Ensaio 03AB
baitasar
No
quarto há uma cama, sobre a cama um homem, sobre o homem um menino, sobre o
menino o medo. Sèzar respira boca abaixo com o corpo retesado. Ensaia engolir o
ar aos goles, o seu acanhado aperitivo da vida.
Pequenas
bicadas. Afogando-se. Obstinado. Ele vai tentando respirar.
O
telefone dispara o sinal sonoro de mais uma chamada. A terceira chamada. As
duas primeiras deixou tocar até a exaustão do corneteiro. O anúncio é um toque
de corneta. Gosta dos toques de corneta convocando homens para matar ou morrer.
Atacar pela honra deles mesmos, seguindo a ordem da corneta. O corneteiro é
anônimo. As jaquetas azuis em seus cavalos, as espadas, os fuzis, os gritos
selvagens da carga de cavalaria. E a ordem para tocar
— Atacaaaaaaaaaar!
Escolheu
esse toque depois que Helga contou a história dos soldadinhos de chumbo
desaparecidos. O exército perdido. O castigo do pai. A injustiça da sentença. O
irmão delator. Uma memória infeliz para Helga, ele concorda. Mas não consegue
evitar. Ou não quer.
Deixa
o aviso anunciar o ataque uma, duas, três vezes, estende o braço do homem. O
menino reconhece o número chamando. Afasta o nebulizador e atende
— Não... não posso... Gustavo... não
posso. — desliga o telefone que
fica sobre a cama. Aproxima o nebulizador — Nenhum pensamento... nenhum
pensamento...
Não
consegue a prudência de não pensar durante suas crises. Sente-se impuro. Ao
lado do seu corpo afogado em ar puro. Os pulmões inflados. Os músculos
retesados. O assovio congestionado. Não consegue se retirar dos pensamentos. Não
consegue se retirar do seu corpo. Abandonar-se de raciocinar e julgar a si
mesmo. Fluir na correnteza silenciosa da liberdade. Deixar os dois amigos na
margem. Distantes e imóveis.
Amigos
desde os tempos do colégio. Dois grandões e fortões modelados na Academia. E
com anabólicos. A Academia é uma rotina de muito tempo. Os anabólicos foi um
achado oportuno e rápido para aumentarem suas medidas. Cuidam das aparências.
Sèzar avisou dos riscos. Desrespeitar os perigos é o modo de vida do Gustavo.
Os três começaram a rotina dos treinos aos treze anos. Pesos, medidas, espelhos
e dietas bombásticas. O professor desaconselhou. Deveriam esperar outras
definições do corpo, como por exemplo, o crescimento. Do contrário, não
ficariam do meu tamanho, é lógico, mas iriam perder alguns centímetros na
corrida do tamanhão
— O professor explicou que são muito
sérias essas práticas inadequadas. Não precisamos ter pressa. — o Gustavo não
queria entender, não queria ouvir. Sèzar sugeriu que votassem. Votaram. Ele
perdeu por um voto. Os dois fortões venceram. Dois votos para iniciarem os
treinos, imediatamente. Um voto para esperarem. Começaram. E ainda não pararam.
Ele nunca começou. A cada vez que iria iniciar os treinos tinha uma crise de
asma. Foi fazendo do seu jeito
— Vou fazer do jeito dá... concordam? — os
dois concordaram. Conversou com o professor na escola. Não gostava das aulas,
mas gostava do papo. Fez do jeito que o professor o instruiu.
Hoje,
ele não foi. Não respondeu ao chamado. A máscara dos músculos e a TOC gremista
iriam esperar. Ele precisa da máscara do nebulizador.
Olha
para o telefone e lembra os amigos. Sorri.
Anos
antes, a intuição da sobrevivência em Sèzar aproximou os seus lamentos
respiratórios ao amontoado corpóreo Daniel-Gustavo. Dois gorilas brancos, desde
os tempos do colégio. Ídolos do esporte. Bons em tudo. O abismo de Sèzar era o mundo
dos triunfos e vitórias dos músculos fortificados, garotas, festas, esportes e
o espelho. Media-se e não tinha as aparências do nadador-salvador. Precisava de
um exército inventado, se tornar atraente e decorativo para esse mundo
imaginário.
Continuava
morrendo de medo dos voos noturnos com festas, danças, bebidas, e lógico,
definhava quando os objetos disputados eram garotas.
Precisava
de um plano.
As
garotas iriam esperar.
No
fundo da sua escuridão desistente sempre nutriu esperanças com as garotas. Nas
disputas solitárias dos cinco dedos contra um, tinha suas preferências
fantásticas. Viagens entre linhas retas e curvas, más influências excitantes a
quem se entregava. Vitórias breves. Queria mais. Sonhava com mais.
Precisava
de um plano.
Uma
coisa de cada vez. Primeiro precisava encontrar dois guarda-costas. Os dois
gorilas brancos eram perfeitos. Duas montanhas que morriam de medo da
matemática, física, química e biologia. Eram ótimos na educação física.
Sèzar
nunca gostou de esportes. Nem mesmo quando menino. Ia aos parques infantis com
o pai. Ele para ficar atento olhando as outras crianças. Recomendações severas
da mãe. O pai para ficar atento olhando as outras mães. Cresceu com a convicção
que as disputas de contato físico apenas reforçavam suas fraquezas. E diminuíam
suas chances por alguma coisa. Qualquer coisa. Estava encarcerado e precisava
de guarda-costas.
As
aulas de jogar bola não ajudavam, só faziam o medo aumentar. As aulas da
matemática o aproximaram do Daniel, depois foi a vez da física. Quando chegou a
vez da química e da biologia, o Gustavo já fazia parte do pequeno grupo de
estudos.
E
chegou o dia, Sèzar ergueu-se sobre as próprias pernas e pediu para a mamãe sua
primeira camisa de jogar bola. As mães sonham com pesadelos, é inevitável
— Futebol, Sèzar? — descreveu todas as
suas angústias, agonias e medos. Quatorze anos de vigílias e cuidados
com o filho. Sèzar esperou silencioso o esgotamento daquele modelo de
reprovação e contou a verdade pela metade. Meia verdade não chega a ser uma
mentira inteira. Talvez uma meia mentira. Uma mentirinha. Temos pessoas em
nossas vidas que aparentam não suportar toda à verdade. Sèzar achou melhor
assim, e pronto
— Mãe, estamos fundando a Torcida
Organizada Gremista, a TOGremista!
— O quê? — a primeira vitória, ela não
disse o seu tradicional — Não! — pediu para ouvir mais, queria ouvir mais,
avaliar melhor a história do filho
— Mãe... eu e outros meninos da escola...
— não podia dizer que os treinava para serem seus guarda-costas — ... estamos
organizando a torcida jovem tricolor do colégio. Não serão apenas coisas do
futebol, teremos encontros para estudar matemática, física, etc etc etc. É
muito importante. — poderia ter acrescentado que apostava nesse projeto como o
salvador da sua própria vida. A existência de um Sèzar homem crescido, forte e inventado por ele, não pelo jeito dos outros.
Assim,
ele se tornou um vibrante organizador de amigos e amigas. Não precisavam ser
grandões e fortões, mas com a paixão e a necessidade de sobreviver. Agora, era um
deles. O líder. Com o devido tempo e treino, poderia ser transformado numa
máquina de moer carne enquanto melhorava as aptidões da matemática em alguns, e
da física em outros. Iriam se ajudar. Surpreender. Esse foi o começo da TOC,
Torcida Organizada do Colégio. O Diretor da escola fez os rapazes tirarem o
nome gremista, não queria disputas na escola
— Tudo bem, rapaziada. — parou para usar a
bombinha salvadora — O azul tricolor será nosso reconhecimento. O farol a nos
iluminar.
Funcionou todos esses anos.
Sèzar
não era mais o garoto franzino. A TOC, o tempo e os amigos o fizeram um homem
crescido com cabelos longos. Vermelhos. Gostava de escrever, mas escrever não
era real. Então, sempre que o seu Grêmio jogava em Porto Alegre, ele e a TOC,
mais velha e pesada que nos tempos de colégio, enfiavam suas camisetas
tricolores, esticadas nos braços e peitorais, e iam à Geral.
Gritavam,
xingavam e cantavam. Isso era anárquico. Subiam e desciam correndo as
arquibancadas, isso era uma avalanche. Algumas vezes, saíram ignorando o
resultado do jogo, isso era excitante. Sèzar começou a sentir que a TOC era
real, ele não estava mais existindo em uma vida que parecia um acidente. Levava
o futebol muito a sério
— Futebol é uma coisa séria, mãe. Mas
torcer é uma festa. — por isso, ficou animado com a ideia do presente para
Helga, a camiseta tricolor e o abraço no estádio Olímpico. Não contava com o
movimento da amiga. Agora, era o peão nas mãos da rainha.
A
batida na porta. Chegou o dia do troco. Nebulizado. Prevenido.
É
bom ter amigos que ajudam lomba acima. E ladeira abaixo, também. Caminhar no
chão limpo, raso e liso é fácil, tem as suas dificuldades, mas não se compara
quando você sobe a lomba das conquistas cobiçadas. Toda ajuda é bem-vinda,
principalmente, se ninguém normal acredita em você. Eu quero ser escutado, mas
Sèzar não, ele deseja apenas escrever
— Helga, eu não quero ser lido somente por
gente normal, polida, bem educada. E que Deus não me livre dos medíocres e
pataqueiros. Você acredita em mim?
— Não sei. Você parece o herói de si
mesmo.
— É a minha natureza não querer desagradar.
Parece que se eu não agradar vou ganhar como castigo a falta de ar.
— Por isso usa tantas máscaras. Vê se
cresce.
São
nos momentos em que tudo desaba e a descida se torna íngreme, resvaladiça, que
a mão amiga é bem-vinda. Sèzar entendeu, mas sentiu que havia levado um tapa.
A
banca ganha e paga.
Chegou
o dia da banca pagar.
O
ingresso para o grenal no bolso da calça. A barba por fazer, o boné preto com a
aba mais larga que pode comprar. A camisa vermelha por cima da camisa preta.
Outra
batida.
Lembra
que precisa ter mais cuidado com suas brincadeiras e provocações.
Os
óculos escuros imensos. A ideia é afundar atrás deles. Ficar imerso.
Abre
a porta.
Ela
está ali. Linda
— Sèzar?
Sorri
sem desfazer o disfarce. Um sorriso abstêmio. Nervoso
— Estás pronto, Sèzar?
Novamente, não
responde. Sai e fecha a porta
— Vamos? — convida, finalmente
— Gostei do boné e da barba. É para
sempre?
Guarda
a chave no bolso
— O que é para sempre?
Ele
pega Helga pelo braço. Saem para o estádio dos colorados. O Beira-Rio. Vão a pé
até o Mercado Público. Ainda triste, com as cores do último incêndio. Em obras.
Um lugar de histórias. Ali, no Centro Histórico da cidade pegam o ônibus dos
colorados. É sua primeira vez num ônibus só com colorados. Mas parece tudo
muito igual. Um exército gritando nomes mitológicos, cantando músicas de guerra.
Convocatórias. Para ele é um passeio fúnebre de alguns minutos.
Descem
do ônibus e caminham para o estádio. Estão perto. O boné enterrado até as
orelhas. Enfiado nos olhos. Afogado na viseira escura e grande. Um véu de
camuflagem. Vestia a sua burca
— Tudo bem, Sèzar?
— Isso não é real, não está acontecendo.
Ela
pega em sua mão, ele está suando
— Quer desistir? Tudo bem. — não se
consegue massacrar até o fim, a menos que o instinto da vingança esteja reunido
ao desejo da sobrevivência. Num caso deste, o melhor é não ficar por perto. Helga
não quer vingança
— Quero. Mas não vou desistir. — essa é o
macho do pampa gaúcho. Morre, mas não dá um berro. É o seu jeito de ver e morrer. Um jeito egoísta.
Nos
arredores do estádio cruzam com a TOC gremista, todos os amigos e amigas caminham agitados. Sem ele, desfalcados do sócio fundador. O seu líder. Sente que foi capturado, mas não pode pedir por socorro. Está amordaçado. Recorda o mesmo pavor do menino franzino e doente. Os passos gaguejam. Helga
segura firme em sua mão e o beija.
O
primeiro beijo.
Os
rapazes passam por eles
— Vi isso num filme. — ela diz.
Ele
pergunta se o beijo foi real ou um disfarce
— Isso foi uma avalanche.
O
futebol nem é tão importante, mas a festa...
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