quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

As regras do mais forte

Teatro Pedagógico 06
baitasar
—      A reunião vai começar?
—      Vaaai!
—      Onde?
—      Na sala 14...
—      Por que na sala 14?
—      Sei lá, isso importa? — concordo com a Renata, não tem nenhuma relevância, os algarismos da sala e outros mínimos desprezíveis nos perdem com suas desimportâncias
—      É que sempre foi na sala 13...
A maioria permanece onde está. O abrigo é uma barriga gulosa, ninguém parece animado com a informação: a reunião vai começar!
Até que a Bela da tarde levanta, pendura sua bolsa no ombro esquerdo, ergue da mesa sua cota de provas e trabalhos para corrigir, e sai, depois sai a Mirra, o Antônio; a Lidiane para no portal do abrigo, lembra o óbvio
—      Gente... mais cedo começa, mais cedo acaba. — ninguém parece estar atento, a Lidiane guarda a trombeta e o toque da corneta cessa.
Outra reunião de calendário e eventos que não cativa nem os medíocres; avisos e lembretes que desanimam até as animadas.
Mudar sem mudar.
Mínguam os debates que polemizam ideias e propósitos. Não faltam opiniões, não desapareceram as vontades; a ausência do entrevero com falação de um lado, do outro, e do outro, mais outro, é enganadora, presume paz pelo silêncio.
Sobram ajustes e contratos: começamos bem depois e terminamos bem antes; um tempo em que é chique ser conservadorista das tradições antidemocráticas; ser reacionário é quase como ser uma criança mimada que cresceu individualista, discursos inflamados, vazios de solidariedade e exabundados de egoísmo. Uma criança que sempre teve o que pediu e o que não pediu. Não precisava pedir, não precisava nem desejar, bastava esperar. Desvendavam os mistérios da sua mente, Mamãe, como é que a senhora adivinhou, Papai, papai, o senhor não existe, crescido no tamanho, mas uma pessoa que não se permite nem o pequeno e insignificante (na avaliação chique) instrumento progressista: o diálogo. Adestrados na dialética que não escuta, não lê, mas sabe recitar as manchetes jornalísticas, sejam fatos ou não, verdadeiras ou não, as teorias chiques precisam encaixar na ambição indiferença mesquinhez dos discursos os seus fatos fingidos afogueados purulentos. É tudo a mesma coisa: desinformação e desamor, arrogância e vaidade, injustiça e ódio. A tristeza e a certeza que existem pessoas vivendo de insultos silenciosos ou evidentes vestidos com a roupa de todos os dias.
Existiu um tempo sem tempo para reuniões, uma maneira de não escutar, não deixar falar; é trágico quando não se reconhece a luta histórica desta conquista, o enfrentamento das ideias contra e a favor dos debates na escola. Eu sei, o tempo histórico está sempre em movimento, está sempre passando. O passado fica apenas na memória - e isso não é pouco - dos sobreviventes, depois, são histórias, nada mais que histórias. Outros exércitos chegam e fazem do tempo o seu próprio uso, mas o tempo sem tempo para reuniões que ninguém mais dá importância se existiu pode tornar-se de novo
—      Colegas, estou aguardando na sala 14. — o general anuncia o combate e vai posicionar sua trincheira. Esquece ou se finge surdo do murmúrio que deixa atrás de si. Cedo às obrigações do cotidiano e sento-me na fórmica verde e fria, silenciosa
—      A reunião vai...
—      Vaaai! — gritar é uma das contradições dos triunfos na sala de aula, a vitória de Pirro
—      Alguém viu minha bolsa?
—      Nãooo!
Seca como uma árvore macho sem flores, apenas folhas e raízes, a pedagogia se aproxima dos desprezados e humilhados. Continua julgando e culpando os rendidos da exclusão. O contrato continua vigente: julgar e culpar sob o frescor da sua sombra. Uma professora deveria ser a anunciadora de utopias enquanto aceita a realidade possível, e luta pelo encantamento que não imobiliza, mas educa à libertação, discute a aprendizagem da liberdade, desvela a prática da submissão
—      Vamos sentando, colegas. — no jogo temos os acomodados e incomodados, o general escreve a pauta da reunião no quadro de giz. As tecnologias na sala de aula ainda são o quadro e giz. A educação continua desimportante
—      Acemira, senta aqui. — Ofélia Cabayba Acemira forma uma só, um pequeno grupo capaz de trespassar o braço da vida sem um gesto de solidariedade. Caminham solitárias. Seu gosto é ocasional e calculista, se transforma em um não gostar geralmente vingativo no primeiro confronto com suas vontades. Para mim, bonecas de plástico
—      Gurias, o que temos hoje? — o olhar frio cai sobre o general escrevendo no quadro verde. Um comandante de costas para os seus soldados deveria estar em segurança, mas ninguém está protegido das traições e ambições das sentinelas ou dos generais
—      Espero que o general não venha com reunião comprida, dessas que discutimos o nada que leva a lugar nenhum. — um dos exércitos está pronto, armado até os dentes com a desinformação, o desinteresse, as premonições sobre o tempo, os apetites, os humores, cigarras formigas abelhas
—      Acemira, teus filhos continuam naquele colégio de padres? — intolerância foi o que vi no olhar da Acemira; acredita que a meiguice em demasia afeta a compatibilidade das ideias e propósitos, ela por certo, confia no medo para desacreditar outras vontades
—      Não é colégio de padres, Ofélia...  — para tudo existem os limites, mesmo para quem se sacrifica pelo prazer do sacrifício. Não é o caso da Acemira. A renúncia pelo bem-estar de alguém que não seja ela própria não faz parte do seu cardápio de serventias. São inutilidades que não reserva às amigas de hoje, possíveis inimigas amanhã
—      É o quê?
—      Jesuítas, é um colégio de jesuítas. — parece que Acemira não teve uma metade de turno com os alunos, muito fácil. Perde a paciência com sua aliada, mas retoma quase que imediatamente o controle de si mesma, sabe que o recrutamento é sempre um momento delicado. Ofélia não chega a perceber a desarmonia, muito menos a desafinação na voz da outra... continua sua autocomiseração
—      É um horror o que se gasta com o colégio das crianças: mensalidades, livros, uniformes, taxas, passeios, transporte escolar... uma loucura, uma loucura!
—      E o governo não faz nada, pior, distribui o nosso dinheiro pra essa gente que não quer nada com nada!
—      O absurdo dos absurdos são os livros. Com o preço de um livro de química poderia comprar dois ou três livros da Martha...
Sugiro que vendam os livros no final do ano – se os filhos passarem, é claro
—      Que livros? — pergunta a descuidada Cabayba.
Sua pergunta ficou no ar como a fumaça de um cigarro, sumindo aos pouquinhos, sem nenhuma importância aparente, até que sufoca e é preciso abrir uma janela
—      Por que não coloca seus filhos aqui na escola? Não seria preciso comprar os livros... — a pergunta do Marko chega como uma ventania inesperada, janelas e portas batendo, roupas escapando dos prendedores no varal, a poeira nos olhos. Ficam aturdidas e desorientadas por instantes. Quando ele se preparava para sentar nas fileiras duras da fórmica verde recebeu o contra-ataque. Insultos pra desqualificar, mas que não respondem a sua pergunta, Por que os filhos da maioria – ou seria minoria – dos professores não estudam na escola pública
—      Chegou o brincalhão!
—      É... o bobão útil!
—      O comunistinha e seus palavrões! — a fórmica verde e fria não conseguia esconder as feições do descaso e descontrole. O Marko não parece incomodado com a artilharia que desqualifica e não consegue ou não quer argumentar, elas preferem as armas de grosso calibre: elevar a voz para intimidar
—      Por que tanta raiva, professoras?
É um maluco. Não vale a pena insistir, penso em resumir. Isso não é apenas teimosia. Ofélia abre a boca para responder, mas Acemira é mais rápida. Essa é uma resposta que tem pronta, muitos anos atravessada na garganta, como um espinhaço inteiro do salmão do domingo que não conseguiu engolir

      Não coloco meus filhos nessa mixórdia! Onde já se viu, o poste mijando no cachorro! Isso aqui é uma porcaria de escola! Não podemos reprovar! Todos passam do mesmo jeito. O folgado e o fraco precisam aprovar, e pronto! E o vestibular? E o português, a matemática? Não sabem ler, o que dirá escrever. Os números são outro mistério. A universidade não é para qualquer um... tenha dó! Cotas pra pobre que não tem onde cair morto! — ela parece ter acordado do seu torpor, está pronta para o duelo — Eu cuido dos meus filhos, os outros que cuidem dos seus, têm coisas que são o que são, outras só parecem o que não são. Essas crianças são insignificantes em todas as perspectivas, não contribuem para nada. Para nada, não é verdade, desculpe... contribuem com a bandidagem ou essa bolsa fome. Deixa pra lá, isso é um assunto menor.
Como uma pessoa com pensamento tão medíocre pode estar aqui, dando aulas. Fico estarrecida com a ignorância e o preconceito da Acemira, não me contenho. As veias do pescoço dilatam, minhas têmporas latejam
—      Por que você está aqui? — não é uma pergunta, é o grito das minhas histórias guerrilheiras com um efetivo de professores que parece nunca ser suficiente.
Acemira sorriu sem ânimo, não escondeu que não sofria
—      Estabilidade, queridinha. Não é pelo prestígio nem pelo renome, muito menos por este salário de merda! Apenas estabilidade... tire isso e esse mundo da escola pública que conhecemos acaba. Pelo menos do jeito que é.
Eis o grande mistério dos seres humanos que se vangloriam da diversidade de pensamento e comportamento, mas têm uma imensa dificuldade em produzir caminhos comuns com as diferentes maneiras do ser na vida e do querer viver. Acredito que as ideias e propósitos nazistas estão por aí, à disposição da sociedade, existiam antes do homem de bigodinho, bastou querer classificar as pessoas em seres inferiores e humanos superiores.
Ficamos em silêncio, talvez pensando num segredo que guardamos até mesmo de nós
—      Somos todas muito diferentes, Marko... mas me responda sinceramente, as crianças estão aprendendo? — a combinação de afirmações fáceis ou declarações difíceis precisa do valor da consciência dos propósitos e ideias, outro segredo que guardamos

     Concordo, Acemira. Mas o que você quer ensinar? A quem você quer educar? — Marko interrompeu Acemira suave e decididamente. Deixo-a procurando o pensamento que rolava de sua cabeça enquanto pisava no esterco e ficava vazia de dizer o mais adequado, quentinho e terno das suas boas intenções. Não consigo mais acreditar como o Marko. Ele continuou conversando com seus olhos azuis — Somos todos diferentes, mas não conseguimos diferir do senso comum. Quanto mais normais e silenciosos, mais as loucuras permanecem escondidas. Submersas em águas calmas, ternas, sem luz, nada além daquela que permitimos com nosso olho enfermo: egoísta ou irreal. A pureza é o nosso pecado - até a pureza da cocaína mata; o medo das combinações com a vida é a nossa maior covardia - sim, as fraquezas podem ser maiores ou menores. Precisamos deixar de ter sempre razão - essa seria nossa maior virtude: escutar com o coração. Gosto de escutar tuas razões com o meu coração. — o Marko deveria escrever um livro de autoajuda sobre as certezas da solidão, o silêncio que nos faz mergulhar na indiferença, o fatalismo do fanatismo, o desbrio bizarro da neutralidade. Um livro fininho para não competir com os livros de química
—      Marko! — reconheço a voz da Abigail, olho para trás, está sentada ao lado do Adail e da Lélia — Vem sentar aqui. — acena com uma das mãos e oferece um pequeno sorriso
—      Com licença, senhoras. Vou sentar com o meu segundo exército, são todas guerrilheiras. Esfoladas de tanto sentarem no chão. Aprenderam que as crianças gostam do chão, é mais fácil para rolar e erguer as pernas e soltar um pum de felicidade.
Joga-se na trincheira com Samuel, Fernanda Maura, Elisa, Desirée, Lia, e mais na frente Camila aguarda as instruções do combate, tem as mãos cruzadas sobre o colo. Abigail, Adail e Lélia insistem, Aqui, Marko!
—      Vocês são terríveis, parecem crianças.
O professor Aguinaldo pede a palavra, bate suavemente as mãos para limpar o pó de giz, espirra uma, duas, três vezes, Tenho alergia do giz, outro espirro. Os olhos ficam avermelhados, a voz some
—      Muito bem, colegas. Vamos iniciar nossa reunião semanal.
É o destino de tudo que existe viver com as regras do mais forte.

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