quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Teatro Pedagógico: escola melancólica

Parábolas de uma Professora



escola melancólica


baitasar e paulo e marko





Consegui, brado pra mim mesma

Voltei lá, me aviso, outro ano, outro tempo. mesmo logro? fugi para meu início de professora alfabetizadora

não fumava. sinto na memória o perfume e os odores da vida longe da combustão e do vapor pardacento-azulado. fico apreensiva a espera da tosse que não vem, ainda não entendo que dores ou alegrias me empurraram para o cigarro. não importa. não resisto aos rolos da fumaça que não saem de cada tragada e absorvo em meu corpo. mais um pequeno esforço. pego o ar fundo, nada. nem mesmo uma pequena tosse


revendo alguns que já se foram, algumas que continuam por aqui, passado e presente se confundem. envelhecer com um passado para lembrar é bom, mas melancólico. a saudade é melancólica. readquiro vigor, mas o movimento não acontece no tempo. apenas na superfície das imagens amareladas do preto e branco, sou a forma nominal do verbo. retornei para o meu lugar de partida, jovem acreditadora. reapareci sem as dores, com outros medos que foram enfrentados com muitos sonhos

e os reencontros são inevitáveis. ir e vir e tornar a ir. até não voltar. deixo parte do lembramento afastado da discussão, procuro me colocar na posição de observadora. testemunha da história. não lembro nomes. não quero lembrar nomes. mas não esqueço os diálogos e os intermináveis monólogos. tínhamos discussões muito higiênicas e ingênuas, outras nem tanto, impregnadas de uma vontade à vida e diluídas na oração das idéias. rezar ideias desqualifica o compromisso com a dúvida. rezar ideias faz nascer os dialetos. a fé desacredita a hesitação e as incertezas. a fé na vida mobiliza. isso é bom. mas é a dialética que desestabiliza e obriga o caminhar. estamos encharcadas das boas intenções. procuro na memória as intenções que teríamos de possuir. razão impressionável de sermos professores: àquelas que professam a vida pelo conhecimento e pelo saber. sempre preferi a dialética ao dialeto da reprovação, discutindo e argumentando por meio de oposições e o reencontro das contradições. sem medo de reconhecer no dialeto a possibilidade do espaço no tempo, mas sem a construção histórica da esperança, mesmo quando única sensibilidade humana que nos resta. coisa estranha essa memória da gente, de repente acende-se uma luz. liga-se um botão, e eis nosso depoimento autobiográfico

as biografias afloram em lembranças julgadas sepultadas pelo tempo. muitas no formato e pelo cheiro de florais, outras nos assustam com seu desenho de raízes. tubérculos e cactos com suas folhas reduzidas a espinhos, mas que ainda podem oferecer flores de cores vivas. sobrevivemos. lembrar das conversas é acordar no meio do sono da tarde chuvosa, Calma, gente. espreguiço e reviro para o lado, Tenho mais, mesmo economizando memórias. tenho cuidado com os diálogos simultâneos, as intenções aparentadas e dissimuladas entre muitos discursos e orações. os olhares e as vontades não percebidas. suores e odores são distinguidos e revelados nas intenções. basta estar atenta. assim, me abandono às reminiscências nas escolas que vi e vivi, nestes anos de fazeres partilhando a construção de mim mesma e do alheio, e povoada, graças a ousadia de lutar, chego até aqui... povoada

misantrópica

uma das imagens que me surge, invadindo como uma horda nômade indisciplinada, chega dos práticos e as práticas com a supervisão escolar, vigias teóricas. sentia-me assim, vigiada. tempos duros. ditatoriais. já se passaram alguns anos, mas não consigo esquecer as intenções que percebia nas vozes e cochichos. nas histórias e tolices que dizíamos para nós mesmas

Gurias, a gente pensou esta reunião de emergência com vocês para lembrar que aqueles alunos repetentes do ano passado não podem ser reprovados.

O que é isso?

Naquelas disciplinas em que já foram aprovados não podem ser reprovados.

Como é que é?

Minha querida, o teu aluno repetindo a mesma série do ano anterior não pode ser reprovado nas matérias em que no ano letivo passado foi aprovado.

Por quê?

Porque a lei diz que não se pode retroceder, tirar o que já foi obtido pelo aluno.

Não acredito!

Uma vez aprendido o pedalar da bicicleta não será esquecido.

Supletivo em longo prazo.

Sim... Como a gente fica sabendo quem é quem?

E o que eu faço se o aluno teimar em reprovar onde já foi aprovado?

Não deixa acontecer, manda fazer trabalhos, provas de recuperação, desenhar, declamar alguma poesia, palavras cruzadas... e reza.

E eles sabem disso?

É claro que não! Este é o quinto segredo de Fátima. Caso descubram será um massacre, estaremos todas perdidas.

Não dá pra dispensá-los e dispersá-los nas disciplinas em que já estão aprovados, mantê-los apenas freqüentando naquelas aulas que podem reprovar?

Não! Somos uma escola seriada, nossa matrícula não é por disciplina.

O que a gente pode fazer?

Nada!

Como assim nada?

É o fim da educação.

É o fim do mundo! O queridinho não faz nada o ano todo e recebe como prêmio a sua aprovação?

Sim, como vamos saber quem passou no quê?

É por isso que estamos aqui, vou dizer para vocês quais são os alunos e as matérias em que eles podem ser reprovados.

Não entendi.

É simples, O juquinha, por exemplo, está repetindo a Quinta série e só poderá ser reprovado em Matemática, Língua Portuguesa, História e Ciências, nas demais ele já aprovou no ano passado.

Ah! Entendi, vamos conferir nome por nome dos repetentes e marcar quais as matérias que eles poderão reprovar, neste ano.

E os alunos descuidados que chegaram de outras escolas?

A secretaria da escola fará esta pesquisa para nós.

Vamos começar?

Gurias, vamos conferir esta lista de nomes logo, preciso sair mais cedo.

não lembro do restante das intenções. evito as observações dos meus olhos e nariz entre as falas que lembro. não quero me submeter deliberadamente as intenções de acusar, mas eis a lógica da reprovação: negamos direitos e gritamos que os estamos preparando para a vida. só se for para uma vida de mentiras e enganos, sem ética, no sacramento absoluto e na rendição incondicional ao nosso precioso conteúdo. em nome do qual nos damos os direitos civis exclusivos e perpétuos. nada interessa e sobrevive à mentira. a ocultação da verdade dita e escrita na lei dos homens e mulheres e crianças. existimos porque o aluno existe, O aluno nos faz permanecer sobrevivendo... por que não agradecemos?


tanto tempo se passou



hoje, sei que amei muito minhas escolas, lembro que quando enxergava minhas professoras queria abraçá-las. gostava quando conversavam com a gente. faziam brincadeiras e passeios. adorava quando me deixavam conversar baixinho feito cochicho. gostava daquelas que eram decididas, diretas e educadas e perfeitas porque nunca gritavam com a gente, viam flores dentro dos nossos corações. não tinham medo da gente e nem desejavam nos dominar aos gritos e ameaças, nos queriam bem. e quando diziam que éramos seus queridos eu acreditava. podia acreditar. queria acreditar. não esqueço da professora que gostava de brincar e pular corda. roubou meu coração. lembro dos passeios que fazíamos dentro da vila, caminhando e descobrindo e revelando para a nossa professora os nossos cantinhos e esconderijos. entrávamos em nossas casas conversando e muito à vontade, foi um sonho bom. os pais e as mães nos olhavam incrédulos sem saber o que estávamos fazendo ali e não na escola aprendendo, porque é na escola que a gente aprende, Não sei bem o quê, grita alguém lá do bem fundo pensamento, mas voltando aos pais, de repente a tropa surgia na frente deles, pedindo, Com licença, e iam entrando em suas casas, tomando um copo d’água, refrescando a alma. essa professora foi alguém que quis entender os joãos e marias de ninguém e se importava com a nossa história de vida. queria ser igual a ela, nem sei o que dizer de tão boa que ela foi. a melhor professora que já tive até agora, gostava quando contava as suas histórias, gostava quando ela ria, a sua letra não era nem grande, nem pequena e explicava bem direitinho. ela me conquistou com seu carinho e sinceridade, também, lá vez que outra, nos aplicava uns gritinhos e ficávamos num silêncio absoluto, não era de susto, mas a novidade. pra mim, as professoras que não são iguais a ela tem um só problema, quando estão brabas não deixam as crianças falarem, mas às vezes é bom ter um bom silêncio para pensar e estudar e aprender.

eu gosto de estudar e pensar. gosto das quermesses, de cantar o hino do ipiranga, mas não todo dia. gosto da merenda, da alegria do recreio, escrever no caderno, fazer contas. não gosto de fazer sempre as mesmas coisas. não consigo sonhar parada, necessito do movimento. sempre é bom pra gente aprender a sorrir. um dia vou crescer mais e se encontrar com as professoras que me ensinaram a estudar quero apertar suas mãos nas minhas, com muita alegria e emoção de falar, Obrigada, nem revoltada nem dócil, mas um pouco de atrevimento sugerindo que nunca fui servil ao olhar ameaçador. encaramentos. encarceração do meu atrevimento. o desafio nos enfrenta com sua voz macia e pausada em truques de sorrir e solicitar. a tirania feita no molde da cumplicidade entre o medo e o silêncio não nos permite o fascínio do descanso. esse medo nos acena com o descaso, e a mesma tirania destas gentes se declara vítima, o que sobra para mim, para qualquer desdentada, talvez, a zombaria e a bazuca. o fuzilamento na boca do canhão. prefiro desviar do gesto de faz-de-conta, escolho você minha professora calma e amorosa que passava coisas boas no quadro e me fez feliz para lembrar da escola que tive e me aliviou um pouco de uma vida sem gosto. uma vida de sofrimento que geme sem amor, sem espaço para o silêncio da alma. uma vida de choros sem cólicas e perdida em desesperos sem corações, sempre me senti indiferente à ilusão do paraíso da recompensa, Existirá a inocência do belo, me pergunto, a beleza se parece sempre revolta em pecado. e o feio, em estado permanente de tristeza. isso nos faz chorar e nos empurra aos braços do belo, Como os professores vão me querer se não tenho uma história de beleza pra contar, preferem ficar ensinando de longe, fazendo ditado, copiando no quadro, perdoar o que não é belo é muito difícil. meus pensamentos tomam formas em palavras que não pronuncio e ouço em pesadelos. estranho me sentir agitada e oprimida num sono que não é sono, mas um marasmo de esperar o tempo das horas passando, é como se a qualquer momento ao olhar para o relógio que marca as horas não pudesse mais encontrá-lo, pois morri, Quantos sonhos e carnes desperdiçados na morte jovem, Quantos sonhos e carne destruídas na morte velha? este jeito de falar sobre mim mesma, para examinar o meu jeito, por meio do entendimento e da razão, sobre o que ouço que penso e o que penso que ouço, vem provocando um cansaço com caminhos muito diferentes, mas continuo aqui, procurando ser uma mulher normal, muitas vezes ingênua, e ainda imatura. desfigurada na invenção do tempo. triste e melancólica com minha tosse e rouquidão seca. hoje quase pedi um cigarro para o professor abá, mas não pedi

durante todos esses tempos a luz não deixou de brilhar. e muitos e muitas mais pereceram absorvidos pela fenda da terra, é inevitável.
na outra escola, não nessa, naquela do meu tempo de guria, a luz não brilhava. de maneira que no outro dia muitos já não estavam ali, retirantes. sepultados em valas comuns. depois a fenda se fechava. com o tempo a vegetação encobria as cicatrizes da terra, haviam deixado a vida daquelas senhoras desarmadas, menos confusas, menos vítimas. desaparecidos para sempre
 


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