domingo, 25 de maio de 2025

crônica - o desmamar é uma despedida

o desmamar é uma despedida

baitasar

   acorda antes do sol, é um desadormecer cansado, apressado, prepara o café com um sorriso afobado, muitas tarefas de cuidar e ensinar, plantar sementes, partes de si mesma vão ficando pelos caminhos – carreiros sem volta –, carregadora de sonhos, passos acelerados, palavras doces entre gritos e sussurros, medos e ousadias, fingimentos verdadeiros e verdades inventadas, rotinas de pequenos gestos escondidos na sombra do silêncio
   uma fortaleza invisível que planeja seu retorno à outra das suas vidas, vai correndo pelo caminho, diz que está preparada, sabe como chegou até aqui, mulher corajosa, mãe amorosa, professora determinada, mulheres construindo pontes de esperança com gana, força e dedicação
   não para entre o ir e vir das ruas coloridas, uma vida de esforço constante, uma peregrinação sem tréguas para cumprir no tempo das horas, não esquece seu compromisso com a magia e o sonho, vive e ama intensamente numa combinação silenciosa de entrega e desassombro
   mulheres competentes e sedutoras, anônimas, noites infindáveis sem dormir, as vidas misturadas, cuidando da febre ou planejando suas aulas, golpes de dor, angústia e cansaço, alimentadas pelas lembranças de quem ela é e o que quer, e muito mais
   não desiste
   acredita que crianças precisam chances justas, francas e sinceras, momentos favoráveis para o aprendizado, inventa o sonho em sala de aula e se lança para quem quiser lhe seguir, revira do avesso as manhãs e tardes
   não aceita que joguem crianças num calabouço com pão e água, Sala de aula não é uma prisão nem um cinema silencioso comportável, é arte, diversão, balé, vida inteira e não pela metade, para quando se desembaraçarem da escola saberão que nunca estiveram presas!
   sai cedo para o trabalho que lhe impõe força nos ombros e pernas, alicerça e escora sua pequena família, não é um acordamento ufanista, Bom dia, prefeito! Bom dia, minha querida diretora! Aqui vou eu... para um dever a ser cumprido sozinha, onde as paredes se movem, apertam e desabotoam sua quietude, exigindo mais e mais, cada vez mais
   hoje, não está sozinha, carrega abotoada em seu corpo sua pequenina filha
   o desmamar e a chegada na creche não é mais um ensaio, agora é para valer, não é ilusão, é preciso ter cuidado, a criança e a mãe chegam, sua pequenina boca quer espremer a teta, a mãe sai, sente-se malvada, chora sob aquele olhar desenxabido
   uma nova parecença precisa se formar no calor do corpo, não há outra saída aceitável, agora há um outro olhar, o toque suave das mãos não é o mesmo, o cheiro mudou-se, é preciso esperar pelo entardecer para reencontrar a cumplicidade da mãe, é preciso acreditar que serão dias a mais, dias melhores
   o tempo do desmame é inevitável, sentimentos amontoados e desencontrados cismam que desmamar é uma tarefa universal simples e compreensível, ambas, mãe e filha, desmamando para sempre – nenhuma separação entre elas é para sempre –, uma desapegando do costume vital de mamar na teta, a outra desgrudando para soltar, uma apartação antecipada, todos os dias aprendendo que o leite derramado da teta rósea é mais selvagem que a mamadeira rósea
   mau humor, gritaria, choro, culpa, e no mundo, o mais absoluto silêncio, precisam encontrar novos sabores e texturas, uma outra vida cheia de surpresas, é inevitável, aonde quer que uma vá leva a outra no olhar para sempre
   junto com essa transição e perseguição, elas espalham pelo chão muitas histórias, abacate esmagado, maçã raspada, banana de colherinha, cores e formas divertidas, as duas se tocando, cheirando e lambuzando do jeito que a vida quer, vivendo do jeito que dá
   a tristeza se cala, mãe e filha precisam acreditar que os momentos dedicados a amamentação agora são transformados em formalidades de afeto nos braços da “tia da creche”, o colo no lugar do peito
o desmame se tornou um tempo de descobertas, o choro distorcido em riso cismado, precisam se permitir na saudade do que está por vir, o amor que têm no coração e o beijo doce que têm na boca alimentam lembranças de quem elas são e de quem elas querem ser, um gosto com sabores de contentamento
   quando Cariciosa retorna à creche, no fim do dia, o tempo da tristeza passa, as duas se fortalecem sem muitas palavras, sem muitos ruídos, se olham pelas estrelas, anoiteceu, precisam chegar, ninguém corre em seu socorro na escuridão, é um levar e buscar, partir e voltar, fazer e desfazer diário, um esquecer de si mesma
   eu, um observador com a sabedoria do macho que jamais irá parir ou amamentar, deixo escapar frases de controle que todo pai – ou quase todos, alguns pelo menos – anuncia em uma tentativa de se fazer compreendendo, Acho que o segredo mais desafiador da maternidade está em deixar ir, eu sei, é uma frase de soltura, flertando com um saber que jamais iremos compreender, alimentar com o próprio corpo, primeiro com as entranhas e os sentidos, depois com a pele, o cheiro
   mesmo assim, quero continuar tentando, tenho outras pérolas, não é só essa, O amor se transforma e nos reinventa nas pequenas e delicadas despedidas!
   ok, eu sei, tudo bem, calado sou uma inspiração, em minha defesa, no caso de precisar de alguma justificação, reclamo que ninguém veio em meu socorro, autodidata – ou quase isso –, um analfabeto funcional deseducado para tanto oferecimento entre mãe e filha, mas enfim, choradeira de menino para lá, continuo com meu atrevimento aforismático – um pequeno refúgio –, não evito minha ambição de definir em frases a necessidade da proximidade, do reconhecimento entre as duas, e a possível inteligência de alguma frase – crença alimentada pela professora de redação na escola – até poderá coincidir com a verdade – a minha muito possivelmente, e mais raramente, com a verdade de outras gentes –, e será, muitas vezes, por mero acaso, O desmame não é um final, é uma nova etapa cheia de promessas, descobertas e, principalmente, amor!
   desde que Mariá nasceu, a amamentação é um dos prazeres doloridos da maternidade para Cariciosa, cada vez que a menininha se aconchega em seu corpo, buscando conforto, acontece a troca mágica do alimento e do amor, conversam em silêncio
   é visível que o desmame está cercado de angústias, dúvidas, e também alegrias de crescimento, é inevitável o retorno às outras das suas vidas em casa, na escola, na creche, novas rotinas e sabores, choros e frustrações, momentos difíceis de cansaço e inquietações para destrocar o conforto que a teta pode oferecer, a conexão que vai além do físico, um laço indestrutível que, mesmo em transição, fortalece seus dias
   de todas as mudanças a mais difícil para Cariciosa foi deixar Mariá na creche, amedronta deixar sua menininha em outras mãos, algumas portas se fechando, outra se abrindo, não precisou de convencimento, o trabalho de educadora estava incorporado nas economias e na vida das duas, uma compensação necessária e bem-vinda para essa vida, às vezes, amontoada e desencontrada com tarefas da escola em casa – e em casa na escola –, muitas amarras, noites sem dormir, empurrando o mundo com coragem
   desmamar é uma despedida
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