terça-feira, 10 de junho de 2014

A bolsa tiracolo

Ensaio 01AB

baitasar
O amor é difícil de prever. Impossível. Verdades e mentiras no desafio das cabras-cegas à beira do paraíso-abismo. Fantasmas do paraíso em queda-livre misturam-se aos anjos das más influências e as vovós rezam para que fiquem longe dos netinhos, as mamães juram promessas de abstinências ao álcool, para que os fantasmas com seus filhinhos sejam apenas os seus fantasmas da abstinência. Anjos da devassidão. Fantasmas da inocência. 

Prever é difícil. O apegado é danado e desobediente. Encapetado. Não tem lógica. Fantasmas e anjos são lógicos. Seres humanos é que são malucos. Ligam o nada a coisa nenhuma e morrem por isso. Juram-se. Somos uma ponte frágil de cordas. Passamos a existência experimentando de lá e cá. Fazendo filhos. Nunca quis filhos. E de repente, ali estão eles. Todos eles. Não sei de onde surgiram. 

Por quê? Você repete que não teve filhos e que não sabe se vai tê-los. Para que? Talvez para cuidarem da velhice. Isso se não esquecerem a velhice. Por que os ter? Apenas para encher as ruas com mais idiotas? Por certo, nada sei do amor. Nada. 

Deixo a resposta para os amantes.

Nas raras vezes, que tive suas coxas em minhas mãos, comi todo o amendoim. Adoro amendoim torrado. É impossível parar de comer. Bobagem, nada é impossível. Até eu posso ter filhos! Mesmo que amar para mim possa parecer esquisito e absurdo. Gosto das coisas esquisitas e absurdas. Parar de comer amendoim não é algo impossível, um dia eu paro. Nem que seja por esquecimento. Ou nojo de ter a boca marcada de cascas mastigadas. A ponta da unha roída procurando grãos enfiados nos vãos dos dentes. Enquanto avoinha gritava

—      Neinho, escova os dente. Os preto precisa dos dente.

A boca cheia. A fome imaginária. O pecado da gula. Gosto de me drogar com amendoins. A velhice se remedia com o cozinhado antigo. Eu não, empurro tudo com mais cerveja preta. O amendoim é encorpado no gosto, delicado no aroma.

Helga é negra. É bonita. Inteligente. Gosta mais de ouvir do que falar. Quando fala, ela olha nos olhos. Raros. Lindos. Um exército de arrebatamento e promessas. Uma cigana negra. A única que conheci. Toda negra. Culta. Tem a malandragem das ruas, a instrução dos livros e das casas de música dos brancos. Sinfônicas. Gosta do samba. É apaixonada por samba. Usa os brancos e a sinfônica. Completa. Gosta dos livros. Anda nas ruas. Os lugares onde o mundo lhe parece menos imundo são nos livros e no samba. Escuta Beethoven

—      Adoro a Nona Sinfonia... e você, Sèzar?

Sèzar não é negro. Mas é bonito. Não é lindo, essa é sua beleza. Tem uma cabeleira vermelha. Uma grande chama ardente soltando-se. Avoando. Não sabe quem lhe chamou assim, pela primeira vez, mas desde que lembra de escutar o mundo tem o apelido de Foguista. Não gosta de ler. Lê para escrever. Gosta de escrever. Quer escapar das futilidades e utilidades. É difícil, nunca está em paz com suas histórias. Insatisfeito com as palavras que ainda não encontrou.

Uma catadora de histórias. Um escrevinhador de enredos.

Um amor improvável para esses dias de impulsos violentos e sabores com a sutileza dos sacolés.

Ela lê.

Ele escreve.

Eu conto.

Ela é vermelha. Ele azul. Eu sou preto. Um anão preto.

Meus amigos do amor. Espíritos santos da paixão e da aventura. A carne e o desejo canonizados em um só corpo inviolável, perfeito e divino. O santuário da volúpia e da castidade. O começo da história que continua de outras vidas do início sem fim, sem início. Curvas que se aproximam e se afastam. O círculo das partidas e revoltas. Viagens e chegadas. Até o derradeiro suspiro do lápis não é o fim, apenas o enredo tomando fôlego para marcar as folhas brancas e castas do que não está nelas, mas no outro que escreve como o juiz que julga com o que tem por dentro, fantasmas e anjos. Um julgador é a criatura que se finge totalmente surda e cega. Uma esfinge. Um pulha mentiroso. Disfarçado de metáfora da verdade. Da única verdade que não existe, aquela que julga. Nem o papel julga a ponta do lápis.

A ponta do lápis quebrada não é a morte do lápis. Cada vez que a ponta se perde descascamos finas camadas que se enroscam do renascimento do lápis, até sua morte no papel. Deixamos finas lâminas descascadas em camadas que se enroscam em nossas mãos. A morte nas mãos. Um dia o pequeno toco é esquecido no canto dos tocos, os lápis inúteis. Abandonado. Um corpo velho e descamado. Pergunta-se da utilidade do corpo

—      Caminhar. Caminhar.

Helga não concorda. Reclama das bobagens. Pequenas confusões. Pequenos presentes. Perfumes baratos. Cheiros e gostos que jamais se esquecem

—      O corpo é um altar de sacrifícios.

Sèzar apenas sorri. Enche o copo com cerveja preta. Toma um gole e levanta enérgico

—      Já volto. — e sai.

Em outra noite, tempos de antes, bem antes, quis saber se ela estava disposta ao sacrifício. Não estava. Hoje, trouxe um presente estranho para Helga. Ele sabe, se fosse para um amigo não teria nada de estranho. Um presente para o altar de sacrifícios de Helga.

Voltou sem aviso.

Não eram marcados para visitas. Bastava a vontade. O desejo. E pronto. A batida discreta na porta. Outra batida. A espera ansiosa. Um sujeito sensível. Mais duas batidas. Sèzar parado à porta. Um pacote amassado embaixo do braço. Sovado pelo sovaco. As mãos nos bolsos da calça. A boca sorrindo. Repetindo uma, duas mil vezes, a mesma frase — É para você, Helga. — como se fosse necessário treinar a delicadeza. Sabia como seus lábios se abririam e deixariam escapar a alma solene do desejo. Queria mostrar-lhe um Sèzar diferente. Outra batida. Um Sèzar impaciente. Um Sèzar com preferências arbitrárias.

Abre a porta com o sorriso da criança enfeitiçada, tem o frescor da inocência deslumbrada por tudo e por nada. A felicidade descansada do cotidiano. Caminha até Sèzar, sobe na ponta dos pés, lhe dá um beijo na queixada

—      O fugido voltou... espero que com outros olhos. — revirou suas costas e retornou para sua cadeira de balanço, recordação útil que lhe restou da avó.
O rapaz não diz nada. Fica parado na porta. Está enfeitiçado. Olha Helga 
espreguiçando um passo após o outro, o quadril giboso flutuando, a cintura delgada, escavada como em um desenho de violão. O vaivém requebrado até sentar no berço de balanço

—      Não vai entrar? — um desafio ou um convite

—      Vou... claro... vou entrar.

Fechou a porta.

A voz destreinada não sabia o que insinuar. Quem sabe declamar-se em alguma poesia? Mas em qual língua? Ela conhece tantas. E o poeta? Quem Helga não teria lido e não soaria falso na sua boca? Não lembra nenhum. Pensa em dizer uma das suas poesias. Não, ele não é um poeta. Não é nada. Um teimoso, isso sim. Com certeza é um cabeçudo. Um granito. Uma entorse das bobagens da carne viva.

Senta no chão, na frente da garota balançando. O presente escondido dentro do embrulho. O pacote largado em seu colo. Alguns livros deitados no chão, ao lado da balança que embalança para frente e para trás

—      Interrompi suas leituras. — fez uma caricatura da voz, fingia estar envergonhado. Não estava envergonhado de nada, continuava fingindo

—      Não seja bobo, nós mulheres, lemos um livro de cada vez, ao contrário de vocês, não lemos três ou quatro livros. Terminamos uma história para começarmos outra.

Sèzar pega um dos livros no chão

—      E por que tantos livros espalhados no chão?

—      Esperam...

Ler várias histórias é apenas um jogo para confundir a solidão, espantar o bolor

—      De qualquer maneira peço desculpas ao senhor Abelaira, não tive a intenção de roubar a moça de tão ilustre companhia.

—      Mas deveria... — ela dobra as pernas e fica toda recolhida no balanço da avó — E qual a lembrança que fez o moço sair apressado e retornar ainda mais misterioso?
Perguntas diretas deixam Sèzar modelando-se ao som da pergunta

—      A minha urgência? — faz uma pequena pausa, precisa de tempo — Entregar-te este mimo. — largou no chão o livro do escritor português Abelaira. Pegou o embrulho amarrotado e embalsamado na sovaqueira

Helga adora presentes. Gosta de sair como uma caçadora de tesouros. Avencas não gostam de ventos, ela não é uma avenca. Adora surpresas, ser apanhada desprevenida pela delicadeza da lembrança.

Sèzar lhe estende os braços. As mãos oferecem o presente. Ela sai do colo da avó e senta ao lado dele. A avó fica se balançando

—      Abre... — ele pede — Abre...

Ela segura o pacote aquecido pelo abraço de Sèzar

—      O pacote tá quentinho.

Ele repete o pedido. Engole a própria vontade de revelar o que se esconde dentro do embrulho, não consegue disfarçar sua agitação. Ela rasga delicadamente a epiderme de celulose. O pacote é desfeito aos pedaços. O entusiasmo de Helga também

—      O que é isso?

—      Uma camiseta...

—      Do Grêmio? Sèzar... aqui, na aldeia, somos uma coisa ou outra. Estamos contra ou à favor. Maragato ou chimango. É uma coisa ou é outra. Colorados ou gremistas. Vermelho ou azul. Entre colorados e gremistas a rivalidade permite delicadezas, mas nada como vestir as cores de um ou do outro. Seria como pedir ao catalão, ao basco e ao galego para renegarem suas línguas regionais. Ou conseguir que árabes e judeus se entendam sobre Jerusalém e as areias do Oriente Médio. Ou obrigar os chineses saírem do Tibet para o Dalai Lama retornar às suas montanhas. Ou o cinema parar com as continuações do Homem-Aranha, Batman, Super-Homem. Ou mais improvável ainda, que parem de se matarem mundo afora. Ou sei lá, ache você outra comparação, mas gremista não veste a camiseta colorada nem colorado enfia a camiseta gremista. O que eu acho disso? Não escrevo histórias, só as leio.

Sèzar deita de costas, o assoalho frio lhe provoca um pequeno arrepio

—      Às vezes é preciso ousar e mudar a perspectiva, vestir a pele do outro.

—      Obrigada. — fechou o embrulho. Não estava desapontada, estava excitada. Homens são assim mesmo, vez que outra se empenham para incomodar. Gostam de cutucar a fera com vara curta. Depois quando a vara fica mole, choram como criancinhas.

Levantou. A fera queria testar o tamanho da vara.

Sèzar continuava deitado com as mãos sob sua cabeça.

Helga pede que espere.

Ele espera. Não tem o que fazer, precisa esperar.

Ela sai da sala dos livros e das visitas. Sèzar continua com as mãos por baixo da cabeleira vermelha. Não espera muito. Helga já está de volta. Quieta. Perigosamente quieta e silenciosa. Ele no chão. Deitado. Ela desiste de ficar em pé e senta no colo da avó. Balançando. Recostada. Um pequeno embrulho nas mãos e uma bolsa tiracolo. Dessas que ficam melhores penduradas no ombro que carregadas nas mãos. Não existem mulheres sem bolsa nem bolsas sem mulheres. Entrega o pequeno embrulho ao Foguista. O pacotinho se abre nas mãos de Sèzar

—      Uma pastel assado?

—      É... não vai comer? — não foi uma pergunta com espaço para o contraditório. Não está bem certo que deve morder. Olha a moça colorada nos olhos. Morde a isca com uma dentada desconfiada

—      O que é isto? – sua voz sai embolada

—      Um convite. — ou outro jeito confortável para desassossegar o moço gremista. Ela sorri.

É um bilhete. Sèzar pega o bilhete que está entre os dentes. Faz um movimento com a mão estendendo para Helga

—      Leia você mesmo. É seu. — foi a resposta colorada

—      Vale duas entradas para um jogo do Inter... no meio dos vermelhos? Eu sou gremista...

A mocinha colorada encolheu os ombros, aumentou o balanço da avó e fechou os olhos. Continuava sorrindo

—      Sèzar, você precisa ousar. Mudar a perspectiva e colorir a realidade que existe com outras cores.

O gremista em pé. Sério. A sala dos livros sorrindo. O Bolor estremecia sutilmente. Alguns livros não perdem a cara dos seus autores e continuam nos debochando, mesmo depois do tempo ter queimado o cozido

—      Não tenho nada vermelho. — a voz soou destreinada e desconfortável

—      Isso não é problema. — desencilhou a bolsa tiracolo. Abriu o fecho e retirou a camiseta colorada — Agora, já tem.

As cabras-cegas vermelhas e azuis deveriam caber em uma bolsa tiracolo.

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