Ensaio 01AB
baitasar
O amor é difícil de prever. Impossível. Verdades e
mentiras no desafio das cabras-cegas à beira do paraíso-abismo. Fantasmas do
paraíso em queda-livre misturam-se aos anjos das más influências e as vovós
rezam para que fiquem longe dos netinhos, as mamães juram promessas de
abstinências ao álcool, para que os fantasmas com seus filhinhos sejam apenas
os seus fantasmas da abstinência. Anjos da devassidão. Fantasmas da inocência.
Prever é difícil. O apegado é danado e
desobediente. Encapetado. Não tem lógica. Fantasmas e anjos são lógicos. Seres
humanos é que são malucos. Ligam o nada a coisa nenhuma e morrem por isso.
Juram-se. Somos uma ponte frágil de cordas. Passamos a existência
experimentando de lá e cá. Fazendo filhos. Nunca quis filhos. E de repente, ali
estão eles. Todos eles. Não sei de onde surgiram.
Por quê? Você repete que não teve filhos e que não
sabe se vai tê-los. Para que? Talvez para cuidarem da velhice. Isso se não
esquecerem a velhice. Por que os ter? Apenas para encher as ruas com mais
idiotas? Por certo, nada sei do amor. Nada.
Deixo a resposta para os amantes.
Nas raras vezes, que tive suas coxas em minhas
mãos, comi todo o amendoim. Adoro amendoim torrado. É impossível parar de
comer. Bobagem, nada é impossível. Até eu posso ter filhos! Mesmo que amar para
mim possa parecer esquisito e absurdo. Gosto das coisas esquisitas e absurdas.
Parar de comer amendoim não é algo impossível, um dia eu paro. Nem que seja por
esquecimento. Ou nojo de ter a boca marcada de cascas mastigadas. A ponta da
unha roída procurando grãos enfiados nos vãos dos dentes. Enquanto avoinha
gritava
— Neinho,
escova os dente. Os preto precisa dos dente.
A boca cheia. A fome imaginária. O pecado da gula.
Gosto de me drogar com amendoins. A velhice se remedia com o cozinhado antigo.
Eu não, empurro tudo com mais cerveja preta. O amendoim é encorpado no gosto,
delicado no aroma.
Helga é negra. É bonita. Inteligente. Gosta mais de
ouvir do que falar. Quando fala, ela olha nos olhos. Raros. Lindos. Um exército
de arrebatamento e promessas. Uma cigana negra. A única que conheci. Toda
negra. Culta. Tem a malandragem das ruas, a instrução dos livros e das casas de
música dos brancos. Sinfônicas. Gosta do samba. É apaixonada por samba. Usa os
brancos e a sinfônica. Completa. Gosta dos livros. Anda nas ruas. Os lugares
onde o mundo lhe parece menos imundo são nos livros e no samba. Escuta
Beethoven
— Adoro a
Nona Sinfonia... e você, Sèzar?
Sèzar não é negro. Mas é bonito. Não é lindo, essa
é sua beleza. Tem uma cabeleira vermelha. Uma grande chama ardente soltando-se.
Avoando. Não sabe quem lhe chamou assim, pela primeira vez, mas desde que
lembra de escutar o mundo tem o apelido de Foguista. Não gosta de ler. Lê para
escrever. Gosta de escrever. Quer escapar das futilidades e utilidades. É
difícil, nunca está em paz com suas histórias. Insatisfeito com as palavras que
ainda não encontrou.
Uma catadora de histórias. Um escrevinhador de
enredos.
Um amor improvável para esses dias de impulsos
violentos e sabores com a sutileza dos sacolés.
Ela lê.
Ele escreve.
Eu conto.
Ela é vermelha. Ele azul. Eu sou preto. Um anão
preto.
Meus amigos do amor. Espíritos santos da paixão e
da aventura. A carne e o desejo canonizados em um só corpo inviolável, perfeito
e divino. O santuário da volúpia e da castidade. O começo da história que
continua de outras vidas do início sem fim, sem início. Curvas que se aproximam
e se afastam. O círculo das partidas e revoltas. Viagens e chegadas. Até o
derradeiro suspiro do lápis não é o fim, apenas o enredo tomando fôlego para
marcar as folhas brancas e castas do que não está nelas, mas no outro que
escreve como o juiz que julga com o que tem por dentro, fantasmas e anjos. Um
julgador é a criatura que se finge totalmente surda e cega. Uma esfinge. Um
pulha mentiroso. Disfarçado de metáfora da verdade. Da única verdade que não
existe, aquela que julga. Nem o papel julga a ponta do lápis.
A ponta do lápis quebrada não é a morte do lápis.
Cada vez que a ponta se perde descascamos finas camadas que se enroscam do
renascimento do lápis, até sua morte no papel. Deixamos finas lâminas
descascadas em camadas que se enroscam em nossas mãos. A morte nas mãos. Um dia
o pequeno toco é esquecido no canto dos tocos, os lápis inúteis. Abandonado. Um
corpo velho e descamado. Pergunta-se da utilidade do corpo
— Caminhar.
Caminhar.
Helga não concorda. Reclama das bobagens. Pequenas
confusões. Pequenos presentes. Perfumes baratos. Cheiros e gostos que jamais se
esquecem
— O corpo
é um altar de sacrifícios.
Sèzar apenas sorri. Enche o copo com cerveja preta.
Toma um gole e levanta enérgico
— Já
volto. — e sai.
Em outra noite, tempos de antes, bem antes, quis
saber se ela estava disposta ao sacrifício. Não estava. Hoje, trouxe um
presente estranho para Helga. Ele sabe, se fosse para um amigo não teria nada
de estranho. Um presente para o altar de sacrifícios de Helga.
Voltou sem aviso.
Não eram marcados para visitas. Bastava a vontade.
O desejo. E pronto. A batida discreta na porta. Outra batida. A espera ansiosa.
Um sujeito sensível. Mais duas batidas. Sèzar parado à porta. Um pacote
amassado embaixo do braço. Sovado pelo sovaco. As mãos nos bolsos da calça. A
boca sorrindo. Repetindo uma, duas mil vezes, a mesma frase — É para você,
Helga. — como se fosse necessário treinar a delicadeza. Sabia como seus lábios
se abririam e deixariam escapar a alma solene do desejo. Queria mostrar-lhe um
Sèzar diferente. Outra batida. Um Sèzar impaciente. Um Sèzar com preferências
arbitrárias.
Abre a porta com o sorriso da criança enfeitiçada,
tem o frescor da inocência deslumbrada por tudo e por nada. A felicidade
descansada do cotidiano. Caminha até Sèzar, sobe na ponta dos pés, lhe dá um
beijo na queixada
— O fugido voltou... espero que com outros olhos. — revirou suas costas e retornou para sua cadeira de balanço, recordação útil que lhe restou da avó.
— O fugido voltou... espero que com outros olhos. — revirou suas costas e retornou para sua cadeira de balanço, recordação útil que lhe restou da avó.
O rapaz não diz nada. Fica parado na porta. Está
enfeitiçado. Olha Helga
espreguiçando um passo após o outro, o quadril giboso
flutuando, a cintura delgada, escavada como em um desenho de violão. O vaivém
requebrado até sentar no berço de balanço
— Não vai
entrar? — um desafio ou um convite
— Vou...
claro... vou entrar.
Fechou a porta.
A voz destreinada não sabia o que insinuar. Quem
sabe declamar-se em alguma poesia? Mas em qual língua? Ela conhece tantas. E o
poeta? Quem Helga não teria lido e não soaria falso na sua boca? Não lembra
nenhum. Pensa em dizer uma das suas poesias. Não, ele não é um poeta. Não é
nada. Um teimoso, isso sim. Com certeza é um cabeçudo. Um granito. Uma entorse
das bobagens da carne viva.
Senta no chão, na frente da garota balançando. O
presente escondido dentro do embrulho. O pacote largado em seu colo. Alguns
livros deitados no chão, ao lado da balança que embalança para frente e para
trás
— Interrompi
suas leituras. — fez uma caricatura da voz, fingia estar envergonhado. Não
estava envergonhado de nada, continuava fingindo
— Não
seja bobo, nós mulheres, lemos um livro de cada vez, ao contrário de vocês, não
lemos três ou quatro livros. Terminamos uma história para começarmos outra.
Sèzar pega um dos livros no chão
— E por
que tantos livros espalhados no chão?
— Esperam...
Ler várias histórias é apenas um jogo para
confundir a solidão, espantar o bolor
— De
qualquer maneira peço desculpas ao senhor Abelaira, não tive a intenção de
roubar a moça de tão ilustre companhia.
— Mas
deveria... — ela dobra as pernas e fica toda recolhida no balanço da avó — E
qual a lembrança que fez o moço sair apressado e retornar ainda mais
misterioso?
Perguntas diretas deixam Sèzar modelando-se ao som
da pergunta
— A minha
urgência? — faz uma pequena pausa, precisa de tempo — Entregar-te este mimo. —
largou no chão o livro do escritor português Abelaira. Pegou o embrulho
amarrotado e embalsamado na sovaqueira
Helga adora presentes. Gosta de sair como uma
caçadora de tesouros. Avencas não gostam de ventos, ela não é uma avenca. Adora
surpresas, ser apanhada desprevenida pela delicadeza da lembrança.
Sèzar lhe estende os braços. As mãos oferecem o
presente. Ela sai do colo da avó e senta ao lado dele. A avó fica se balançando
— Abre...
— ele pede — Abre...
Ela segura o pacote aquecido pelo abraço de Sèzar
— O
pacote tá quentinho.
Ele repete o pedido. Engole a própria vontade de
revelar o que se esconde dentro do embrulho, não consegue disfarçar sua
agitação. Ela rasga delicadamente a epiderme de celulose. O pacote é desfeito
aos pedaços. O entusiasmo de Helga também
— O que é
isso?
— Uma
camiseta...
— Do
Grêmio? Sèzar... aqui, na aldeia, somos uma coisa ou outra. Estamos contra ou à
favor. Maragato ou chimango. É uma coisa ou é outra. Colorados ou gremistas.
Vermelho ou azul. Entre colorados e gremistas a rivalidade permite delicadezas,
mas nada como vestir as cores de um ou do outro. Seria como pedir ao catalão,
ao basco e ao galego para renegarem suas línguas regionais. Ou conseguir que
árabes e judeus se entendam sobre Jerusalém e as areias do Oriente Médio. Ou
obrigar os chineses saírem do Tibet para o Dalai Lama retornar às suas
montanhas. Ou o cinema parar com as continuações do Homem-Aranha, Batman,
Super-Homem. Ou mais improvável ainda, que parem de se matarem mundo afora. Ou
sei lá, ache você outra comparação, mas gremista não veste a camiseta colorada
nem colorado enfia a camiseta gremista. O que eu acho disso? Não escrevo
histórias, só as leio.
Sèzar deita de costas, o assoalho frio lhe provoca
um pequeno arrepio
— Às vezes
é preciso ousar e mudar a perspectiva, vestir a pele do outro.
— Obrigada.
— fechou o embrulho. Não estava desapontada, estava excitada. Homens são assim
mesmo, vez que outra se empenham para incomodar. Gostam de cutucar a fera com
vara curta. Depois quando a vara fica mole, choram como criancinhas.
Levantou. A fera queria testar o tamanho da vara.
Sèzar continuava deitado com as mãos sob sua
cabeça.
Helga pede que espere.
Ele espera. Não tem o que fazer, precisa esperar.
Ela sai da sala dos livros e das visitas. Sèzar continua
com as mãos por baixo da cabeleira vermelha. Não espera muito. Helga já está de
volta. Quieta. Perigosamente quieta e silenciosa. Ele no chão. Deitado. Ela
desiste de ficar em pé e senta no colo da avó. Balançando. Recostada. Um
pequeno embrulho nas mãos e uma bolsa tiracolo. Dessas que ficam melhores
penduradas no ombro que carregadas nas mãos. Não existem mulheres sem bolsa nem
bolsas sem mulheres. Entrega o pequeno embrulho ao Foguista. O pacotinho se
abre nas mãos de Sèzar
— Uma pastel assado?
— É...
não vai comer? — não foi uma pergunta com espaço para o contraditório. Não está
bem certo que deve morder. Olha a moça colorada nos olhos. Morde a isca com uma
dentada desconfiada
— O que é
isto? – sua voz sai embolada
— Um
convite. — ou outro jeito confortável para desassossegar o moço gremista. Ela
sorri.
É um bilhete. Sèzar pega o bilhete que está entre
os dentes. Faz um movimento com a mão estendendo para Helga
— Leia
você mesmo. É seu. — foi a resposta colorada
— Vale
duas entradas para um jogo do Inter... no meio dos vermelhos? Eu sou
gremista...
A mocinha colorada encolheu os ombros, aumentou o
balanço da avó e fechou os olhos. Continuava sorrindo
— Sèzar,
você precisa ousar. Mudar a perspectiva e colorir a realidade que existe com
outras cores.
O gremista em pé. Sério. A sala dos livros
sorrindo. O Bolor estremecia sutilmente. Alguns livros não perdem a cara dos
seus autores e continuam nos debochando, mesmo depois do tempo ter queimado o
cozido
— Não
tenho nada vermelho. — a voz soou destreinada e desconfortável
— Isso
não é problema. — desencilhou a bolsa tiracolo. Abriu o fecho e retirou a
camiseta colorada — Agora, já tem.
As cabras-cegas vermelhas e azuis deveriam caber em
uma bolsa tiracolo.
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