Ópera do malandro
Ópera do malandro
PRIMEIRO ATO
CENA 1
Casa de Duran; misto de sala de estar, escritório e bazar; Duran está sentado à escrivaninha e fala ao telefone.
DURAN
É isso mesmo, tem que dar um basta nessa malandragem! No dia em que todo brasileiro trabalhar o que eu trabalho, acaba a miséria. Mas viu, Chaves, eu tô te ligando pra lembrar que amanhã é o último dia do mês. . . É, inspetor, a dívida tá em trinta contos e no dia primeiro passa a trinta e três. Hein? Tem nada demais, dez por cento ao mês. A inflação tá galopando aí fora... Abatimento? Sei. Bem, eu vou examinar com a maior boa vontade. . . Oliveira, Oliveira. . . Cremilda Pacheco de Oliveira? Celina, Conceição, Cremilda, é minha sim. . . Vulga Marli Sodoma, quarenta e um aninhos, hummmm. . . Atentado ao pudor, é? Olha, inspetor, sinceramente, eu não sei o que é que essa senhora ainda está fazendo aqui no meu fichário. O quê? Não, não me interessa. A imagem da minha empresa não pode ficar comprometida por causa duma Marli Sodoma! Não, já decidi. Nem por três vinténs. Aciona aí a Operação Faxina, tá bom? O quê? Mudou, é? Ha ha, essa é boa. Operação Detergente, como é que é mesmo? Sei. . . Elimina a gordura sem deixar vestígio? Ha ha ha, formidável, essa agora. . . Sim. Garcia? Maria de Jesus Garcia, tá aqui na mão. . . Ah, claro, é a Jussara Pé de Anjo. O que há com ela? Suadouro, é? Sei, sei. . . É, pois é, ela é violenta mesmo. E um touro! E se você não se cuidar ela destrói a tua delegacia. (Toca a campainha) Pode entrar! Mas olha, solta a Jussara, tá? No fundo ela é boa moça. Trabalha direitinho, trabalha, tem muito cliente que aprecia o jeitão dela. E ela ainda me dá uma mãozinha como leoa-de-chácara. O quê? Duzentos mil-réis? Tá louco, ô Chaves! Não é me extorquindo desse jeito que você vai abater a dívida, não. Cento e cinquenta e olhe lá. (Toca a campainha) Pode entrar! Mais quinhentos mil-réis do quê? Que debutante? Não, hoje não chegou aqui nenhuma debutante. Aliás, a última mocinha que você teve a audácia de me recomendar, eu recusei. É, tava estragada. Pois é. Tem nada de quinhentos mil-réis. Essas tuas debutantes, de agora em diante, eu só recebo em consignação. (Toca a campainha) Eu vou ter que desligar, Chaves, a gente se fala depois. (Toca a campainha; Duran desliga o telefone e berra) Entra, porra! (O sininho toca novamente; Duran levanta-se e vai até a porta, que é uma porta giratória; sai por ela e volta empurrando uma jovem de aparência lamentável, muito magra e com a roupa esfarrapada) Não sabe ler, não? Não viu a placa escrito: entre sem bater?
FICHINHA
Não sei ler, não senhor. . .
DURAN
Ahn. . . Mas não me ouviu ali aos berros? Tá surda ou não limpou o ouvido hoje?
FICHINHA
Acho que tô meio surda, sim senhor.. . Mas me mandaram vir assim mesmo procurar o "seu" Durão.
DURAN
Durão, não. Duran! Fernandes de Duran! Quem foi que te mandou aqui, mulher?
FICHINHA
Foi na cadeia, sim senhor. Disseram pra vir na Rua das Marrecas 32, Agência de Empregos "A Brasileira"... "Seu" Durão é o senhor?
DURAN
Duran! Duran! E o seu nome, qual é?
FICHINHA
Raimunda Dias. Mas me chamam de Fichinha, sim senhor.
DURAN
Fichinha, é?
FICHINHA
Fichinha, sim senhor.
DURAN
E o que é que você foi fazer na cadeia, meu bem? Compras?
DURAN
Aí a coitada tomou um gaiola e veio procurar emprego no Sul, mas não conseguiu porque as pessoas só querem se aproveitar dela porque ela tá só e desprotegida e assim desprotegida ficou no meio-fio esperando condução ali pertinho da Praça Mauá, rodando a bolsa por causa dos mosquitos, quando passou o tintureiro e carregou com ela pro distrito, onde a inocente foi fichada como vadia, vagabunda e puta. . .
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA Dezessete, sim senhor.. .
DURAN Dá uma voltinha aí.
FICHINHA Dou, sim senhor.
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
FICHINHA
DURAN
Claro, minha filha. Ou você pensa que vai arranjar homem com essa carcaça que o diabo lhe deu? Precisa dar um toque aqui, um retoque ali, umas proeminências, umas protuberâncias, um não-sei- quê que satisfaça as taras dos homens. Porque o sujeito que tá cansado do trabalho, cansado de voltar pra casa, cansado do arroz, do feijão, com o saco cheio da mulher, querendo esganar os filhos, você acha que esse sujeito vai parar na zona a fim de quê? De fazer papai e mamãe? Ora, pombas! É por isso que o meu ofício está cada dia mais ingrato. E ao mesmo tempo mais fascinante, por- que tem que estar sempre criando um novo apelo que desperte o sexo exausto da humanidade! (Abre uma cortina mostrando uma vitrine repleta de objetos) Seios de paina, bunda de borracha, bota de sargento, avental de babá, hormônio, foliculina, gumex, pomada japonesa, vibradores, consoladores, chicotes, diafragmas laminados, isto é ciência! E as minhas funcionárias entram com a arte! (Grita) Vitória! Vitória! Venha ensinar a arte a esta jovem!
VITÓRIA
(Descendo as escadas com passo firme) Que isso? Esmola outra vez? Isso já está virando um abuso, já é debochar da caridade cristã! Por onde foi que você entrou? Vai, vai, vai, passa lá na cozinha e pega um naco de pão. Se a gente dá dinheiro, vai tudo pra cachaça.
VITÓRIA
É sim, se fosse pra comer eu dava. A gente tem coração e não sabe negar esmola. Domingo passado, na saída da missa, eu dei cinco tostões prum desgraçado que estava estrebuchando na sarjeta. Na mesma hora o homem ficou bom e correu pro botequim. É cachaça e jogo do bicho, gente ignorante! Sai, sai, sai, eu não dou mais um tostão!
DURAN
Vitória, deixa eu falar.
VITÓRIA
Pois fala, que é que tá esperando?
DURAN
Não é mendiga não...
VITÓRIA
Ah, é a arrumadeira? Trouxe referências? Não? Sem referências eu não aceito mais não. A última que empreguei, se lembra, Duran, foi roubando um garfo, foi surrupiando uma colher, quando fui ver tinha sumido um faqueiro completo de prata. Tem namorado, moça? Com namorado então, nem se fala! A gente é compreensiva, dá um pouco de confiança, a empregada aproveita e passa o dia no portão. . . E o suflê pegando fogo dentro do forno. É por isso que não para empregada na minha casa.
DURAN
Essa é Fichinha, Vitória. Funcionária nova.
VITÓRIA
Funcionária de quem?
DURAN
Vai estagiar na butique dos Arcos.
VITÓRIA
Você ficou maluco, Duran? Tá doente? Botar essa mulher pra trabalhar na butique? Quer dizer, mulher é força de expressão. Isso aí é um equívoco. Isso é um aleijão! Não, não, não eu não posso acreditar.
DURAN
Vitória, eu tenho que trabalhar. Vê aí os acessórios pra ela.
VITÓRIA
Mas isso é um absurdo! Brincadeira de mau gosto... Você vai ver só. Vem cá, moça. . . (Leva Fichinha para trás de um biombo) Vamos tentar o impossível. (Alto) Ih, Duran, essa mulher pelada tá pior do que antes! Encolhe essa barriga d'água, vamos. Barriga. . . Isto é uma moringa cheia de ameba. (Alto) Que comissão você tratou, Duran?
DURAN
A de sempre, cinquenta por cento.
VITÓRIA
Cinquenta por cento? Mas isso é comissão de catarina, loura e de olhos azuis. Não, mocinha, se você quer trabalhar pra gente tem que pagar sessenta, certo?
FICHINHA
Tá certo, sim senhora.
VITÓRIA
Não dá, não dá, isto é uma desgraça. Vê lá se isto é bunda que se apresente. Esta vala nunca foi bunda, nem aqui nem no Nordeste. É, você me desculpe mas não vai dar pra garantir salário-mínimo. Só de enchimento postiço, pintura, proteína, você vai me consumir uma barbaridade! Olha, além dos sessenta tem quinze por cento de acessório, tá?
DURAN
Cadê a tua filha, Vitória?
VITÓRIA
Teresinha ainda deve estar sonhando com os querubins! Aliás, nem sei a que horas ela chegou esta noite. Só sei que o capitão ficou de levar ela ao Cassino da Urca, olha só. . .
DURAN
Capitão? Que capitão?
VITÓRIA
Ora, Dudu, eu já lhe falei do capitão. Ele tem saído muito com a Teresinha ultimamente.
DURAN
Não é aquele bêbado. . .
VITÓRIA
Que nada, Dudu, como você tá desatualizado! O capitão é da pontinha! Parece mesmo um cavalheiro de tradição, família e quiçá propriedades em Petrópolis. Sempre tão elegante, usa luvas de vidro.
DURAN
VITÓRIA
Que ignorância, Duran! Não sabe que luva de vidro é como a gente chama essas luvas daquele tecido novo, importado, como é que é mesmo? É náilon, isso, luvas de náilon, náilon autêntico, importado dos Estados Unidos.
DURAN
Esse capitão é viajado, é?
VITÓRIA
E não! Só dá gorjeta em dólares. Está vendo esse rapé? É da Bolívia. Ele que mandou pra mim, pela Teresinha. Olha, eu não quero tomar partido não, mas pelos agrados que vem fazendo, sei não, acho que o capitão está mesmo bem intencionado.
DURAN
O que você quer dizer com bem intencionado?
VITÓRIA
E se eu conheço alguma coisa do pensamento feminino, a tua filha também tá bem intencionada pra chuchu.
DURAN
Espera aí, Vitória. Você tá falando de caso ou casamento?
VITÓRIA
E por que não casamento? Tua filha já completou vinte e três anos, você sabia?
DURAN
Vitória Regia! A tua filha é uma galinha! Atraca aí um marinheiro de merda e, só porque sabe falar alô, OK e good night my boy, já fica a putinha achando que topou com o Rockefeller. E a vaca velha por trás, só incentivando.
VITÓRIA
Você é bem grosso, hein? Se há uma coisa no mundo de que você não pode me acusar é de saber pouco de homem. Certo, me enganei uma vez e de maneira fatal. Com você!
DURAN
Escuta, Vitória, eu dou toda a independência à tua filha. Ela tem até entrada independente pra ir e vir com quem quiser. Mas daí a casar vai um passo multo grande. Já mexe com a minha vida! Interfere no meu patrimônio!
VITÓRIA
Mas, Dudu, é inevitável que ela se case um dia, que tenha filhos, um lar, tudo isso que faz uma mulher se sentir realizada. Assim como eu. . .
DURAN
Teresinha é o nosso maior investimento, Vitória! Ninguém aqui criou essa menina pra mulher de malandro não! O que a gente aplicou nela, é pra futura mulher de ministro de Estado, pelo menos. E quando ela arrumar um ministro de Estado, que o traga pela porta da frente e me apresente a ele, entendido?
VITÓRIA
Te apresenta como, se você nem fala com ela?
DURAN
Eu? Ela é que não fala comigo.
VITÓRIA
Vocês dois são tão parecidos! Tão cabeçudos!
DURAN
Ela não sabe se valorizar. Se tivesse um mínimo de tino comercial, saberia que cinquenta quilos de carne não se dão assim pra qualquer um comer de graça não. Ah, se eu tivesse o corpo dela!
VITÓRIA
Você tá subestimando a cabecinha da tua filha, Dudu. Eu que falo com ela, e muito, sei que ela não há de aceitar proposta de casamento sem estar muito bem coberta. Aliás, ela gosta muito de imitar essas moças de sociedade que saem no jornal de domingo. Teresinha gosta de levar vantagem em tudo. Já disse e repito, Duran: ela é a tua cara!
DURAN
Queria acreditar nisso, Vitória, mas eu tenho medo. Em nossa família não pode caber um sanguessuga.
VITÓRIA
Pode deixar que ela não vai prejudicar a gente. Eu ponho a mão no fogo pela honestidade da minha filha. Fichinha sai de trás do biombo, irreconhecível
FICHINHA
Licença. . .
VITÓRIA
Olha só, Duran! E não é que você tinha vazão?
DURAN
Mas é claro, mulher! Quando é que você vai parar de duvidar dos meus milagres? Fichinha, você está uma tetéia! Agora dona Vitória vai-lhe ensinar como é que se faz pra viver do amor.
Vitória canta "Viver do Amor"
Pra se viver do amor
Há que esquecer o amor
Há que se amar
Sem amar
Sem prazer
E com despertador
— como um funcionário
Há que penar no amor
Pra se ganhar no amor
Há que apanhar
E sangrar
E suar
Como um trabalhador
Ai, o amor
Jamais foi um sonho
O amor, eu bem sei Já provei
E é um veneno medonho
É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não ê um vício
O amor ê sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar É iluminar a dor
como um missionário
VITÓRIA
Vai, minha filha. Deus te abençoe.
Viver do Amor ( Lucinha Lins)
continua...
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
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Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1b)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
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