terça-feira, 24 de junho de 2014

As alucinações desatadas da jaula

Ensaio 04AB
baitasar
A ousadia da paixão foi uma demasia que Sèzar nunca permitiu aos seus excessos solitários ingovernáveis da vontade. Monólogos monótonos. Cinco contra um. Uma demasia. Covardia. Quase uma ditadura. Alucinações incontroláveis. Até que Helga desatou da jaula suas alucinações da carne. No seu devaneio sedutor noviço quis devorar os dias com chuva ou com sol. Não conseguia evitar a vontade de engolir as noites com estrelas e a escuridão do quarto. Quis comer Helga inteira, numa só mordida. Teve que aprender a esperar e ser comido.
Ela o fez confiar e desejar.
Mostrou como esparramar-se nas conversas com as vontades do corpo. A solidariedade com a outra vontade. Humilde, amoroso e corajoso. Nem todos têm essa coragem para aprender. Matam a vida. Sèzar sempre quis a vida, lastimava a falta da solidariedade com a vida e o egoísmo imaginário do ódio
—        Sèzar, as brincadeiras não são para sempre. — enrolou-se no lençol e foi ao banheiro. O noviço ficou deitado, olhando sua bela companhia caminhando, tornando-se uma ausência
—        E o que é para sempre? — perguntou àquela sua deusa heroica que lhe seduziu o desejo imaginário que tinha medo do real, ela continuava lhe tocando mesmo na ausência
—        Nada, Sèzar. Nada é para sempre. Com o tempo perdemos os movimentos peristálticos da paixão, nos tornamos azedos como limões mofados. — e calou-se. O silêncio no banheiro vinha como uma ausência que estava nele. Levantou. Em um breve instante duvidou que aquele quarto fosse real. Procurou o lençol para se enrolar. Sorriu de si mesmo. Um homem não se esconde, precisa se mostrar. Disfarces são as substâncias das mulheres. Ele queria se exibir. Aparentar-se homem. Caminhou até o banheiro e parou na porta
—        Eu sei, eu sei. Pelo menos, acho que sei. Cada coisa que desejo e deixo de fazer é um desaproveitamento do desejo... é eu sei, estou dizendo bobagens. — abriu os olhos para reconhecer a deusa do desejo, que nem mesmo os olhos conseguiam descrever nem preparar para o que viria. Ela estava sentada, olhando para ele. Sentiu que o olhar e a memória daquele olhar poderiam deixar uma etiqueta, um protocolo de lamentos e contentamentos — Tenho medo das grades do circo com seus altares e jaulas.
—        Tenho mais medo dos arrojos de heroísmo do ódio.
Até aquela tarde, ela procurava as brincadeiras do amor, ele caminhava a esmo devorando a solidão do refrigerador, das comidas congeladas. Não sabia se queriam o que viria
—        Sèzar... fecha a porta, por favor. — a intimidade pode ser obscena
—        Por que?
Helga ergue o queixo e o olha, é a sua vez de enfiar-se nele. Vendar seus olhos para alguns mistérios. A inteligência não precisa publicar todos os segredos. Reconhece a boniteza daquele amigo que se metamorfoseou em seu amante. Lembra que não foi sob a luz da lua cheia, nem a beira da praia encoberta no crepúsculo, nem na meia luz do cinema, que aconteceu o primeiro beijo. Não foi um beijo disfarçado de fingimento, foi bonito e intenso
—        Sèzar, a paixão não resiste à porta do banheiro aberta.
Ele sorri e dá um passo atrás, antes de fechar a porta, diz
—        Você tem razão, de novo. O que nunca existiu para nós, apenas não existiu para nós porque não foi visto. Não lembramos o que não existiu para nossos olhos. — fecha delicadamente a porta.
O fogo precisa ficar escondido da desatenção do mundo inventado sem desejo. A fogueira não sobrevive só do olhar do outro, nem apenas da intenção. A desordem está cheia de boas intenções, assim, como, os ordeiros estão afogados em más intenções. O beijo só é real no beijo, não é antes nem depois, mas é na lembrança que fica mais real que na realidade. É como é lembrado. Por isso, não morremos quando não somos esquecidos. Os amores incompletos que não desistem esperam o desejo de outros amantes, guardam na memória as lembranças das ausências. As lágrimas e os risos não são uma declaração de amor em vão porque o que não lembramos não existe mais, mesmo que exista, a menos que aconteça de novo. E os amores incompletos? Os amores incompletos não desistem até que desistem. Quando não queremos que algo exista, esquecemos. Então, não acontece mais. E os amores incompletos não são mais amores.
Por isso, no jogo seguinte, Sèzar voltou aos braços da TOC gremista. Cantou com o Daniel e o Gustavo a sua purificação
—        Esse amor descontrolado
            Nunca vou deixar de lado
            Eu te sigo onde for
            Eu te sigo tricolor!
Na Geral gremista tinha a avalanche, as bandeiras, a batucada furiosa, os gritos. Era preciso pular, berrar, esquecer os costumes da vida. Às vezes, dava para ver o jogo, e no gol vinha o êxtase. A avalanche da alegria, a encarnação do prazer. Era preciso estar atento ao deslizamento da torcida gremista. Não tinha como se esconder do prazer de descer correr as escadarias da geral até o limite físico do muro. Correndo e esperneando para esparramarem-se no útero gremista. Uma avalanche orgástica. O eco dos gritos que não faz caso do muro segue em frente, supera as grades, os tijolos, está lá dentro do gramado. Entre as ramas verdes e tenras florescendo pisoteadas, regadas pelos suores e lágrimas derramadas. O terreno majestoso das quatro linhas que separa homens e meninos, realidade e fantasia.
Ele espera deitado de costas na grama branca
—        Sèzar, estou pronta. — a porta se abre, novamente.
É preciso desafiar a própria alegria, reencontrar o conhecido. Não basta ser guerreiro, gritar insânias. A realidade não se curva aos personagens que parecem o que não são. Ela o convida para aceitar a vida, retirar os enfeites. Ele caminha dois passos atrás. A mulher entra no chuveiro e some na névoa inquieta e suave. Acena para o moço penetrar na bruma úmida e fértil da imaginação. Deslembrar todas as outras vidas que tem.
Não responde. Entra e fecha a porta. Mais dois passos à frente. A mão da moça revela-se através da cortina esfumaçada para pegar na sua mão. O moço inquieto e curioso atravessa o nevoeiro e toca em seus cabelos. Um pequeno amontoado de fios curtos e crespos. Beija dois pequenos povoados e arrebita os dois pequeninos bicos. A mão se solta das mãos da moça e sobe. Afrouxa os músculos da nuca, impondo sem incomodar. Decifrando o desejo. De vez em quando faz algum pedido estranho e avisa que perdeu o medo. É a mulher que ama o homem que exagera as voltas com os dedos. O arrebatamento o faz antecipar os próprios movimentos.
Abraça a mulher com paixão. Ela oferece a boca inteira. Canela e maçã. O gosto da Via Láctea dos sonhos. Está dobrado sobre os joelhos. Ela em pé, os dedos enfiados em seus cabelos. A boca molhada. Os beijos. O jasmim. O jardim. As reticências da língua esquiva e nervosa se enfiam. Ele reza sem queixas ou arrependimentos. Ela o acolhe inteira, molhada e atrevida
—        Que delícia... — agarra seus cabelos molhados e ajeita do seu jeito o menino.
Sèzar devora todas as águas. A boca louca e insatisfeita querendo outra vez estar livre para ele com seus beijos molhados. Adora aqueles costumes da vida.
Ele levanta desajeitado
—        Por onde andam teus olhos?
—        Estão onde está a luz da lua cheia.
Os joelhos adormecidos. A boca alagada. Ela desce a mão e lhe segura. Forte e decidida
—        Adoro!
Os beijos das duas bocas não afrouxam. Os músculos retesam. Helga dobra os joelhos e engole a insônia, o ar tristinho, a tevê na madrugada, as meias de lã, os chinelinhos de pelúcia, forrados, quentinhos. Repete que gosta daquela doçura, os versos de amor, o sabor picante que queima por inteiro. Não há trégua. Ela fincada até os joelhos nas águas cálidas. Ele em pé se oferece por inteiro. Sólido. Erguido. Os dedos enfiados em seus cabelos molhados. Esquece o medo, as dietas e as medidas. Lembra que pode abrir os olhos. Esquece e não abre os olhos. Lembra que aguenta gemer, avisar como é bom. Esquece-se de avisar. Tudo é bom. Na bruma apenas o zumbido insistente dos seus não gemidos, da sua não tristeza
—        Vou derramar o meu amor...
—        Bruxo, me espera.
Ela levanta. Atrevida. Pega em sua mão. Fecha o chuveiro. O silêncio das águas para. A mulher e o moço caminham do nevoeiro. Entram no quarto
—        Deita. — não é pedido, nem alguma ordem, é o desenho de um mapa
—        Estamos molhados... — ele nunca saiu do banheiro antes de secar o chão
—        Adoro!
O moço deita. Não fecha os olhos
—        Se você quiser pode fechar os olhos... é melhor para adivinhar.
—        Você é linda.
Ela não acredita em bobagens de menino
—        Quer que apague a luz? — a mulher continua em pé, ainda não subiu no gramado branco
—        Não. Eu escolho quando apago meus olhos. — é a sua resposta para a sua mulher. Sente-se um pouquinho dono dela. Um homem. Quer poder abrir os olhos e ver para lembrar ou fechar para adivinhar.
Ela quer lhe mostrar que o moço pode lembrar o que não vê
—        Feche os olhos... se quiser.

_________________
Leia também: 
O Futebol nem é tão importante, mas a Festa
Ensaio 03AB


As mãos
Ensaio 05AB

Nenhum comentário:

Postar um comentário