Fischer: “A Feira não é uma feira de literatura, é uma feira do livro”
SUL 21
“A minha ideia é tentar ser uma voz a favor do leitor” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Iuri Müller
Quando chegar novembro, a 59° Feira do Livro de Porto Alegre vai encontrar em seu patrono não apenas um homenageado, “mas um embaixador do leitor”. O professor e escritor Luís Augusto Fischer, aos cinquenta e cinco anos, defende que a Feira precisa de “variedade de livros e variedade social”, para além das capas que nos últimos anos têm se repetido em grande parte das bancas. Fischer, no entanto, afirma que o formato atual, de feira aberta em praça pública, ainda é o mais interessante para o evento.
Em entrevista ao Sul21, Luís Augusto Fischer defendeu que é natural que a Feira do Livro não abrigue o debate “profundo e especializado”, mas que busque atrair o público geral, ainda distante do romance e da poesia. O patrono trata a Feira como “do livro”, mais do que “da literatura”, e diz que são os aspectos triviais que aproximam o evento do imaginário da cidade – como o fato de comercializar livros de culinária e de ginástica e de acontecer na primavera, tempo em que Porto Alegre se embeleza na Praça da Alfândega.
Sul21 – Que possibilidades e limitações têm o patrono para modificar internamente o evento, entrar de fato nas discussões que movem a Feira do Livro?
Luís Augusto Fischer – Quando acabaram por escolher o meu nome eu fiquei meio sem saber o que dizer, o que é estranho, pois há quem tenha sido derrotado, enfim. Mas em seguida eu me articulei com uma ideia, que já apareceu na imprensa, de eu me tornar o embaixador do leitor. É a minha forma de entender as coisas, e citei o Ruy Carlos Ostermann como referência disso. Quando ele foi patrono (em 2002), afirmava que não se sentia como um homenageado, mas como alguém que tinha um papel de mediador no evento. Isso de alguma forma se opõe a uma ideia que é de certa forma charmosa, mas que não me interessa muito, de eu me sentir homenageado. Essa fantasia é muito forte. Quando eu voltei para aula os meus alunos da faculdade diziam: “tu vais continuar dando aula depois de ser patrono?”. “Como assim? Tu achas que eu fui eleito rei?”, eu respondia. Então tem um pouco uma ideia de se descolar da realidade. A minha ideia é essa de tentar ser uma voz a favor do leitor. Isso tem implicações, por exemplo, eu mesmo já tinha escrito em outras ocasiões da Feira que ela tem um problema de oligopolização.
“Há uma guerra meio surda dentro da Câmara Riograndense do Livro” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Há também a crítica sobre a falta de diversidade das bancas, dos livros que se repetem pela Feira, sem espaço para grandes surpresas.
Luís Augusto Fischer – A verdade é que tem uma guerra meio surda dentro da Câmara Riograndense do Livro, porque na prática a Câmara tem cada vez menos livreiros. Livreiros de rua, por exemplo, não entram na Feira. A Bamboletras, por exemplo, parou de participar. De modo que são poucas as livrarias de rua e as redes de livraria nacionais não são associadas da Câmara, portanto não têm banca. Não adianta ser filiado na Câmara Brasileira do Livro, é preciso entrar na Riograndense. Isso é mais uma coisa do nosso meio separatista, quem sabe. Criaram uma Câmara Riograndense do Livro que tem méritos, claro, porque fez a Feira. Mas as editoras nacionais não têm lugar. Elas só têm, na verdade, via um distribuidor. A Companhia das Letras, por exemplo, adoraria colocar uma banca, mas tem que colocar de forma indireta. Então há muita discussão de bastidor que acaba interferindo nisso.
Sul21 – E o patrono pode se envolver nesses problemas?
Luís Augusto Fischer – É o que eu estava começando a explicar. A minha colocação é essa. Conhecendo o panorama, eu disse: “eu sou o embaixador do leitor”. Claro que eu me interesso que as pessoas comprem livros, mas eu vou continuar olhando para a Feira do ponto de vista de um leitor. E o que eu quero como leitor? Quero variedade e quero encontrar livro barato. Eu nunca perdoei a Feira por ter abolido o desconto obrigatório de 20% que existia, e já não tem há mais de dez anos. Mas, enfim, o meu negócio é esse de me colocar no ângulo do leitor e a favor de variedade. Essa é a palavra de ordem para mim: variedade de livros e variedade social. Vou aproveitar esse espaço para dizer que a Feira é de todo mundo, que o legal da nossa Feira é que ela é feita em praça pública, não é de ninguém e ali não precisa pagar para participar.
Sul21 – Na Feira, os debates acontecem de forma paralela em relação à venda de livros. Como fazer com que essas discussões, que já acontecem e trazem inclusive escritores de fora, se aproximem da compra, da atividade cotidiana da Feira?
“A literatura, em todo o ocidente, entrou no circuito das celebridades | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Luís Augusto Fischer – Na verdade, não sei bem se tem como combinar. Os debates paralelos e as oficinas são relativamente recentes, aconteceram nos últimos quinze anos. Eu escrevi um livrinho sobre a história da Feira quando ela fez 50 anos e lá tem essas datas, que agora eu não me lembro muito bem de cabeça. Mas eu me lembro que nos anos 1980, por exemplo, era muito difícil encontrar público para qualquer atividade paralela. Havia, no máximo, chance do escritor autografar os lançamentos. E o debate era uma coisa vista como uma bizarria. De lá para cá, o que aconteceu foi que a literatura em todo o ocidente entrou no circuito das celebridades. Começou a acontecer muito desses festivais como a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e esses festivais dão o tom de um evento literário ligado ao escritor, e não ao livro. Então no fundo são duas coisas paralelas mesmo.
Uma coisa é o cara que está na banca vendendo livro e que talvez não seja um grande leitor. É um comerciante que pode ser mais bem aparelhado ou menos, mas não está na cabeça dele a preocupação com esse mundo dos debates. Essa parte paralela existe porque Porto Alegre faz debate, acredito. É de fora para dentro da Feira. Os vendedores, por contra própria, não teriam tomado essa iniciativa. É o tributo que se paga por causa desse modelo de festival, que é diferente de feira. No festival, vem um cara de nome, por vezes um cara interessante. Mas quase sempre o festival não tem qualquer enraizamento na cidade em que acontece, ao contrário da feira. Na feira, os colégios vão lá, tem toda uma trama. Paraty por vezes é uma palhaçada. Traz um escritor, ele vem de avião, dá uma palestra, fala com três ou quatro e é isso aí. Trata-se do mesmo modelo do mundo das celebridades em geral, do glamour. E a nossa Feira, o legal dela é que ela tem essa combinação intensa. Acho que a venda e os debates são duas coisas paralelas que encontram um ponto de articulação na vontade da Câmara do Livro.
Sul21 – Como o leitor que já frequenta as livrarias de Porto Alegre, que busca livros nos sebos do Centro, por exemplo, pode ser surpreendido na Feira do Livro?
Luís Augusto Fischer – Também não sei se eu tenho uma resposta positiva para isso. Já escrevi sobre isso em outros anos, a Feira é um lugar para amador. Não é um lugar para profissional. Quem é profissional do livro, como é o meu caso, que sou professor de Literatura, trabalho para editoras, dou aula, além de gostar de ler, participa pouco. Eu não espero a Feira para comprar livros, quando eu preciso de livro eu compro em qualquer época do ano. E assim eu acho que é para todo mundo que é profissional do ramo. Nos dois sentidos da palavra, a Feira é um lugar para amador. É um lugar para o não profissional e é um lugar para o cara que ama, ou que quer amar, ou que tem uma relação amorosa com os livros.
Então não sei bem como melhorar para quem já é profissional. Acho que há detalhes que a Feira poderia ser melhor, como a área internacional. Poderia ter uma qualidade maior, mas também não é nítido sobre como fazer isso. Algumas vezes já se tentou trazer editoras de fora, e nisso havia embaraços burocráticos como para trazer editoras de Buenos Aires ou mesmo uma editora como a da Banda Oriental, que é do Uruguai, e era difícil porque tinha entraves. Realmente acho que a Feira não é um lugar para superespecialistas. É um lugar mais genérico.
“Acho que a Feira não é um lugar para superespecialistas. É um lugar mais genérico” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – E para esse público amador que por vezes encontra os livros apenas uma vez por ano, justamente no período da Feira, como ela pode ajudá-lo a se tornar um leitor mais crítico, ou ao menos mais habitual?
Luís Augusto Fischer – Acho que em parte essa tarefa é cumprida com os debates. A Feira do Livro pode acolher este debate crítico, mas não é o foco dela e eu acho que nem tem que ser mesmo. Claro que ela tem um aspecto educativo muito importante no sentido, por exemplo, de proporcionar encontro com escritores ou proporcionar a variedade de livros. Mas algo mais profundo eu não sei. Uma vez eu estive até envolvido em uma tentativa que tem a ver com isso. A Feira não tem, não articula, não organiza uma iniciativa como um fórum de resenhas de livros. Poderia ter. (Uma mulher passa na Rua Vieira de Castro e cumprimenta Luís Augusto Fischer.) Viu só, me tornei a rainha da primavera, agora me cumprimentam na rua. Este negócio de patrono da Feira dá muito visibilidade.
Sul21 – A tua produção se ocupou algumas vezes do cotidiano cultural da cidade, como o “Dicionário de Porto-Alegrês” e os próprios escritos sobre a história da Feira do Livro. De alguma maneira, mesmo que não receba como uma homenagem, o fato de ter sido escolhido como o patrono deve causar alegria.
Luís Augusto Fischer – É uma coisa envaidecedora, de fato. Eu me identifico muito com a Feira do Livro, isso muito antes de ser patrono. Já estive em várias instâncias, em vários lados da situação. Trabalhei, no governo municipal do Tarso Genro, na coordenação do livro e dei uma pequena contribuição numa situação que a Feira passou naquela época. Antigamente a Feira não tinha cobertura, as barracas ficavam expostas ao tempo. Os livros molhavam quando chovia, era um horror. E o Julio Zanotta, quando foi presidente, inventou de cobrir uma ala, um corredor central. E foi um deus nos acuda. “O que é isso? Para que cobrir? É dinheiro posto fora!”. Hoje em dia isso é completamente óbvio. Até em feira do melão tu contratas uma cobertura daquelas. E o Julio meio que inventou isso daí, ele foi um cara muito importante e naquela época eu estive do lado dele.
Com a publicação do “Dicionário do Porto-Alegrês”, fui duas vezes o escritor mais vendido da Feira, em 1999 e 2000. Inclusive essa condição de ser cumprimentado do supermercado, eu já tinha passado por isso nesta época. Já tive meus minutos de glória. Olhando o tanto quanto é possível observar de fora, penso que tem cabimento que eu seja patrono. Não sou melhor do ninguém, mas realmente eu tenho muita identificação com o evento. Mas por eu ter um papel público mais como crítico literário, eu tinha impressão de que não era muito óbvio eu ser convidado. Talvez fosse mais tranquilo convidar alguém que seja homenageado, um bom escritor que publicou um livro interessante, coloca o cara lá. Eu vi isso acontecer. Em outra época, o patrono aparecia na abertura e era isso, não aparecia mais por lá. Então eu me sinto vaidoso, tenho pai e mãe ainda, e eles ficaram muito felizes.
“A Feira não é uma feira de literatura, é uma feira do livro. É o livro de culinária, de ginástica, qualquer livro” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Mesmo quem não vai para a Feira esperando encontrar um tesouro literário, imagino que a frequente quase que por hábito. Quais são as tuas primeiras recordações da Feira?
Luís Augusto Fischer – Lembro a primeira vez que fui voluntariamente. Já havia ido antes com a escola ou a família, mas, lá pelos meus 11, 12 anos, fui para comprar um livro específico. Era um livro que fez fama na época e que hoje eu não recomendaria para ninguém, o “Eram os Deuses Astronautas?”. Quando esse livro foi traduzido aqui, na década de 1970, fui só para comprar esse livro e comprei. Para mim é uma memória importante. Não apenas porque é da minha história pessoal, mas isso é uma mostra de como a formação do leitor é algo não é linear. Assim como muita gente leu aquele livro e nunca mais leu outros livros, quem sabe. Ou ficou só lendo sobre ovnis, sei lá eu. Este é um aspecto interessante da Feira que eu acho legal de enfatizar. A Feira não é uma feira de literatura, é uma feira do livro. É o livro de culinária, de ginástica, qualquer livro. Claro que nós que somos letrados gostamos mais de literatura e de poesia, mas a Feira é do livro, é que nem feira do peixe, feira do pêssego.
Sul21 – O que não a torna menor…
Luís Augusto Fischer – Pelo contrário. Funciona por essa dimensão completamente trivial e singela que é o livro como produto. Todo mundo sabe que o livro tem uma nobreza, tudo existe para acabar no livro. Mas ele é um produto também. Voltando ao meu ponto inicial, me coloco na posição de um leitor, um leitor experiente. Ainda assim, não pretendo que todo mundo leia o que eu leio. Aquelas perguntas de sempre. “Você é contra ler Paulo Coelho?” Não. Eu não sou contra. Para mim, está liberado. Se me perguntarem, digo que o Paulo Coelho não pode ser teu horizonte final. Mas como eu comecei lendo “Eram os Deuses Astronautas”… A feira é um elemento que entra nisso, há o fato dela ser feita na praça pública, no centro da cidade, de ser aberta, são elementos essenciais para o entranhamento que tem na vida da cidade. É simplesmente algo agradável, é primavera. A cidade fica bonita.
Sul21 – Há quem diga que culturalmente Porto Alegre passa por um momento estranho, em que bares que fecham mais cedo, em que as opções diminuíram na noite da cidade. O quanto isso também atinge a literatura daqui?
“Muitos jovens escritores estão integrados a circuitos de edição e de divulgação nacional e internacional sem sair de Porto Alegre” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Luís Augusto Fischer – Em algum sentido, atinge. O fato de ter menos livrarias de rua, menos livrarias autônomas, com o dono que é livreiro e gosta do ofício. Isso sim, mas é algo que acontece há mais de dez anos. Fora isso, acho que não, pelo contrário. A programação de várias livrarias mostra que há uma pujança grande. O que há de diferente é que pela primeira vez os escritores jovens começam a publicar já fora daqui. Isso é uma coisa nova. Enfim, é uma marca do nosso tempo. É um passo da mundialização dos mercados. Antes, se publicava três quatro ou livros aqui e se batalhava para publicar fora. A minha geração passou um pouco por isso. Mas para quem tem menos de quarenta anos, este problema já não existe. Muitos estão integrados a circuitos de edição e de divulgação nacional e internacional sem sair daqui. Quando o Luís Fernando começou a fazer sucesso nos anos 1970, tinha muita gente que perguntava quando ele iria morar no Rio de Janeiro. Parecia que era inevitável morar no Rio para o escritor fazer sucesso.
Sul21 – O que tu tens escrito neste momento?
Luís Augusto Fischer – Recentemente, editei dois inéditos do Simões Lopes Neto, que deram muito trabalho e muito prazer. Ainda estou no eco desse trabalho. Mas em função de ser patrono… Eu estava preparando um livro de crônicas, de texto de jornal. Não tinha uma data clara para quando fazer, mas acabou que eu apressei e vou lançar um livro na Feira, agora. Mas eu estou envolvido em alguns projetos que são mais para longo prazo, para depois da Feira do Livro. Daqui a dois anos, vai ser comemorado o centenário do Antônio Chimango, de modo que estou muito envolvido em tentar fazer uma edição comemorativa. É um trabalho que eu vou desenvolver ao longo do ano que vem para lançar em 2015. Ao lado disso e além do trabalho acadêmico, tenho duas ou três ideias de ficção que ainda estou acalentando. Um romance, talvez. Não sei se eu tenho jeito para escrever, mas eu gostaria um romance que servisse um pouco como balanço de geração, no caso da minha geração. Nós estamos ficando velho, já. Quando os teus contemporâneos começam a morrer, parece que se olha para o mundo de outro jeito. E ao mesmo tempo a minha geração chegou ao poder. Se seria um balanço político? É um pouco isso, para contar algumas trajetórias.
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