segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

19. O Guardador de Rebanhos - XIX - O Luar - Alberto Caeiro

Fernando Pessoa





XIX - O Luar 




O luar quando bate na relva 
Não sei que cousa me lembra... 
Lembra-me a voz da criada velha 
Contando-me contos de fadas. 
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga 
Andava à noite nas estradas 
Socorrendo as crianças maltratadas ...

Se eu já não posso crer que isso é verdade, 
Para que bate o luar na relva?




XX - O Tejo é mais Belo 



O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, 
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios 
E navega nele ainda, 
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está, 
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha 
E o Tejo entra no mar em Portugal. 
Toda a gente sabe isso. 
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia 
E para onde ele vai 
E donde ele vem. 
E por isso porque pertence a menos gente, 
É mais livre e maior o rio da minha aldeia. 

Pelo Tejo vai-se para o Mundo. 
Para além do Tejo há a América 
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além 
Do rio da minha aldeia. 

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. 
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.




XXI - Se Eu Pudesse 


Se eu pudesse trincar a terra toda 
E sentir-lhe uma paladar, 
Seria mais feliz um momento ... 
Mas eu nem sempre quero ser feliz. 
É preciso ser de vez em quando infeliz 
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol, 
E a chuva, quando falta muito, pede-se. 
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade 
Naturalmente, como quem não estranha 
Que haja montanhas e planícies 
E que haja rochedos e erva ... 

O que é preciso é ser-se natural e calmo 
Na felicidade ou na infelicidade, 
Sentir como quem olha, 
Pensar como quem anda, 
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, 
E que o poente é belo e é bela a noite que fica... 

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