Ensaio 04AB
baitasar
A
ousadia da paixão foi uma demasia que Sèzar nunca permitiu aos seus excessos
solitários ingovernáveis da vontade. Monólogos monótonos. Cinco contra um. Uma demasia. Covardia. Quase uma ditadura. Alucinações incontroláveis. Até que Helga
desatou da jaula suas alucinações da carne. No seu devaneio sedutor noviço quis
devorar os dias com chuva ou com sol. Não conseguia evitar a vontade de engolir
as noites com estrelas e a escuridão do quarto. Quis comer Helga inteira, numa
só mordida. Teve que aprender a esperar e ser comido.
Ela
o fez confiar e desejar.
Mostrou
como esparramar-se nas conversas com as vontades do corpo. A solidariedade com
a outra vontade. Humilde, amoroso e corajoso. Nem todos têm essa coragem para
aprender. Matam a vida. Sèzar sempre quis a vida, lastimava a falta da
solidariedade com a vida e o egoísmo imaginário do ódio
— Sèzar, as brincadeiras não são para
sempre. — enrolou-se no lençol e foi ao banheiro. O noviço ficou deitado,
olhando sua bela companhia caminhando, tornando-se uma ausência
— E o que é para sempre? — perguntou àquela
sua deusa heroica que lhe seduziu o desejo imaginário que tinha medo do real, ela
continuava lhe tocando mesmo na ausência
— Nada, Sèzar. Nada é para sempre. Com o
tempo perdemos os movimentos peristálticos da paixão, nos tornamos azedos como
limões mofados. — e calou-se. O silêncio no banheiro vinha como uma ausência
que estava nele. Levantou. Em um breve instante duvidou que aquele quarto fosse
real. Procurou o lençol para se enrolar. Sorriu de si mesmo. Um homem não se
esconde, precisa se mostrar. Disfarces são as substâncias das mulheres. Ele
queria se exibir. Aparentar-se homem. Caminhou até o banheiro e parou na porta
— Eu sei, eu sei. Pelo menos, acho que
sei. Cada coisa que desejo e deixo de fazer é um desaproveitamento do desejo... é eu sei, estou dizendo bobagens. —
abriu os olhos para reconhecer a deusa do desejo, que nem mesmo os olhos
conseguiam descrever nem preparar para o que viria. Ela estava sentada, olhando
para ele. Sentiu que o olhar e a memória daquele olhar poderiam deixar uma
etiqueta, um protocolo de lamentos e contentamentos — Tenho medo das grades do
circo com seus altares e jaulas.
— Tenho mais medo dos arrojos de heroísmo
do ódio.
Até
aquela tarde, ela procurava as brincadeiras do amor, ele caminhava a esmo
devorando a solidão do refrigerador, das comidas congeladas. Não sabia se
queriam o que viria
— Sèzar... fecha a porta, por favor. — a
intimidade pode ser obscena
— Por que?
Helga
ergue o queixo e o olha, é a sua vez de enfiar-se nele. Vendar seus olhos para
alguns mistérios. A inteligência não precisa publicar todos os segredos.
Reconhece a boniteza daquele amigo que se metamorfoseou em seu amante. Lembra
que não foi sob a luz da lua cheia, nem a beira da praia encoberta no
crepúsculo, nem na meia luz do cinema, que aconteceu o primeiro beijo. Não foi
um beijo disfarçado de fingimento, foi bonito e intenso
— Sèzar, a paixão não resiste à porta do
banheiro aberta.
Ele
sorri e dá um passo atrás, antes de fechar a porta, diz
— Você tem razão, de novo. O que nunca
existiu para nós, apenas não existiu para nós porque não foi visto. Não
lembramos o que não existiu para nossos olhos. — fecha delicadamente a porta.
O
fogo precisa ficar escondido da desatenção do mundo inventado sem desejo. A
fogueira não sobrevive só do olhar do outro, nem apenas da intenção. A desordem
está cheia de boas intenções, assim, como, os ordeiros estão afogados em más
intenções. O beijo só é real no beijo, não é antes nem depois, mas é na
lembrança que fica mais real que na realidade. É como é lembrado. Por isso, não
morremos quando não somos esquecidos. Os amores incompletos que não desistem
esperam o desejo de outros amantes, guardam na memória as lembranças das
ausências. As lágrimas e os risos não são uma declaração de amor em vão porque
o que não lembramos não existe mais, mesmo que exista, a menos que aconteça de
novo. E os amores incompletos? Os amores incompletos não desistem até que
desistem. Quando não queremos que algo exista, esquecemos. Então, não acontece
mais. E os amores incompletos não são mais amores.
Por
isso, no jogo seguinte, Sèzar voltou aos braços da TOC gremista. Cantou com o
Daniel e o Gustavo a sua purificação
— Esse amor descontrolado
Nunca vou deixar de
lado
Eu te sigo onde for
Eu te sigo tricolor!
Na
Geral gremista tinha a avalanche, as bandeiras, a batucada furiosa, os gritos.
Era preciso pular, berrar, esquecer os costumes da vida. Às vezes, dava para
ver o jogo, e no gol vinha o êxtase. A avalanche da alegria, a encarnação do
prazer. Era preciso estar atento ao deslizamento da torcida gremista. Não tinha
como se esconder do prazer de descer correr as escadarias da geral até o limite
físico do muro. Correndo e esperneando para esparramarem-se no útero gremista.
Uma avalanche orgástica. O eco dos gritos que não faz caso do muro segue em
frente, supera as grades, os tijolos, está lá dentro do gramado. Entre as ramas
verdes e tenras florescendo pisoteadas, regadas pelos suores e lágrimas
derramadas. O terreno majestoso das quatro linhas que separa homens e meninos,
realidade e fantasia.
Ele
espera deitado de costas na grama branca
— Sèzar, estou pronta. — a porta se abre,
novamente.
É
preciso desafiar a própria alegria, reencontrar o conhecido. Não basta ser
guerreiro, gritar insânias. A realidade não se curva aos personagens que
parecem o que não são. Ela o convida para aceitar a vida, retirar os enfeites.
Ele caminha dois passos atrás. A mulher entra no chuveiro e some na névoa
inquieta e suave. Acena para o moço penetrar na bruma úmida e fértil da
imaginação. Deslembrar todas as outras vidas que tem.
Não
responde. Entra e fecha a porta. Mais dois passos à frente. A mão da moça
revela-se através da cortina esfumaçada para pegar na sua mão. O moço inquieto
e curioso atravessa o nevoeiro e toca em seus cabelos. Um pequeno amontoado de
fios curtos e crespos. Beija dois pequenos povoados e arrebita os dois
pequeninos bicos. A mão se solta das mãos da moça e sobe. Afrouxa os músculos
da nuca, impondo sem incomodar. Decifrando o desejo. De vez em quando faz algum
pedido estranho e avisa que perdeu o medo. É a mulher que ama o homem que
exagera as voltas com os dedos. O arrebatamento o faz antecipar os próprios
movimentos.
Abraça
a mulher com paixão. Ela oferece a boca inteira. Canela e maçã. O gosto da Via
Láctea dos sonhos. Está dobrado sobre os joelhos. Ela em pé, os dedos enfiados
em seus cabelos. A boca molhada. Os beijos. O jasmim. O jardim. As reticências
da língua esquiva e nervosa se enfiam. Ele reza sem queixas ou arrependimentos.
Ela o acolhe inteira, molhada e atrevida
— Que delícia... — agarra seus cabelos
molhados e ajeita do seu jeito o menino.
Sèzar
devora todas as águas. A boca louca e insatisfeita querendo outra vez estar
livre para ele com seus beijos molhados. Adora aqueles costumes da vida.
Ele
levanta desajeitado
— Por onde andam teus olhos?
— Estão onde está a luz da lua cheia.
Os
joelhos adormecidos. A boca alagada. Ela desce a mão e lhe segura. Forte e
decidida
— Adoro!
Os
beijos das duas bocas não afrouxam. Os músculos retesam. Helga dobra os joelhos
e engole a insônia, o ar tristinho, a tevê na madrugada, as meias de lã, os
chinelinhos de pelúcia, forrados, quentinhos. Repete que gosta daquela doçura,
os versos de amor, o sabor picante que queima por inteiro. Não há trégua. Ela
fincada até os joelhos nas águas cálidas. Ele em pé se oferece por inteiro.
Sólido. Erguido. Os dedos enfiados em seus cabelos molhados. Esquece o medo, as
dietas e as medidas. Lembra que pode abrir os olhos. Esquece e não abre os
olhos. Lembra que aguenta gemer, avisar como é bom. Esquece-se de avisar. Tudo
é bom. Na bruma apenas o zumbido insistente dos seus não gemidos, da sua não
tristeza
— Vou derramar o meu amor...
— Bruxo, me espera.
Ela
levanta. Atrevida. Pega em sua mão. Fecha o chuveiro. O silêncio das águas
para. A mulher e o moço caminham do nevoeiro. Entram no quarto
— Deita. — não é pedido, nem alguma ordem,
é o desenho de um mapa
— Estamos molhados... — ele nunca saiu do
banheiro antes de secar o chão
— Adoro!
O
moço deita. Não fecha os olhos
— Se você quiser pode fechar os olhos... é
melhor para adivinhar.
— Você é linda.
Ela
não acredita em bobagens de menino
— Quer que apague a luz? — a mulher continua
em pé, ainda não subiu no gramado branco
— Não. Eu escolho quando apago meus olhos.
— é a sua resposta para a sua mulher. Sente-se um pouquinho dono dela. Um
homem. Quer poder abrir os olhos e ver para lembrar ou fechar para adivinhar.
Ela
quer lhe mostrar que o moço pode lembrar o que não vê
— Feche os olhos... se quiser.
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