Ensaio 67B – 2ª edição 1ª reimpressão
o lugá das coisa num feita
baitasar
Já faz algum dia, foi a resposta do josino pru prego
os dois papeava na loja da sapataria num faz munto tempo, mais o tempo daquela conversa num ia mudá a tristeza dum lado e otro. Um num usava oiá na direção do otro oiá
Vai ficar o tempo de tomá uma caneca do café da Contagotas?
o otro espiô pra fora da botica farmacêutica qui remendava bota, botina e sapato dos moradô villêro. Fez a medição do tempo qui podia ficá, num queria assustá com seu desaparecimento o controladô da obra santa. Comentô de preocupação
Os alarido do dia já tá embuchando as cô da noite. É coisa ligêra a troca dum pelo otro.
Dá tempo, Josino. O café já tá na quentura do gosto, o preto prego fungô e disse sentí o aroma do saboroso café. Num importava quem tava fazendo nem onde alevantava a quentura perfumada do café: o aroma ia espaiando o novo dia, provocando o gosto e chamando pra vivê de novo
Prego, chega de fingimento qui esse aroma num é do café...
o remendadô de botina se desacalmô
E havia de sê mais o quê?
Ocê sabe...
os dois se oiô sério, inté qui josino num se segurô e soltô sua meió risada de chacotice
Tô de brincadêra, Prego!
esse era um dos seus gosto de vivê. Num tinha muntos mais. Lembrô milagres, sentiu vontade de tê ela ali, na conversa com os amigo. Rindo. Dançando os óio. Saboreando os chêro. Os gosto. As palavra. As mão se oferecendo pra ajudá. Os pé indo e vindo. Os descuido, os cochicho, a voz se dando pra acalmá. Num tinha muntos gosto mais
o gosto do amigo era consertá o solado e engraxá as botina, as mão dava as claridade e os lampejo, apreciava arrumá o descuido com o pavimento dos pé. Remoçá os sapato. O amigo prego gostava de enfeitá e fortificá as bota enfraquecida pelo uso
Então, Josino?
O qui foi, Prego?
silêncio
a voz ficô escondida, tumbém gostava da serventia de ficá quieta. A vontade de falá ou num falá. A liberdade de sê da vida solta era bão. Levado voando. Parecia qui eles tinha munto tempo pra decidí o qui queria ou num queria fazê, como se a vida tava nas mão da vida, a vida inté parecia qui tava na vida deles, mais era uma otra vida qui tava, a vida qui era vida tava pra chegá
Fica prum gole do café?
Um golito bem pequeno...
Tome na sua vontade, hôme!
o josino sentô no pequeno banco qui o prego ofereceu pra sua acomodação
Num quero acostumá o gosto com as coisa boa.
os óio de um e otro se cruzô no acalanto das tristeza, parecia qui a alegria num durava munto. Alguma coisa ruim tava sempre pronta pra saí da sua toca. Inté a alegria tinha qui ficá escondida pra num preocupá nem ofendê os branco
Deixa de bobice, criolo. As coisa boa quando vem é pra deixá o sangue mais vivo e forte. Ajuda os pé continuá os caminho. As coisa qui nunca sara é as coisa num feita, essas ocê precisa voltá pra buscá depois do desaparecimento.
Eu num vô tê vontade de voltá. Num vô voltá. Num quero voltá tê essa vida desgraçada.
Ocê num pode deixá boiando as coisa num feita. Esse lugá das coisa boiando é um lugá qui num é lugá.
O amigo num se tome de preocupação com tanta cisma. Os ferimento curo com os unguento da terra qui cresce no mato. E as coisa num feita é só isso, coisa num feita.
É uma sombra silenciosa...
a preta contagotas entrô na loja com uma caneca e um bule fumegando. As mão ocupada. As vistas desocupada. A boca fechada. Veio dos fundo da casa. Mostrava qui num tava com vontade de tá onde tava. Uma muié preta qui o siô joaquim tinha emprestado pru prego, Vai usando, foi o recomendamento. E usava pra consolo das parte da carne qui num sossegava, Prego, ocê deve fazer uso da Maria Neusa nas tarefas de arrumação da casa, mas cuidado para não me estragar a mercadoria. Espero que ocê não esqueça que estou lhe dando para seu uso essa negra que podia guardar para meu contentamento, Num vô esquecê, Confio que assim seja.
o aroma e o vapô qui subia da caneca sumia nos gole do josino
Contagotas, me dê o bule qui eu mesmo sirvo.
a muié tinha nome de batismo, Maria Neusa, mais num era nome qui era munto lembrado
Essa num fala pra dizê se gosta ou se num gosta. É preciso apertá como um conta-gota.
o josino arregalô os óio
Apertá com as mão?
Não, hôme! E lá sô do feitio qui aperta alguém? Num é desse aperto. É preciso puruguntá inté ela num resistí de respondê uma resposta piquinina. Puruguntá de novo, otro revide piquinino. Uma muié conta-gota.
É bunita.
E eu num sei? Tenho qui escondê a boniteza do portuga. É tarado pela mestiçagem.
josino desviô os óio da contagotas, oiava bem longe, deitava na pedra do amô. As mão ocupada na sua muié encantada, os chêro do mato, as água da terra, a muié terra querendo enraizá
Prego, ocê num pensa os pensamento da alforria desta alforria dada qui num foi dada? Esse fingimento de alforria qui ocê ganhô...
preto prego agarrô a caneca das mão do josino e esperô contagotas derramá mais café do bule. Fungô o aroma. Sorriu com delícia e levô a caneca inté a boca. Bebeu o gole qui tava com vontade. Saboreô o gosto antes de sentí o amargo das palavra qui tinha pra dizê. Estendeu de volta a caneca pra visita
oiô na parede a carta de gratidão qui ele nunca pensô nem quis pensá. Inté a marca dele num foi ele qui colocô. Num sabia lê o escrito, mais tava com as palavra toda na cabeça. Ela ficava tão cheia daquele amontoado de palavra qui rodopiava inté qui vomitava letra a letra. Foi assim qui ele aprendeu a lê: vomitando. É assim qui os preto aprende as leitura da vida, baldeando do estômago prus óio, depois prus pé, inté chegá nos braço e saí da garganta as cantoria qui os branco num entende, tem medo e qué prendê ou matá, num importa. O portuga gostava de repetí inté na exaustão qui era um bão professô da carta, E quem escreveu a Carta, sinhô Alhures? Foi a mão do escravo?
antes da resposta sê feita, ele soltava um riso provocativo gelado, branco, sem alegria. Parecia um vento assobiando os defunto qui se atrevia saí do buraco da terra, Imagine, freguesia. Esses negros alforriados, e qualquer outro escravo, não sabem ler nem escrever. As tarefas das escrituras é coisa de branco, e soltô otra risada assombrada, pergunte para qualquer negro se ele quer aprender a ler ou escrever. Pergunte. Perca um pouco do seu tempo e pergunte. A resposta é sempre a mesma, parô de falá com intenção de aumentá a curiosidade, oiava pra platéia na intenção de medí o alcance do enredo alegado, ler e escrever não têm serventia. Os negros sabem o lugar em que cabem. E não tem cabimento esses neguinhos com nossos filhos na escola. Não consigo imaginar esses negros viajando para estudar na Europa. Esses não viajam mais de navio nem para irem até a África. Não saem mais daqui, soltô otra risada ruim qui fez os defunto voltá pru buraco da terra, não tem jeito: não vão mais se livrar das correntes!
Ô Prego, onde tu anda com os pensamento?
Mais café, Contagotas. Por favor, querida.
os três fez qui num foi dito o qui foi dito, num era feitio do prego falá com delicadeza: a boniteza qui o hôme espera encontrá na muié e a muié no hôme. Contagotas aproximô em silêncio e serviu o café. Nenhum riso. Nenhum agrado, mais os óio do hôme e da muié encontrô alguma razão pra seguí em frente
E daí, amigo?
O qui ocê qué sabê, Josino?
Ocê num pensa os pensamento da alforria?
Na sapataria, o siô Joaquim num aprova donativo de qualqué coisa. O serviço feito tem valô só pra ele. Num tenho herança pra recebê, num tenho o qui juntá. Inté a muié qui tenho num tenho. Num foi escôia minha. Num tenho queixa dos atrativo e dos agrado da Contagotas, mais a Maria Neusa é negra forra do portuga. É a Maria Neusa qui existe, a Contagotas num é dessa existência. Ele num faz gosto nem qué sabê qui a religião case, eu mais ela. Num sô nem vô sê preto forro.
otro gole
otro silêncio
os pensamento precisava pensá
a caneca saiu e voltô inté as mão do prego
Ouví de escutá conversa do siô Joaquim com siá Maria Letícia qui tão com vontade de nomeá capitão-do-mato pra Villa.
a visita balançô os ombro pra subida e descida, o assunto num lhe dava interesse
É perda de tempo, esses branco num entra nos quilombo! Eu mesmo, parô as confidência, oiô prus lado, baixô a voz antes da continuação e fez recomendação, qui fique reservada nossa prosa de amigo.
Pois fale, hôme. Por acaso, já lhe dei razão pra desconfiança?
Tenho cisma com os ouvido nas parede...
as palavra baixô mais otro tanto
Nessa hora, tudo dorme... inté as parede. Agora, só tem escutação desse seu amigo, Contagotas e os espritu madrugadô. O Josino pode falá sem medo das parede, num precisa medí a importância das palavra.
josino voltô pras palavra qui queria soltá, mais sem soltá mais do qui devia sua voz. Segurô a caneca com as duas mão, os cotovelo encostado firme nas perna, o tronco nu caído pra frente, os óio na terra, a voz continuava menó qui tava. Desconfiado era e descofiado ia continuá
Eu mais a Milagres tamô pensando corrê pra serra de Tapes.
o prego dobrô-se e colocô as duas mão nas mão do amigo, num era do seu uso esse agarramento. O josino se assustô com aquele aceno de perigo, ficô mais cismado quando o otro baixô inda mais a voz qui gritava dos perigo
Ocê tá lôco! Morre os dois na distância...
os óio de um tava nos óio do otro, um tinha preocupação, o otro decisão
Se decidi qui vô, ninguém me segura.
o prego fez mais menó o tamanho da voz, um murmúrio pra ficá longe dos curioso daqui e de lá
Mais parece qui o capitão-do-mato vai sê um nêgo com promessa de ficá forro. Só precisa cumprí a entrega dos preto dos quilombo e de fora dos quilombo. Qualqué desgarrado, sem tê razão de tá vagando com cumprimento dos mando do seu dono, vagabundando, vai sê acorrentado e marcado.
o josino encoiêu a subida do lombo, depois desencôieu, encoiêu, desencôieu
Cada um acha o seu feitio pra vivê no meio dessa vida desgraçada. Uns ajuda, otros atrapáia. E munto mais qui uns e otros... num faz nada.
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