quinta-feira, 26 de maio de 2016

4.O Livro dos Abraços - Definição da arte - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


4.. O Livro dos Abraços


Definição da arte  




Portinari saiu — dizia Portinari. Por um instante espiava, batia a porta e desaparecia. Eram os anos trinta, caçada de comunistas no Brasil, e Portinari tinha se exilado em Montevidéu. 

Ivan Kmaid não era daqueles anos, nem daquele lugar; mas muito tempo depois, ele espiou pelos furinhos da cortina do tempo e me contou o que viu: 

Cândido Portinari pintava da manhã à noite, e noite afora também. — Portinari saiu — dizia. 

Naquela época, os intelectuais comunistas do Uruguai iam tomar posição frente ao realismo socialista e pediam a opinião do prestigiado camarada. 

— Sabemos que o senhor saiu, mestre — disseram, e suplicaram: 

— Mas a gente não podia entrar um momento? Só um momentinho. 

E explicaram o problema, pediram sua opinião. 

— Eu não sei não— disse Portinari. E disse: 

— A única coisa que eu sei é o seguinte: arte é arte, ou é merda.





A linguagem da arte



Chinolope vendia jornais e engraxava sapatos em Havana. Para deixar de ser pobre, foi-se embora para Nova Iorque. 

Lá, alguém deu de presente a ele uma máquina de fotografia. Chinolope nunca tinha segurado uma câmara nas mãos, mas disseram a ele que era fácil: 

— Você olha por aqui e aperta ah. 

E ele começou a andar pelas ruas. Tinha andado pouco quando escutou tiros e se meteu num barbeiro e levantou a câmara e olhou por aqui e apertou ali. 

Na barbearia tinham baleado o gângster Joe Anastasia, que estava fazendo a barba, e aquela foi a primeira foto da vida profissional de Chinolope. 

Pagaram uma fortuna por ela. A foto era uma façanha. Chinolope tinha conseguido fotografar a morte. A morte estava ali: não no morto, nem no matador. A morte estava na cara do barbeiro que a viu.





A fronteira da arte



Foi a batalha mais longa de todas as lutadas em Tuscatlán ou em qualquer outra região de El Salvador. Começou à meia-noite, quando as primeiras granadas caíram da montanha, e durou a noite toda e foi até a tarde do dia seguinte. Os militares diziam que Cinquera era inexpugnável. Os guerrilheiros tinham atacado quatro vezes, e quatro vezes tinham fracassado. Na quinta vez, quando foi erguida a bandeira branca no mastro do quartel-general, os tiros para o alto começaram os festejos. 

Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra, andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmara, também carregada e pronta para ser disparada, pendurada no pescoço. Andava Julio pelas ruas poeirentas, procurando os irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos sobreviventes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos. Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos. 

Caminhou através do parque. Na esquina da igreja, meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos jazia o outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis. 

Júlio se aproximou, e talvez tenha dito alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.

Júlio deixou o fuzil no chão e empunhou a câmara. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância e colocou a imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente recortados contra o muro recém mordido pelas balas.

 Júlio ia fazer a foto da sua vida, mas o dedo não quis. Júlio tentou, tornou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a câmara, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio. A câmara, uma Minolta, morreu em outra batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde. 





A função da arte/2 



O pastor Miguel Brun me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco paraguaio. Ele formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando. 

O cacique levou um tempo. Depois, opinou: 

— Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou: 

— Mas onde você coça não coça.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:

3.O Livro dos Abraços - A função do leitor - Eduardo Galeano



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