Ensaio 02AB
baitasar
Helga
foi coisa nenhuma desde que nasceu. Pelo menos, foi isso que aprendeu na
escola. Era a única negra. E isso não foi pouca coisa. Rompeu o cordão de
isolamento dos brancos na escola dos privativos. Entrou onde o povo da estrada
das águas não entrava. Mas ela preferia a rua e as suas criaturas.
Conseguiu
sobreviver à escola, graças às ruas. Mas só conseguiu isso depois que veio a
faculdade, as lutas sociais, as manifestações de rua, o teatro na rua, e claro,
com as conferências e palestras com seu analista psicanalista, longas horas de
loucura branca no divã. Não queria ser salva de ser negra e moleca das ruas. Voltou
para casa sozinha, um pouco espírita, outro tanto mística, histérica, à toa. Até
descobrir que o seu desconchego foi decidido ainda na barriga da mãe. Não
seria branca ou preta, gremista ou colorada, chimanga ou maragata
— A culpa é das estrelas?
Sentava
no colo da avó e se balançavam. Não seria nem isso nem aquilo, muito antes pelo
contrário, seria todos ou ninguém
— Quantas vezes me senti menino? —
brincava de mocinho e bandido com os meninos, mas não era o mocinho ou o
bandido. Escolhia ser o juiz para ordenar o enforcamento. Brincava
de médica com as meninas, mas não era a doutora ou a paciente, gostava de ser a
enfermeira para ajudar a cuidar vidas. Até o dia que a Inês, uma garotinha de seis
anos, vomitou em seus pés. Ela estava mais doente que brincando. Neste dia,
Helga desistiu de salvar vidas — Quantas vezes me senti menina?
Esqueceu-se
de parecer normal. Os medos dormiram. Helga passou a experimentar fogões e
carrinhos, panelas e tamborzinhos, bonecas e soldadinhos. O irmão perdeu um
exército inteiro de soldadinhos de chumbo do pai. Helga foi acusada e
condenada. Os soldadinhos foram do avô. A sentença do pai foi solene
— Nunca mais pegue meus soldadinhos!
Voltou
às saladinhas, sopinhas e bebês. Era só a sua menina que brincava e se
divertia, o seu menino não brincava. Ou brincava camuflado de esconde-esconde.
Anos
depois, em suas conferências psicanalíticas com aparições telepáticas,
confessou para sua menina que gostaria de ter nascido menino e um ano antes do
irmão. Isso ficou claro para Helga no dia em que seu irmão quis brincar com
suas bonecas — Nascer antes teria feito muita diferença!
O
chato do irmão é real. E gremista. Ela decidiu que também teria uma paixão: o
vermelho. Aceitou o jogo daquelas forças supremas. Seria o espinho atravessado
no pé do guri chato e abelhudo. Ninguém lhe explicou que os irmãos são chatos e abelhudos. Quando a felicidade dos colorados frustrava qualquer contentamento do irmão ela sorria e se deliciava — Adoro!
Enquanto
o irmão rezava e fazia promessas pela derrota dos colorados, ela torcia
fervorosamente pela infelicidade dos gremistas. Levava um crucifixo pendurado
no pescoço, nos dias de jogos mordia e rezava com o a cruz na boca. No início
pensou em jogar o seu deus contra o deus do irmão. E que os dois julgassem o
caso, lá por cima. O mais forte iria vencer. Depois quando lhe ensinaram que o
deus do irmão e o deus que a protegia do irmão era um só Deus. Único. Pai e
Filho. Fodeu-se tudo. Não tinha chance. Sentiu-se desamparada. Sem forças para
lutar um luta tão desigual. Um menina negra sem um deus só para ela, lutando
contra um semideus.
Foi
quando descobriu os orixás.
E no candomblé nunca mais foi a mesma. Foi feliz. Não queria o pai triste, mas não
suportava os gritos do irmão de felicidade gremista — Odiava! — precisou
aprender a distorcer os olhos.
Por
essas e outras razões, sempre temos mais motivos e argumentos para odiar se não
sabemos desaranhar os pensamentos mais escondidos dos nossos olhos. E ali está
ela estendida sobre a cama. A camiseta azul. Gremista. O presente do Sèzar. Helga está
sufocada por uma realidade que não é real. Só existe nas aparências. É só uma
camiseta azul, mas não é só uma camiseta azul
— Esse é o problema do mundo das
aparências, as sombras não são disfarces nem são sombras, são as luzes. O brilho... o neon.
Quando
ela respondeu à professora da primeira série, sobre o que gostaria de mudar no
mundo, disse apenas
— Se eu pudesse mudaria o nome do Brasil para
Inter!
E no
entanto, a camisa azul continuava estendida sobre a cama
— É bonita... — sempre lembra que o pai foi
gremista. Mas aquele ano fez muita diferença. O ano que não aconteceu antes do
irmão. Um ano perdido.
Olha
para o relógio. A hora marcada chega ao galope. Avoando como os cabelos
avermelhados do Sèzar. Desveste suas roupas e vai para o banho. Gosta de
caminhar nua. Goza com sinceridade aquele passeio sem importância até o
chuveiro. Sente-se real sem as roupas. Não se distrai com as aparências. É ela
que está ali, em carne e ossos. Mais carne do que ossos, bem sabem, mas é isso.
Está bem assim.
Gira
a torneira.
O
primeiro jato a faz estremecer. Está fria. Regula a temperatura. A água morna a
relaxa. Sente o perfume da água aliviando as tensões e retirando finas lâminas
da sua casca. Gosta de sentir sua pele com as mãos, se perguntassem o nome de
uma fruta que lembra como se toca, responderia — Um pêssego... um pêssego
aveludado.
Gosta
de se visitar.
Fecha
os olhos para sentir as mãos se acomodando em suas curvas e desvios. Apertando e
sorrindo. Outra vez. Um corpo se hospedando em suas mãos. Ela é duas. O amor e
o pecado. Em silêncio. Leva a mão à boca. São doces os gostos e os beijos.
Continua a se provocar com diabruras. A água quente. O leite quente. O chuveiro se
parece com um casulo. A lagarta e a borboleta. O renascimento. Uma febre
intensa. Está pronta.
Falta
a camiseta azul.
Sai
do chuveiro.
Enxuga-se
demoradamente. Desafia o galope veloz do relógio.
Pronto.
Está limpa e seca.
Veste
a calcinha vermelha. Espia-se no espelho. Sorri.
Enfia-se
numa calça jeans. Desbotada. Alguns rasgos. Charme de quem pode escolher andar
rasgada, ou não. O charme é a escolha. Despojada das roupas certinhas. Mas precisa
ter grife. Pedigree. As meias brancas e o tênis preto. As duas meias-taças
vermelhas colocadas no peito. Firmes. Imponentes.
Pronta.
Vestida para torcer.
Falta
a camiseta azul. Lembra o pai melancólico com sua escolha pelo coloradismo.
Sorriu para ele e vestiu a camiseta gremista
— Nem doeu! — mas não se viu no espelho.
O
Sèzar estava parado à porta. As mãos nos bolsos. Os olhos enfiados nela.
Sorrindo. A boca abrindo sua alma
— Estás pronta?
Ela
está pronta, sempre está pronta.
Os
colorados não se lembraram de abraçar o estádio velho, já vendido. Ou não
quiseram. Despedidas doem. Apenas venderam as memórias. Tudo se vende no mundo
do futebol. Parece que é assim, agora. É preciso apenas fazer o preço. Faltou acarinhar o velho estádio
colorado. Por certo, houve razões. Agora não é mais possível mudarem as
aparências desse esquecimento.
Os
dois saem abraçados para abraçar o estádio dos gremistas. Mais um velho
vendido. Transformado em lojas e bares. Um abraço de despedida e reencontro com
as histórias-memórias. Um último abraço no velho pai.
Ele
estará lá
— Eu fui!
Gremistas
ou colorados são alguma coisa que existe nas aparências de um desassossego que
não enche barrigas, mas desafia os ponteiros do relógio.
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