneta.
Relaxei da posição de ataque, mas não conseguia afrouxar do posto de vigilância. Franzi o nariz e desembarquei os olhos. Foi quando vi um pequeno vulto se mexendo dentro da boca quase fechada do defunto
—        A mosca, General!
—        Faça alguma coisa, soldado! Isso é uma ordem!
Não tinha tempo para discutir as ordens de um defunto, o inimigo estava pronto para fugir. Foi instinto, eu juro. Nenhum plano de ataque pelos flancos, movimento em pinça, paraquedistas, etc. Ergui a mão e como um míssil ela foi na direção do animal. Acertei em cheio
—        O que foi isso, soldado!
—        A mosca, General!
Ela tentou recuar, estonteada, outro tapa na come-come defunto. Peguei o animalzinho nojento. Sabe-se lá, o que ele encontrou ou deixou por dentro do General. Imaginei um ninho com muitos bebês-mosca. E agora, senhor
—        Desaparece com o corpo!
Ergui a canhota e fiz continência de saudação e obediência
—        Com essa mão, chupa-racha?
—        A outra mão tá segurando o verme!
Desenfiei a mão esquerdista retesada da testa, ela desceu toda empolgada até a perna com uma batida seca e firme. Ficamos os três parados. Imóveis. O cadáver, a mosca e a mão do soldado. O cadáver do General ficava mais duro conforme a madrugada desaparecia. Perdia as reações. A mão da continência começava amolecer. A mosca não se debatia mais, submissa na palma da outra mão. Eu havia recuperado o controle da situação, me sentia magnífico. Consegui. Olhei para o General, ele parecia me sorrir benevolente, um sorriso ausente da ternura, amargo e aborrecido
—        Ainda não acabou, General.
Eu sabia. Nem tudo é rosa na vida de um soldado motorista de general. Acho que se ele pudesse sentava no ataúde e emendava uma última noite de prosa. Uma conversa de pai para filho. Uma fantasia macabra que resuscita os mortos
—        O soldado ainda tem um corpo na mão.
—        Eu sei, General.
Um morto preocupado com corpos, gritos e disfarces. Não parecia olhar a própria desgraça, medo do sono? Ou do lugar e do tempo que lhe estava reservado? Sem que ele pedisse o ajudei a sentar
—        Obrigado, soldado.
Ficamos ali, comandante e comandado. Não passava aquele instante constrangedor em que não sabíamos o que dizer um ao outro, além do silêncio. Até que o galope da morte arrancou o General do sigilo a que tinha se imposto. Ninguém lhe ordenara ficar calado. Apenas, cortesia entre irmãos
—        Eu fui devorado, meu filho. Não pelas culpas, isso nunca, mas pelos excessos. Sempre fui um homem de abusos. A começar pelo contentamento de ter duas pernas diferentes, uma mais curta que a outra ou mais comprida. Entendeu? Tudo é uma questão de perspectiva. Nunca tive a silhueta do mocinho, pelo contrário, gostava de ser o monstro que enjaula. Isso me excitava. O desejo de soltar ou não, decidir quem vive ou morre. O ato é solitário, mas precisava de testemunhas.
—        Senhor, permissão para sentar.
—        À vontade, soldado.
Olhei na volta, escolhi uma cadeira com estofamento. Coloquei ao lado do ataúde. A mão continuava fechada com o verme aprisionado. Fiz um breve cumprimento com a cabeça e sentei. Não tenho a sua idade nem sou desmedido e insalubre como o senhor, mas quis soltar um suspiro de alívio, um capricho de submissão. Conformidade com a sua situação de morto e a minha condição de guarda da sua honra à cabeceira da morte. Sempre fui correto com o General, mas isso não quer dizer que continuarei fechando os olhos aos seus desatinos
—        Pulando do navio, chupa-racha?
—        Estou aqui, não estou?
O General se achava uma vítima dos burocratas, ele tem certeza que a Revolução foi para o brejo por causa dessa gente que nunca matou ou viu alguém ser morto
—        Já morri, chupa-racha. Não é educado falar mal do morto, me esqueçam!
Mas não se convencia, não parecia estar sofrendo, tão pouco me convencia
—        O senhor é um morto que não descansa e não sente as urgências de estar em paz com a vida.
Enrubesci timidamente
—        Afinal, qual o lado do chupa-racha?
Percebi que a voz vinda do ataúde ficara seca e ríspida, queria amedrontar. Em outros tempos, quem sabe sucumbisse ao duelista manejador do medo
—        Eu fico do seu lado, General. É meu dever de soldado e desejo de gratidão. — ele fingia acreditar — Afinal, foi o senhor que ofereceu meu primeiro e único emprego. Tenho casa e uma vida, graças ao senhor. Ninguém fez por mim o que o senhor fez. Escutei, mas não vi suas atrocidades. Graças ao senhor, não senti o gosto da maldade. Vi de longe.
Quando o General reaparecia na porta do Porão, a braguilha desabotoada, as sentinelas perfilavam duras e estaqueadas como mastro da sua bandeira
—        Aquela bandeira não é só minha.
Todos sabemos, senhor. Uns não conseguem acreditar, outros negam, mas, no fundo da solidão de cada um, todos sabemos a resposta
—        Que resposta, soldado?
—        Não lembra mais, General?
A voz do morto abaixou, sussurrava ao pé do meu ouvido, uma macabra navalha golpista... fria e afiada
—        Não esqueça qual o seu lado, o mundo é redondo. A pelota do jogo é sobre a vida e a morte.
Nunca lhe importunei com perguntas que o senhor não quer responder. Eu o conheço melhor que a mim mesmo
—        Cuidado, soldado...
Virei de frente. Senti a voz e a navalha chegando por trás. Uma xerenga em mãos habilidosas é uma guilhotina decapitadora. Nada. Sorri debilmente. Reconheci o medo em mim. A vontade desabotoada do corpo. Cai de joelhos e rezei. Fervorosamente. Pedi ao Pai que perdoasse meus pecados. O vinho é tinto, mas tive que lhe confessar: sabia que era de sangue. O cálice continua cheio.
Lá estava o senhor, no portal do Porão, depois das continências seguia para o estacionamento. Conforme o jeito do seu alisamento vinha o humor. À missão quase sempre favorável e do seu agrado. Eu descia do carro, corria para abrir sua porta. O senhor entrava e sentava alargado. Sem apetite. Um sorriso farto e folgado de esperteza. Acariciava o bigode com o polegar e o dedo fura-bolo, depois cheirava as duas garras. Acho que devia ser para lhe reavivar as memórias das perguntas e das respostas
—        Resposta, soldado? Mas que conversa de morto é essa?
—        A resposta para sua pergunta.
Cutucava o bicho sem olhar o tamanho da vara
—        Porra, chupa-racha! Fala!
O medo enterrou meu coração, congelou minhas veias e meus pés criaram raízes, não conseguia fugir. Mas fugir para onde
—        Nomes! Eu quero nomes!
Fechei as mãos com força. Precisava resistir. A cadeira estofada. As velas. A carne apodrecendo. O cheiro da morte. A indiferença. O capuz. A solidão. As fezes. O mijo. O sangue. O meu corpo nu naquela cela úmida com outros sangues, outras fezes, Ave Maria cheia de graça, Pai nosso que estais no céu
—        E o torturador vai pra onde?
Parou o punho no ar, aquele soco nunca chegou no meu queixo, meus dentes não se partiram, não bebi meu sangue, não morri em suas mãos
—        O que foi isso, chupa-racha?
Glória ao Pai, ao Filho e Espírito Santo
—        A sua pergunta, senhor. Lembra? Eu rezo para que o senhor encontre a resposta.
Se me permite, gostaria de dizer que não gostei desta posição sentada. Pareço mais um convidado que a sentinela dos seus festejos fúnebres. Vigiar sentado é a mesma coisa que olhar com desatenção. O senhor é um defunto que precisa de muito cuidado
—        Soldado, o que vem a ser isso?
Levantei. A boa vigilância não pode gostar da acomodação do serviço
—        Licença para levantar, General!
—        Parece que o soldado já levantou...
Em posição de sentido
—        Conheço o meu dever, senhor. Soldado bom é aquele que cumpre às ordens.
Olhei em volta. Como já perceberam eu tenho o cacoete de olhar em volta, examinar o perímetro. Nunca pensei que o senhor fosse acabar como uma morte lenta e gradual. Não foi tombo ou golpe do azar, muito menos, resultado de alguma navalha golpista. Seu pescoço sem nenhum arranhão. Nenhuma doença, nenhum acidente vascular cerebral. Foi velhice. Os traumas foram sendo temperados com paciência para o entorpecimento da memória até serem engolidos
—        Muito bem, chupa-racha. Soldado apenas mira e aperta o gatilho.
O general Calçacurta nem precisou ter preocupação, tudo foi ensaiado. O piadista e a piada. Os subversivos mais inconformados gritam contra a lei das anistias. Não sabem ou não querem esquecer. Estúpidos. Aposto que o senhor já esqueceu e perdoou todos
—        Nem depois de morto! Não fale merda!
É melhor esquecer, senhor. Acredite. Virar a página e recomeçar das vidas interrompidas. Curar as feridas, lamber os esfolamentos
—        Um jardim de rosas, soldado.
—        Isso, General. Devemos cultivar flores... perfumadas... vermelhas... amarelas...
—        E você, cabo?
—        O que tenho eu, General?
—        Virá cuidar do meu jardim?
Fiz um minuto de silêncio, destes que se fazem nos estádios e parecem intermináveis, as vozearias dos pipoqueiros, sorveteiros, os apitos, os apupos incomodados, bêbados inconformados com o jogo parado. Examinei o perímetro. Ninguém. Os amigos do General ainda estão dormindo. Mas tenho certeza que virão
—        Desculpe-me, General. — fiz um ínfimo intervalo, mas que me pareceu a eternidade do minuto — Acho que o senhor não entendeu. Não tem jardim para o senhor. O seu destino é um armário na parede.
Todos que estavam na curva do rio foram devorados pelos excessos do General. Ele sabe disso, eu e o Jacaré fingimos que não sabemos. Acho melhor mudar o rumo dessa conferência do passado
—        General...
—        Fala, soldado. — ele pareceu sentir o golpe. Ficar em um armário não era sua intenção, queria o chão para alimentar outras ervas daninha. Virar o húmus das vegetações vindouras
—        Outro dia, o soldado Jacaré... o senhor lembra dele?
—        Não, mas continue.
—        Pois bem, ele voltou aos estudos. Lá na escola ouviu do professor de história, um rapazinho recém-saído das fraldas, que a imaginação saudosista e mistificada inventa um passado romântico e constrói o caráter do povo.
Nenhuma reação. Acho que esperei demais desse general
—        E daí, chupa-racha? O povo não queria saber se foi golpe ou revolução. Precisava sentir que a sua vida melhorava. Falhamos nisso.
Esse é o problema, General. O povo. Os subversivos gritam que querem quem governe para ele, o povo. Não nos querem. Berram que produzimos a riqueza com o suor, o sangue e as mãos do povo, mas essa riqueza fica nas mãos dos poucos amigos do General
—        Chupa-racha!
—        Sim, senhor!
—        Não sabe mais o lado da cerca que pode subir?
Não tem lado, General. Pelo menos, não deveria ter. É tudo um povo só
—        Chupa-racha! E o corpo na sua mão?
Lembrei do verme

—        To pensando...
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Leia também:
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 03 - Eu sei, General

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 05 - Sal grosso

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