Fernando Pessoa
Uns governam o mundo, outros são o mundo.
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê.
Haja ou não deuses, deles somos servos.
Dormimos a vida.
Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.
O coração, se pudesse pensar, pararia.
A quem vivendo não sabe ter vida.
Tenho que escolher o que detesto - ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
... e o meu sossego é feito de resignação.
... uma alma mais cansada do que os olhos.
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.
Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu.
Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida.
Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração.
Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas ardem dentro do meu coração.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.
Sofro de não sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente....
Toda a paisagem não está em nenhuma parte.
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa?
Acordo para saber que existo...
As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4º andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.
Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas - intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas - a pretensão que têm certos homens, de que, por entendimento com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre eles, exclusos todos nós outros - os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios de ser mais fácil que o comércio com a gramática?
Como todos os apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente.
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia - pelo menos talvez - ter convertido em amor ou afecto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.
Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida...
Não vejo, sem pensar.
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Mais Auto-ajuda:
Auto-ajuda: Mafalda
Auto-ajuda: Vira vira pelados... que se dane o agourento namorado
Uns governam o mundo, outros são o mundo.
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê.
Haja ou não deuses, deles somos servos.
Dormimos a vida.
Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.
O coração, se pudesse pensar, pararia.
A quem vivendo não sabe ter vida.
Tenho que escolher o que detesto - ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
... e o meu sossego é feito de resignação.
... uma alma mais cansada do que os olhos.
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.
Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu.
Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida.
Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração.
Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas ardem dentro do meu coração.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.
Sofro de não sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente....
Toda a paisagem não está em nenhuma parte.
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa?
Acordo para saber que existo...
As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4º andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.
Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas - intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas - a pretensão que têm certos homens, de que, por entendimento com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre eles, exclusos todos nós outros - os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios de ser mais fácil que o comércio com a gramática?
Como todos os apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente.
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia - pelo menos talvez - ter convertido em amor ou afecto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.
Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida...
Não vejo, sem pensar.
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