quinta-feira, 17 de abril de 2014

histórias davóinha: Neinho, fazê o desamô é uma escolha... o ódio é um gosto 07cp

casarão canela preta


o redemoinho da vida
Ensaio 07cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


desgraça pouca é bobagem, basta uma desdita bem pequena para arrancar do conforto o bem-estar habitual, comum, cotidiano: transportar-se ao seu senhoril para um dia cheio de aventuras ou a felicidade de voltar para casa depois de um dia completo de serviços ao patrão. assim, para aquelas pessoas que se deixam sacudir por qualquer anormalidade, o sonho da bem-aventurança vira pesadelo

essa é a tarefa dos reservistas da Viação Anônima estacionados na garagem: regularizar e normalizar os itinerários interrompidos. precisamos agir rapidamente, mas com calma e segurança. devolver ao paraíso das suas casas - ou trabalho, vai saber se não estar em casa pode ser o olimpo -, amontoados para o gradil da engorda e do abate, desgraçadas leitoas e desgraçados leitões

eu e o João Torto fizemos história como o conjunto homem-máquina que mais prestou socorro de transtrocas do carregamento. nossa missão era recolher os passageiros e finalizar o percurso com os menores danos possíveis. substituímos com o 69 as faltas dos colegas ou o quebra-quebra dos ônibus velhos. uma ou outra vez, iniciamos a rota desde a primeira viagem. isso acontecia quando o conjunto titular não comparecia no horário da largada. o 69 era o décimo segundo jogador convocado para entrar em campo desde o início ou chamado para substituir e tranquilizar os usuários. o quebra-galho titular

um emprego sem maiores dificuldades. sentado. contando. cobrando. olhando. reparando. conversando. sem arrependimentos. o banco do cobrador foi feito para mim. para o meu gosto faltava sair da reserva. o João Torto, eu e o 69 com uma rota fixa. um casamento. estabilidade. um enredo ou uma armadilha? gosto do costume de conhecer a rota, mas também não me desagrada o imprevisto

o João Torto já teve percurso de motorista titular. o nome cravado no quadro do horário. o desvio dele foi causo parecido com o tiuzin Jorge. jogatina. pediu emprestado e não pagou. a jogatina é uma desgraça, pelo menos, para o tiuzin Jorge que não consegue se livrar de ganhar menos e perder mais na mesa das cartas. a desconsideração da jogatina com os perdedores é uma agonia para quem fica na felicidade das suas casas esperando a volta do jogador-perdedor

a tragédia pode parecer evitável quando olhamos de perto, comovidos como testemunhas dos dramas pessoais, inadvertidamente desinformados pela proximidade. parece que quanto mais perto estamos menos conseguimos entender o que se passa. a desdita não começa no momento do buraco sem fundo dos acasos, mas bem antes, quando os caminhos vão se construindo até se cruzarem inexplicáveis, misteriosos e obscuros, chamamos de rota de sorte ou azar. precisamos classificar e nomear tudo a nossa volta para o conforto do bem-estar habitual

o João jogou nas cartas mais do que tinha e perdeu. pediu emprestado ao largador. jogou nas cartas o que já devia, e perdeu. jogou o que perdeu, e perdeu. foi quando o largador passou o seu caso para o setor da disciplina na Anônima. os controladores do pânico, desordem, bem-aventurança e obediência, deuses na Anônima, como podemos perceber, se reuniram com o João na sala fechada da correição. o João nunca quis falar. parece que levou alguns tapas. na cara ou onde pudessem acertar. virou o torto da jogatina. o João Torto. era o tempo da ditadura. a sala dos controladores na Anônima era o sovaco das suas práticas amenas, Era um tempo de faroeste, Batatinha.

foi a única vez que o João Torto voltou ao assunto. era motivo da sua vergonha e medo. apanhou sem reagir. entortou quieto, Guri, o patrão manda além do emprego.

saiu do banco de horários. foi enfiado na empresa de mineração do patrão. foi outra coisinha que aprendi. o patrão nunca tem uma só empresa. tem outras que se ajudam, principalmente, na hora de aumentar as despesas da Viação e pedir o aumento das tarifas. mas isso é outro pedaço dessa conversa. voltemos ao João Torto mandado longe. anônimo. o João Torto tinha seu protetor forte.

as forças da mudança se colocaram à caminho para reforçar sua proteção. o largador, para quem o João devia da jogatina, morreu no acaso de um atropelo. é isso, o largador era um sujeito trancando os caminhos, quando perdeu o reforço da força forte se perdeu da vida. dizem que se foi com muito desgosto atravessado na garganta. quem lhe devia favor acabou lhe virando as costas ou passando por cima

o novo largador foi eleito pelos motoristas com a missão de ser igualitário. não funcionou. o patrão da Anônima não gostou de perder a força de escalar o time titular e os reservas. tanto fez e desfez que mudou o largador. precisava ser da sua confiança. há males que vêm para o bem. o João Torto voltou e começou a sentar no banco dos reservas. aos poucos, vez que outra, saia em socorro

lembrei as recomendações davó, Mifiuneto, sempre dá ditê pra quem se socorrê. É só prestá tenção e sabê pedí.

foi quando entrei como cobrador das passagens do 69. logo, nos tornamos a primeira opção da reserva. os primeiros a serem chamados. o conjunto mais rápido. mais forte. mais valente. éramos a esmola do patrão aos passageiros. ele não queria renovar sua frota de ônibus. não via necessidade. alheio a essa discussão, eu me sentia quase titular. o João amansava minha euforia, Calma, moleque. Presta atenção, a mão que dá é a mesma que tira, retruquei que não tinha essa preocupação. ele, é claro, me olhou com a consideração de um pai mais velho e experiente, que o filho não escuta

João, a minha preocupação, se é que se pode chamar de preocupação, é com o cacete embaixo do seu banco, ele carregava uma espécie de marreta, ficava deitada escondida sob o banco do motorista

Não é nada, Batatinha. Apenas, cautela de resguardo. Uma maneira para conquistar corações e mentes. Não vou mais apanhar sem dar o troco.

Já usou?

caminhávamos pelo pátio da garagem até o 69. ele parou, dobrou os joelhos e ficou agachado, me olhava frente a frente, senti o seu hálito de café abraçado em voz macia, Isso importa?

Acho que não, foi minha resposta.

ele levantou e continuamos caminhando, Nunca foi preciso desembalar do pacote.

apressei meus passos, Assim fique, Amém.

o comentário na Viação Anônima era que o humor do João Torto estava de volta. queria que a vocação da tiazin Vanda de achar graça em tudo tivesse um jeito qualquer de voltar, na mesma feição que parecia ter voltado ao João Torto. o jeitão sisudo daqueles dias não lhe pertencia. até o tiuzin Manoel tinha feito anotação do novo feitio da tiazin, O que se dá com a Vanda?

Desembestou-se...

tão de pronto respondi mais depressa senti arrependimento, Bobagem da nêga. Não tem precisão de querê se colocá no lugá da mãinha.

não queria essa conversa de julgamento da tiazin Vanda. dá uma nostalgia, uma vontade de escutar as conversas davó, as risadas da tiazin, e outras coisinhas. a vida ensina a querer viver, não ensina o contrário. a saudade da vida que passou não tem cura, não tem como perder a ternura e abandonar o início carregando tanto amor, A força não é boa conselheira. O tempo ensina melhó, o tiuzin Manoel pareceu adivinhar meus pensamentos de tristeza, a saudade das caras e bocas da avóinha, os seus jeitinhos de sorrir, enrugar a testa e mostrar brabeza.

quando tirei os olhos de mim mesmo entestei o tiuzin Manoel. ele parecia engasgado com alguma coisa que tinha precisão de dizer, mas não desembuchava. impertinente de não parar em nenhum lugar. desceu até a senzala, fez vistoria no lugar dos meus festejos solitários com a professora da geografia e voltou à cozinha, Misobrinho, to lembrando da mãinha, fiquei do jeito que tava, não era a minha hora das lembranças, precisava respeitar as pegadas davó que deixaram marcas no tiuzin, mãinha falava do seu gosto pelo bão e da vontade que tinha de amaldiçoá o ruim, lembra?

fiz cara e imitação davó, a voz até que saiu parecida, Mifioneto, saí dizendo, por aí, o qui é bão e o qui não é bão, é bão, mais é fácil. O trabalhoso é praticá a prática do qui é dito, o tiuzin abriu a sua cara preta num riso gostoso que vem junto das lembranças boas, fez a sua imitação davó

Mifiu, lê livro, escrevê livro, num é sorteamento do destino, é uma escolha. Sabê lê não pode sê uma escôia, é otra obrigação qui os preto precisa ensiná pros fio, eu me animei com a alegria do tiuzin. as lembranças davó acenderam o casarão Canela Preta, ela tava de volta na nossa volta

Miúdo, fazê o desamô é uma escolha, odiá é um gosto.

expliquei ao tiuzin que tava sentindo avóinha. ela entrou murmurando como um assopro. o hálito dos espíritos é lé cum cré se o tiuzin não sabe escutar os assopros da continuação da vida. rezava para continuar escutando os espíritos e avóinha, Neinho, num caminha o caminho das ofensa. O ódio afunda tudo e ocê junto. O rancô odiento tem gosto amarguento da correnteza da morte. Num é gosto bão.

o tiuzin não escutava. a imitação davó foi uma brincadeira das memórias que guardamos com carinho. é assim, para o tiuzin Manoel o que passou é passado. acabou. não volta. é preciso seguir em frente, O moleque já recebeu o primeiro pagamento?

O tiuzin Manoel quer saber o quê?

ele respirou fundo e esfregou as mãos. olhou na volta, um assopro de vento bateu uma das janelas. não tinha vento. arreganhou a dentadura, uma olhadinha pra trás, depois fechou os olhos. um pequeno estremecimento como um arrepio de medo, tentava espantar alguma assombração de aviso, depois das formalidades, seguiu em frente, Quero sabê se o moleque já provô o gosto do primeiro salário...

tanto volteio deve ser o preparatório para algum pedido de favor, ajutório de emergência

Não provei do gosto... parece que amanhã...

E a folga do guri?

Domingo.

bateu as mãos com satisfação e girou o corpo sobre os calcanhares. meia-volta, volver, Perfeito!

não entendi da perfeição de receber o pagamento no sábado e folgar no domingo. uma conversa sem pé nem cabeça, Até amanhã, moleque!

Boa noite, tiuzin.

quando ele abriu a porta, um assopro entrou na sua saída, o hálito era avóinha. ela foi se chegando sem cerimônias de apresentação, Mifiuneto, cuidado com as conversa fácil. Elas tem as palavra qui esconde a vontade escondida. O Capitão só foi achá o valô da nêga Laetitia quando já tava nas corrente e era levado pra longe, o lugá do nunca mais.

foi assim que davó me voltou depois do sumiço do tiuzin João. gostei da sua aparição, precisava das lembranças, aliviar a saudade de não poder ver. não quero esquecer, quero continuar escutando, Bobagem, mifiuneto. A mudeza num qué dizê qui tá ruim nem a tagarelice é aparição do gosto bão. Tem coisa qui só parece, mais num é uqui parece.

abri os olhos e dormi.



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