terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Memórias Póstumas de Brás Cubas: CHIMÈNE, QUI L'EÛT DIT? RODRIGUE, QUI L'EÛT CRU?

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas








CAPÍTULO VI / CHIMÈNE, QUI L'EÛT DIT? RODRIGUE, QUI L'EÛT CRU?



 Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de preto, e ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto. Havia já dois anos que nos não víamos, e eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade.

 Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.

 Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente expeliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edições humanas. O que por agora importa saber é que Virgília — chamava-se Virgília — entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a intercalar-se com alguns fios de prata.

 — Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu.  — Ora, defuntos! respondeu Virgília com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:  — Ando a ver se ponho os vadios para a rua.

 Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro; podíamos falar um ao outro, sem perigo. Virgília deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada.

 — Que idéias essas! interrompeu-me Virgília um tanto zangada. Olhe que não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos vivos.

 E vendo o relógio:

 — Jesus! são três horas. Vou-me embora.

 — Já?

 — Já; virei amanhã ou depois.

 — Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem senhoras...

 — Sua mana?

 — Há de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado. Virgília refletiu um instante, levantou os ombros e disse com gravidade:

 — Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei com o Nhonhô.

 Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade de cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram juntos, dois dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse ao filho:

 — Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que está à morte.

 Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...

 Era o meu delírio que começava.


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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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