sábado, 13 de janeiro de 2018

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: IV - O Gaiato

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa





IV

O GAIATO 

Era a explosão do novo ano: caos de lama e de neve, atravessado por mil carroças, cintilante de brinquedos e de bombons, repleto de cobiças e desesperos. Delírio oficial de uma grande cidade, feito para perturbar o cérebro do mais forte solitário. 

No meio da algazarra e do burburinho, um burro trotava ligeiro, fustigado por um maroto armado de chicote. 

Quando o burro ia dobrando uma esquina, junto à calçada, um cavalheiro todo enluvado, elegante, cruelmente engravatado e encarcerado numa roupa nova, inclinou-se cerimoniosamente diante do humilde animal e disse-lhe, tirando o chapéu: — Saúde e felicidade! Depois, voltou-se para os companheiros com um ar enfatuado, como para pedir-lhes que aplaudissem o seu contentamento. 

O burro não viu o elegante gaiato e continuou a correr zelosamente para onde o chamava o dever. 

Quanto a mim, tomou-me de repente uma raiva incomensurável daquele magnífico imbecil, que me pareceu concentrar em si todo o espírito da França.




V

O QUARTO DUPLO 

Um quarto que parece um sonho, quarto verdadeiramente espiritual, onde a atmosfera parada está ligeiramente tinta de rosa e azul. 

A alma toma aqui um banho de preguiça, aromatizado pela saudade e pelo desejo. É algo de crepuscular, de azulado e de róseo. Sonho de volúpia durante um eclipse. 

Os móveis têm formas alongadas, prostradas, lânguidas. Parecem sonhar. Dir-se-iam dotados de vida sonambúlica, como o vegetal e o mineral. As almofadas falam uma língua muda, como as flores, como o céu, como o sol poente. 

Nas paredes, nenhuma abominação artística. Relativamente ao sonho puro, à impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfêmia. Tudo tem, aqui, claridade bastante e a deliciosa obscuridade da harmonia. 

Um aroma infinitesimal da mais refinada escolha, ao qual se mistura levíssima umidade, paira nesta atmosfera onde o espírito sonolento é embalado por sensações de estufa. 

Chove a musselina em abundância diante das janelas e do leito, espraiando-se em cascatas de neve. Deitada no leito está o ídolo, a soberana dos sonhos. Como, porém, se encontra aqui? Quem a trouxe? Que mágico poder instalou-a neste trono de sonho e volúpia? Que importa? Ei-la! Reconheço-a. 

Olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; sutis e terríveis cinzéis, que reconheço em sua espantosa malícia! Atraem, subjugam, devoram o olhar do imprudente que os contempla. Muitas vezes fitei essas duas estrelas negras que despertam curiosidade e admiração. 

A que demônio benfazejo devo eu o estar assim cercado de mistério, de silêncio e de perfumes? Oh beatitude! O que costumamos chamar vida, mesmo na sua mais feliz expansão, nada tem de comum com esta vida suprema que eu agora conheço e saboreio de minuto a minuto, de segundo a segundo! Não! Já não há minutos, não há segundos! O tempo desapareceu. Reina a Eternidade, uma eternidade de delícias! Súbito, uma pancada terrível ressoa na porta e, como nos sonhos infernais, tenho a impressão de receber no estômago um golpe de picareta. 

Entra um Espectro. É um oficial de justiça que vem torturar-me em nome da lei; ou uma infame concubina que vem gritar miséria e ajuntar as trivialidades de sua vida às dores da minha; ou o mensageiro de um diretor de jornal que reclama a continuação do manuscrito. 

O quarto paradisíaco, o ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide (3), como dizia o grande René (4), toda essa magia desaparece com a pancada brutal dada pelo Espectro. 

Que horror! Lembro-me bem! Sim, lembro-me bem! Esta choupana, abrigo do eterno desgosto, é realmente a minha. Aqui estão os móveis encardidos, empoeirados, gastos; o fogão sem lume e sem brasa, sujo de escarros; as tristes janelas em cuja poeira se veem os sulcos abertos pela chuva; os manuscritos, apagados ou incompletos; a folhinha, em que o lápis marcou as datas sinistras! E aquele perfume de um outro mundo, com o qual eu me embriagava com requintada sensibilidade – ai de mim! – foi substituído por um fedor de fumo misturado com não sei que mofo nauseabundo. Respira-se, agora, o ranço da desolação. 

Neste mundo estreito, mas tão cheio de desgosto, só um objeto conhecido me sorri: a garrafa de láudano. Velha e terrível amiga. Como todas as amigas, ai de mim! Fecunda em carícias e traições. 

Oh! Sim! O Tempo reapareceu. O Tempo reina agora, soberano. E com o hediondo velhote chegou todo o cortejo demoníaco de Lembranças, Saudades, Espasmos, Temores, Angústias, Pesadelos, Cóleras e Neuroses. 

Eu vos asseguro que os segundos, agora, são forte e solenemente acentuados, dizendo cada um, ao sair do relógio: — Eu sou a vida, a vida insuportável e implacável! Só um segundo existe, na vida humana, com a missão de anunciar uma boa nova, a boa nova que a todos causa um medo inexplicável. 

Sim! O Tempo reina. Reassumiu sua ditadura brutal. E me incita, como se eu fora um boi, com seu duplo aguilhão: — Upa! Vamos, besta! Sua, escravo! Vive, maldito!




VI

CADA QUAL COM SUA QUIMERA

Sob um grande céu de cinza, numa vasta planície poeirenta, sem estradas, sem mato, sem espinho, sem urtiga, encontrei vários homens, curvados, a marchar. 

Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera (5), pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou como a mochila de um infante romano. 

Mas a monstruosa besta não era um peso inerte. Ao contrário, envolvia e oprimia o homem com músculos elásticos e potentes. Cravava as garras enormes no peito da montaria. E a cabeça fabulosa dominava a frente do homem, como os elmos medonhos com que os guerreiros antigos pretendiam aumentar o terror do inimigo. 

Interpelei um daqueles homens e perguntei-lhe aonde iam. Respondeu-me que não sabia, nem ele, nem os outros. Evidentemente, porém, acrescentou, iam a alguma parte, pois eram levados por uma incrível necessidade de marchar. 

Coisa curiosa: nenhum dos viajantes parecia irritado com a fera que levava suspensa ao pescoço e colada às costas; dir-se-ia que a considerava como fazendo parte de si mesmo. 

Nenhum daqueles rostos fatigados e sérios demonstrava o menor desespero. Sob a cúpula melancólica do céu, pés mergulhados na areia de um chão tão desolado quanto o céu, caminhavam com a fisionomia resignada dos que estão condenados a esperar sempre. 

O cortejo passou ao meu lado e afundou-se na atmosfera do horizonte, no lugar em que a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano. 

Durante alguns instantes, obstinei-me em querer compreender esse mistério. Logo, porém, a irresistível indiferença abateu-se sobre mim, e eu me senti mais oprimido do que eles com as pesadas Quimeras.



________________


Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.




__________________



__________________

NOTAS

(3) Fêmea do silfo, gênio do ar na mitologia céltica e germânica da Idade Média. 

(4) François-René de CHATEAUBRIAND (1768-1848), ilustre escritor francês, autor de numerosas obras, entre as quais se encontra o romance René (1805), no qual o próprio escritor aparece com o nome do seu herói. René ficou sendo o tipo das almas melancólicas que se perdem no sentimento vago do infinito e na aversão à realidade. 

(5) Monstro com três cabeças, cujo corpo, meio cabra meio leão, tinha cauda de dragão e vomitava chamas pela boca. Foi morto por Belerofonte, herói mitológico.


Nenhum comentário:

Postar um comentário