quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A poesia da sobrevivência

Teatro Pedagógico 01
baitasar
Já passaram seis horas de algumas tentativas solitárias e muitas frustrações. O sinal já espalhou de maneira impressionante sua voz estridente, desatou pequenos e alegres passos pelo portão, outros caminhares se dirigem resignados à geladeira, cafeteira, quadro de avisos. São grandes e desalegres. Olho o relógio pela quinta vez em trinta minutos. O tempo se arrasta. A vida fica a reboque do portão para dentro. Sinto-me insuportavelmente vazia, mais uma terça-feira, mais uma reunião me espera. Antes, cafezinhos, chás, bolos e chimarrão. Procuro por um olhar que nasce deste mesmo parto de querer mudar. O olhar da esperança de fazer diferente em uma única vez. Desaninhar.
Passo pelo pequeno briquitar do corredor em cima da fórmica verde. O tempo dos tamancos e bolsas, para mim, é o momento de fumar. Acendo um cigarro. Dou uma espiada, ao centro o nada, apenas as fatias de interesses para muita conversa. As palavras doces e vazias pulam e repenicam, não se fazem na discussão, não se alimentam, não têm fome. Futebol ou bonecas. Sigo perdida entre a bola e o verniz. Duas mortes. Tragédia.
Não sou nem pela metade o que fui.
Minha vontade é reencontrar o olhar que parece soltar um grito ferido, além do caminho coberto pelo apertado das compras, um lugar alheio às confidências perdidas, esforço estéril de falar e ninguém escutar além das queixas descontentes. Conversamos sobre livros, trocamos ideias e olhares, as coisas da vida, os alunos. Viajo em suas palavras tentando vislumbrar segredos, penetrar no seu mundo escondido, uma caverna de sonhos ou medos, quem sabe apesar dos pesares um buraco de paixões.
Não o encontro.
Termino meu cigarro e entro no abrigo. Queixumes, silêncios, folhinhas (quase sempre as mesmas) bancárias. Encontro o Marko, sua voz vem de longe, envolve meus pensamentos, desacata certezas acomodadas. Ele se lança pacientemente na tentativa de discutir o mundo. Não consigo me colocar na discussão, fico alheia. Tenho mais de vinte anos pensando educação a partir de diferentes espaços: sala de aula, sindicato, partido político, diretório acadêmico e dirigente institucional, certamente, poderia contribuir, como muitas vezes o faço, mas me sinto insuportavelmente vazia, insurgentemente trágica.
Saio para refumar.
Finalmente, o vejo. Abraço seu sorriso, o repertório da sua ternura, suas reticências. O chamam recluso casmurro. Senta em uma pedra e me oferece um chimarrão, agradeço
—        A qual destino deveria me entregar, Anita? — não respondo, não quero responder, quero ser o alimento, a comida, a sede, bebida aos goles por essas mãos em minhas coxas lisas, me salvando de toda essa confusão que é viver consertando à vida. Quero a recordação das mãos, boca, cheiro, tudo nosso — Minha tentação é fugir, escapar de fininho.
Respondo que a fuga é uma chance fugaz, um apetite morno que é possível resistir. Resisto ao desejo de ficar pendurada em seu pescoço. Quero a infinitude do abraço manso e descansado. Mudo o rumo da minha voz para impor silêncio, decretar uma distância razoável, depois pergunto
—        Como será que me veem? Patrão ou joão? Senhoria ou maria?
—        Com benevolência. — me responde.
Outro sorriso e me oferece o chimarrão.
A benevolência, clemência e compaixão situam a nossa tristeza humana, mas não bastam. Termino meu cigarro. Não, ele é que termina comigo. Censuro-me. Cedo às obrigações do cotidiano que me abraça e sufoca. Termino o chimarrão, Já volto, e entro no abrigo. O confidente do corredor é o meu desejo da alma, a negação do meu estado de viver só, magoada por não viver inteira.
Encontro a Camila, cabelos curtos e cacheados, ás vezes, loira, outras nem tanto, quando esquece a tintura e o branco na raiz aparece fingindo que é branco, o rosto magro, o olhar suave e alegre, a esperança conformada com o tempo que passa
—        Não concorda, Anita?
—        Com o quê?
—        Vivemos no país das bolsas e das cotas, fazem filhos e depois querem uma ajudinha. Não pensam, não se planejam, têm mais é que se danar!
Não tenho tempo para responder, mas a Ofélia não se constrange de continuar com o tiroteio, atira em nossas caras
—        Os pais deveriam voltar a sofrer na fila das matrículas, as palavras brotam enérgicas da sua raiva, só assim para valorizarem a chance do filho estudar.
—        Ofélia, pensa assim, pelo menos na fila não estão fazendo filhos. – essa é Acemira, mais conhecida entre os subalternos da corporação, como “bruxa, mas gostosa”. É desenhada na maioria das teias imaginárias, faz a personagem da mulher invisível e nua.
Não consegui abrir a boca, não quis
—        Acho que poderíamos fazer uma campanha séria sobre o tema: A Paternidade e a Maternidade com Responsabilidade. — a Camila é do bem, mas não tem força, e o bem que não tem coragem fica apenas na teoria, olha em torno de si, tem a intenção, mas falha no entusiasmo para avançar sem a aprovação explícita do baixo clero, não luta de lança firme na mão
—        Não é mais fácil esterilizar? — a Acemira consegue com poucas e más palavras provocar a ira e o sorriso, mas jamais a indiferença, Filha da puta! Pelo silêncio no abrigo e os olhos fixados em mim, o pensamento saltou da garganta
—        Acemira, isso é a solução final. — a inócua Camila, abelha pequenina, permite que lhe tirem impunemente o mel, o cheiro fétido das fossas escondidas espalha-se, sufoca. Peço socorro ao Marko, o pai da educação socialista que não sabemos e nem temos, não está no abrigo, sinto falta da sua calma indestrutível
—        Querida, nascem nessas vilas de papelão e lata só para sobreviver... não tem solução amorosa. E o desfecho é o nosso colo, com café, almoço e muita bagunça. Isso aqui não é restaurante. A pobreza precisa controle. — a imbecil da Ofélia não quer respostas, tem a convicção do diagnóstico e a receita é servida com indiferença
—        Não acredito no que estou ouvindo, a embasbacada Camila balança a cabeça como se fosse preciso mostrar que não concorda, a única saída para os pobres é a morte?
—        Camila, essa gentinha brota como musgo na pedra. — a iníqua Acemira continua batendo, a adversária cambaleia nas cordas, o nocaute está iminente. Ela está pronta ter o seu braço erguido como a absoluta vitoriosa daquela discussão tola e cruel, mas que marca os espaços do imobilismo daquele cotidiano amarrado nos punhos e pés. Sinto pena por reconhecer a minha indiferença como uma fuga amornada da vontade de brigar
—        Mas não são apenas as meninas pobres que estão engravidando...
Isso dito assim, fui eu, mas Acemira não se intimida
—        Tudo bem, mas essas meninas têm pais que dão um jeito.
—        Fazem a filha abortar? — Camila voltou à discussão
—        Claro que não! — a doente de imbecilidade Ofélia acredita que tem muito mais para dizer em nome de algum deus brigalhão — Criam todos juntos.
Eu não consigo enxergar as coisas assim, a maneira das ofélias, como se o destino das pessoas já estivesse traçado e não restasse outra coisa que vivê-lo
—        Pensar em esterilizar mulher pobre parece campanha do canil da cidade. — a pobreza atrapalha a escola, estorva as ruas, atravanca os cinemas, perturba a cama, restaurantes se desembaraçam dos restos, os lixos ficam revirados
—        Qual a solução, pergunta desafiadora, Acemira, ela deixa escapar um tênue sorriso, imperfeito, quase invisível, como uma cilada na espreita
—        Não tem uma solução apenas, mas uma delas passa aqui, por todos, a dormideira Camila avança, quer subir no cavalo encilhado, tem medo do bicho xucro, fica com as frases prontas da retórica sem veemência, panfletária, precisamos discutir o inchaço das cidades pela concentração da posse e uso das terras, por exemplo.
—        Isso é ingenuidade! — todos se voltam para o Samuel, o futuro na vida dessas pessoas é hoje, não apostam no amanhã, não podem, colhem o que lhes for possível pelo caminho, sem freios ou arreios.

A poesia da vila, na beirada do córrego, os mosquitos, as moscas, doenças, cheiros do desamor, cedeu seu lugar à sobrevivência.

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