Teatro Pedagógico 06
baitasar
— A
reunião vai começar?
— Vaaai!
— Onde?
— Na
sala 14...
— Por
que na sala 14?
— Sei
lá, isso importa? — concordo com a Renata, não tem nenhuma relevância, os
algarismos da sala e outros mínimos desprezíveis nos perdem com suas
desimportâncias
— É que
sempre foi na sala 13...
A maioria permanece onde está. O abrigo é uma
barriga gulosa, ninguém parece animado com a informação: a reunião vai começar!
Até que a Bela da tarde levanta, pendura sua
bolsa no ombro esquerdo, ergue da mesa sua cota de provas e trabalhos para
corrigir, e sai, depois sai a Mirra, o Antônio; a Lidiane para no portal do
abrigo, lembra o óbvio
— Gente...
mais cedo começa, mais cedo acaba. — ninguém parece estar atento, a Lidiane
guarda a trombeta e o toque da corneta cessa.
Outra reunião de calendário e eventos que não
cativa nem os medíocres; avisos e lembretes que desanimam até as animadas.
Mudar sem mudar.
Mínguam os debates que polemizam ideias e
propósitos. Não faltam opiniões, não desapareceram as vontades; a ausência do
entrevero com falação de um lado, do outro, e do outro, mais outro, é
enganadora, presume paz pelo silêncio.
Sobram ajustes e contratos: começamos bem depois
e terminamos bem antes; um tempo em que é chique ser conservadorista das
tradições antidemocráticas; ser reacionário é quase como ser uma criança mimada
que cresceu individualista, discursos inflamados, vazios de solidariedade e
exabundados de egoísmo. Uma criança que sempre teve o que pediu e o que não
pediu. Não precisava pedir, não precisava nem desejar, bastava esperar.
Desvendavam os mistérios da sua mente, Mamãe, como é que a senhora adivinhou,
Papai, papai, o senhor não existe, crescido no tamanho, mas uma pessoa que não
se permite nem o pequeno e insignificante (na avaliação chique) instrumento
progressista: o diálogo. Adestrados na dialética que não escuta, não lê, mas
sabe recitar as manchetes jornalísticas, sejam fatos ou não, verdadeiras ou
não, as teorias chiques precisam encaixar na ambição indiferença mesquinhez dos
discursos os seus fatos fingidos afogueados purulentos. É tudo a mesma coisa:
desinformação e desamor, arrogância e vaidade, injustiça e ódio. A tristeza e a
certeza que existem pessoas vivendo de insultos silenciosos ou evidentes
vestidos com a roupa de todos os dias.
Existiu um tempo sem tempo para reuniões, uma
maneira de não escutar, não deixar falar; é trágico quando não se reconhece a
luta histórica desta conquista, o enfrentamento das ideias contra e a favor dos
debates na escola. Eu sei, o tempo histórico está sempre em movimento, está
sempre passando. O passado fica apenas na memória - e isso não é pouco - dos
sobreviventes, depois, são histórias, nada mais que histórias. Outros exércitos
chegam e fazem do tempo o seu próprio uso, mas o tempo sem tempo para reuniões
que ninguém mais dá importância se existiu pode tornar-se de novo
— Colegas,
estou aguardando na sala 14. — o general anuncia o combate e vai posicionar sua
trincheira. Esquece ou se finge surdo do murmúrio que deixa atrás de si. Cedo
às obrigações do cotidiano e sento-me na fórmica verde e fria, silenciosa
— A reunião
vai...
— Vaaai!
— gritar é uma das contradições dos triunfos na sala de aula, a vitória de Pirro
— Alguém
viu minha bolsa?
— Nãooo!
Seca como uma árvore macho sem flores, apenas
folhas e raízes, a pedagogia se aproxima dos desprezados e humilhados. Continua
julgando e culpando os rendidos da exclusão. O contrato continua vigente:
julgar e culpar sob o frescor da sua sombra. Uma professora deveria ser a
anunciadora de utopias enquanto aceita a realidade possível, e luta pelo encantamento
que não imobiliza, mas educa à libertação, discute a aprendizagem da liberdade,
desvela a prática da submissão
— Vamos
sentando, colegas. — no jogo temos os acomodados e incomodados, o general
escreve a pauta da reunião no quadro de giz. As tecnologias na sala de aula
ainda são o quadro e giz. A educação continua desimportante
— Acemira,
senta aqui. — Ofélia Cabayba Acemira forma uma só, um pequeno grupo capaz de
trespassar o braço da vida sem um gesto de solidariedade. Caminham solitárias.
Seu gosto é ocasional e calculista, se transforma em um não gostar geralmente
vingativo no primeiro confronto com suas vontades. Para mim, bonecas de plástico
— Gurias,
o que temos hoje? — o olhar frio cai sobre o general escrevendo no quadro verde.
Um comandante de costas para os seus soldados deveria estar em segurança, mas
ninguém está protegido das traições e ambições das sentinelas ou dos generais
— Espero
que o general não venha com reunião comprida, dessas que discutimos o nada que leva
a lugar nenhum. — um dos exércitos está pronto, armado até os dentes com a
desinformação, o desinteresse, as premonições sobre o tempo, os apetites, os
humores, cigarras formigas abelhas
— Acemira,
teus filhos continuam naquele colégio de padres? — intolerância foi o que vi no
olhar da Acemira; acredita que a meiguice em demasia afeta a compatibilidade
das ideias e propósitos, ela por certo, confia no medo para desacreditar outras
vontades
— Não é
colégio de padres, Ofélia... — para tudo existem os limites, mesmo para
quem se sacrifica pelo prazer do sacrifício. Não é o caso da Acemira. A
renúncia pelo bem-estar de alguém que não seja ela própria não faz parte do seu
cardápio de serventias. São inutilidades que não reserva às amigas de hoje,
possíveis inimigas amanhã
— É o
quê?
—
Jesuítas, é um colégio de jesuítas. — parece que Acemira não teve uma metade de
turno com os alunos, muito fácil. Perde a paciência com sua aliada, mas retoma
quase que imediatamente o controle de si mesma, sabe que o recrutamento é
sempre um momento delicado. Ofélia não chega a perceber a desarmonia, muito
menos a desafinação na voz da outra... continua sua autocomiseração
— É um
horror o que se gasta com o colégio das crianças: mensalidades, livros,
uniformes, taxas, passeios, transporte escolar... uma loucura, uma loucura!
— E o
governo não faz nada, pior, distribui o nosso dinheiro pra essa gente que não
quer nada com nada!
— O
absurdo dos absurdos são os livros. Com o preço de um livro de química poderia
comprar dois ou três livros da Martha...
Sugiro que vendam os livros no final do ano – se
os filhos passarem, é claro
— Que
livros? — pergunta a descuidada Cabayba.
Sua pergunta ficou no ar como a fumaça de um
cigarro, sumindo aos pouquinhos, sem nenhuma importância aparente, até que
sufoca e é preciso abrir uma janela
— Por
que não coloca seus filhos aqui na escola? Não seria preciso comprar os
livros... — a pergunta do Marko chega como uma ventania inesperada, janelas e
portas batendo, roupas escapando dos prendedores no varal, a poeira nos olhos.
Ficam aturdidas e desorientadas por instantes. Quando ele se preparava para
sentar nas fileiras duras da fórmica verde recebeu o contra-ataque. Insultos
pra desqualificar, mas que não respondem a sua pergunta, Por que os filhos da
maioria – ou seria minoria – dos professores não estudam na escola pública
— Chegou
o brincalhão!
— É...
o bobão útil!
— O
comunistinha e seus palavrões! — a fórmica verde e fria não conseguia esconder
as feições do descaso e descontrole. O Marko não parece incomodado com a
artilharia que desqualifica e não consegue ou não quer argumentar, elas preferem
as armas de grosso calibre: elevar a voz para intimidar
— Por
que tanta raiva, professoras?
É um maluco. Não vale a pena insistir, penso em
resumir. Isso não é apenas teimosia. Ofélia abre a boca para responder, mas
Acemira é mais rápida. Essa é uma resposta que tem pronta, muitos anos
atravessada na garganta, como um espinhaço inteiro do salmão do domingo que não
conseguiu engolir
— Não
coloco meus filhos nessa mixórdia! Onde já se viu, o poste mijando no cachorro!
Isso aqui é uma porcaria de escola! Não podemos reprovar! Todos passam do mesmo jeito. O
folgado e o fraco precisam aprovar, e pronto! E o vestibular? E o português, a
matemática? Não sabem ler, o que dirá escrever. Os números são outro mistério.
A universidade não é para qualquer um... tenha dó! Cotas pra pobre que não tem
onde cair morto! — ela parece ter acordado do seu torpor, está pronta para o
duelo — Eu cuido dos meus filhos, os outros que cuidem dos seus, têm coisas que
são o que são, outras só parecem o que não são. Essas crianças são insignificantes
em todas as perspectivas, não contribuem para nada. Para nada, não é verdade,
desculpe... contribuem com a bandidagem ou essa bolsa fome. Deixa pra lá, isso
é um assunto menor.
Como uma pessoa com pensamento tão medíocre pode
estar aqui, dando aulas. Fico estarrecida com a ignorância e o preconceito da
Acemira, não me contenho. As veias do pescoço dilatam, minhas têmporas latejam
— Por
que você está aqui? — não é uma pergunta, é o grito das minhas histórias
guerrilheiras com um efetivo de professores que parece nunca ser suficiente.
Acemira sorriu sem ânimo, não escondeu que não
sofria
— Estabilidade,
queridinha. Não é pelo prestígio nem pelo renome, muito menos por este salário
de merda! Apenas estabilidade... tire isso e esse mundo da escola pública que
conhecemos acaba. Pelo menos do jeito que é.
Eis o grande mistério dos seres humanos que se
vangloriam da diversidade de pensamento e comportamento, mas têm uma imensa
dificuldade em produzir caminhos comuns com as diferentes maneiras do ser na
vida e do querer viver. Acredito que as ideias e propósitos nazistas estão por
aí, à disposição da sociedade, existiam antes do homem de bigodinho, bastou
querer classificar as pessoas em seres inferiores e humanos superiores.
Ficamos em silêncio, talvez pensando num segredo
que guardamos até mesmo de nós
— Somos
todas muito diferentes, Marko... mas me responda sinceramente, as crianças
estão aprendendo? — a combinação de afirmações fáceis ou declarações difíceis
precisa do valor da consciência dos propósitos e ideias, outro segredo que
guardamos
— Concordo,
Acemira. Mas o que você quer ensinar? A quem você quer educar? — Marko
interrompeu Acemira suave e decididamente. Deixo-a procurando o pensamento que
rolava de sua cabeça enquanto pisava no esterco e ficava vazia de dizer o mais
adequado, quentinho e terno das suas boas intenções. Não consigo mais acreditar
como o Marko. Ele continuou conversando com seus olhos azuis — Somos todos
diferentes, mas não conseguimos diferir do senso comum. Quanto mais normais e
silenciosos, mais as loucuras permanecem escondidas. Submersas em águas calmas,
ternas, sem luz, nada além daquela que permitimos com nosso olho enfermo:
egoísta ou irreal. A pureza é o nosso pecado - até a pureza da cocaína mata; o
medo das combinações com a vida é a nossa maior covardia - sim, as fraquezas
podem ser maiores ou menores. Precisamos deixar de ter sempre razão - essa
seria nossa maior virtude: escutar com o coração. Gosto de escutar tuas razões
com o meu coração. — o Marko deveria escrever um livro de autoajuda sobre as
certezas da solidão, o silêncio que nos faz mergulhar na indiferença, o
fatalismo do fanatismo, o desbrio bizarro da neutralidade. Um livro fininho
para não competir com os livros de química
— Marko!
— reconheço a voz da Abigail, olho para trás, está sentada ao lado do Adail e
da Lélia — Vem sentar aqui. — acena com uma das mãos e oferece um pequeno
sorriso
— Com
licença, senhoras. Vou sentar com o meu segundo exército, são todas
guerrilheiras. Esfoladas de tanto sentarem no chão. Aprenderam que as crianças
gostam do chão, é mais fácil para rolar e erguer as pernas e soltar um pum de
felicidade.
Joga-se na trincheira com Samuel, Fernanda Maura,
Elisa, Desirée, Lia, e mais na frente Camila aguarda as instruções do combate,
tem as mãos cruzadas sobre o colo. Abigail, Adail e Lélia insistem, Aqui, Marko!
— Vocês
são terríveis, parecem crianças.
O professor Aguinaldo pede a palavra, bate
suavemente as mãos para limpar o pó de giz, espirra uma, duas, três vezes,
Tenho alergia do giz, outro espirro. Os olhos ficam avermelhados, a voz some
— Muito
bem, colegas. Vamos iniciar nossa reunião semanal.
É o destino de tudo que existe viver com as
regras do mais forte.
__________________
Leia também:
Nenhum comentário:
Postar um comentário