Lima Barreto
O número da sepultura
Que podia ela dizer, após três meses de casada, sobre o casamento?
Era bom? Era mau?
Não se animava a afirmar nem uma coisa, nem outra. Em essência, “aquilo” lhe parecia resumir-se em uma simples mudança de casa.
A que deixara não tinha mais nem menos cômodos do que a que viera habitar; não tinha mais “largueza”; mas a nova possuía um jardinzito minúsculo e uma pia na sala de jantar.
Era, no fim de contas, a diminuta diferença que existia entre ambas.
Passando da obediência dos pais, para a do marido, o que ela sentia, era o que se sente quando se muda de habitação.
No começo, há nos que se mudam, agitação, atividade; puxa-se pela ideia, a fim de adaptar os móveis à casa nova” e, por conseguinte, eles, os seus recentes habitantes também; isso, porém, dura poucos dias.
No fim de um mês, os móveis já estão definitivamente “ancorados”, nos seus lugares, e os moradores se esquecem de que residem ali desde poucos dias.
Demais, para que ela não sentisse, profunda modificação, no seu viver, advinda com o casamento, havia a quase igualdade de gênios e hábitos de seu pai e seu marido.
Tanto um como outro, eram corteses com ela; brandos no tratar, serenos, sem impropérios, e ambos, também, meticulosos, exatos e metódicos. Não houve, assim, abalo algum, na sua transplantação de um lar para outro.
Contudo, esperava, no casamento alguma coisa de inédito até ali, na sua existência de mulher: uma exuberante e contínua satisfação de viver.
Não sentiu, porém, nada disso.
O que houve de particular na sua mudança de estado, foi insuficiente para lhe dar uma sensação nunca sentida da vida e do mundo. Não percebeu nenhuma novidade essencial...
Os céus cambiantes, com o rosado e dourado de arrebóis, que o casamento promete a todos, moços e moças; não os vira ela. O sentimento de inteira liberdade, com passeios, festas, teatros, visitas – tudo que se contém para as mulheres, na ideia de casamento, durou somente a primeira semana de matrimônio.
Durante ela, ao lado do marido, passeara, visitara, fora a festas, e a teatros; mas assistira todas essas coisas, sem muito se interessar por elas, sem receber grandes ou profundas emoções de surpresa, e ter sonhos fora do trivial da nossa mesquinha vida terrestre. Cansavam-na até!
No começo, sentia alguma alegria e certo contentamento; por fim, porém, veio o tédio por elas todas, a nostalgia da quietude de sua casa suburbana, onde vivia à négligé e podia sonhar, sem desconfiar que os outros lhe pudessem descobrir os devaneios crepusculares de sua pequenina alma de burguesinha, saudosa e enfumaçada.
Não era raro que também ocorresse saudades da casa paterna, provocadas por aquelas chinfrinadas de teatros ou cinematográficas. Acudia-lhe, com indefinível sentimento, a lembrança de velhos móveis e outros pertences familiares da sua casa paterna, que a tinham visto desde menina. Era uma velha cadeira de balanço de jacarandá; era uma leiteira de louça, pintada de azul, muito antiga; era o relógio sem pêndula, octogonal, velho também; e outras bugigangas domésticas que, muito mais fortemente do que os móveis e utensílios adquiridos recentemente, se haviam gravado na sua memória.
O número da sepultura
Que podia ela dizer, após três meses de casada, sobre o casamento?
Era bom? Era mau?
Não se animava a afirmar nem uma coisa, nem outra. Em essência, “aquilo” lhe parecia resumir-se em uma simples mudança de casa.
A que deixara não tinha mais nem menos cômodos do que a que viera habitar; não tinha mais “largueza”; mas a nova possuía um jardinzito minúsculo e uma pia na sala de jantar.
Era, no fim de contas, a diminuta diferença que existia entre ambas.
Passando da obediência dos pais, para a do marido, o que ela sentia, era o que se sente quando se muda de habitação.
No começo, há nos que se mudam, agitação, atividade; puxa-se pela ideia, a fim de adaptar os móveis à casa nova” e, por conseguinte, eles, os seus recentes habitantes também; isso, porém, dura poucos dias.
No fim de um mês, os móveis já estão definitivamente “ancorados”, nos seus lugares, e os moradores se esquecem de que residem ali desde poucos dias.
Demais, para que ela não sentisse, profunda modificação, no seu viver, advinda com o casamento, havia a quase igualdade de gênios e hábitos de seu pai e seu marido.
Tanto um como outro, eram corteses com ela; brandos no tratar, serenos, sem impropérios, e ambos, também, meticulosos, exatos e metódicos. Não houve, assim, abalo algum, na sua transplantação de um lar para outro.
Contudo, esperava, no casamento alguma coisa de inédito até ali, na sua existência de mulher: uma exuberante e contínua satisfação de viver.
Não sentiu, porém, nada disso.
O que houve de particular na sua mudança de estado, foi insuficiente para lhe dar uma sensação nunca sentida da vida e do mundo. Não percebeu nenhuma novidade essencial...
Os céus cambiantes, com o rosado e dourado de arrebóis, que o casamento promete a todos, moços e moças; não os vira ela. O sentimento de inteira liberdade, com passeios, festas, teatros, visitas – tudo que se contém para as mulheres, na ideia de casamento, durou somente a primeira semana de matrimônio.
Durante ela, ao lado do marido, passeara, visitara, fora a festas, e a teatros; mas assistira todas essas coisas, sem muito se interessar por elas, sem receber grandes ou profundas emoções de surpresa, e ter sonhos fora do trivial da nossa mesquinha vida terrestre. Cansavam-na até!
No começo, sentia alguma alegria e certo contentamento; por fim, porém, veio o tédio por elas todas, a nostalgia da quietude de sua casa suburbana, onde vivia à négligé e podia sonhar, sem desconfiar que os outros lhe pudessem descobrir os devaneios crepusculares de sua pequenina alma de burguesinha, saudosa e enfumaçada.
Não era raro que também ocorresse saudades da casa paterna, provocadas por aquelas chinfrinadas de teatros ou cinematográficas. Acudia-lhe, com indefinível sentimento, a lembrança de velhos móveis e outros pertences familiares da sua casa paterna, que a tinham visto desde menina. Era uma velha cadeira de balanço de jacarandá; era uma leiteira de louça, pintada de azul, muito antiga; era o relógio sem pêndula, octogonal, velho também; e outras bugigangas domésticas que, muito mais fortemente do que os móveis e utensílios adquiridos recentemente, se haviam gravado na sua memória.
Seu marido era um rapaz de excelentes qualidades matrimoniais, e não havia, no nebuloso estado da alma de Zilda, nenhum desgosto dele ou decepção que ele lhe tivesse causado.
Morigerado, cumpridor exato dos seus deveres, na seção de que era chefe seu pai, tinha todas as qualidades médias, para ser um bom chefe de família, cumprir o dever de continuar a espécie e ser um bom diretor de secretaria ou repartição outra, de banco ou de escritório comercial.
Em compensação, não possuía nenhuma proeminência de inteligência ou de ação. Era e seria sempre uma boa peça de máquina, bem ajustada, bem polida e que, lubrificada convenientemente, não diminuiria o rendimento daquela, mas que precisava sempre do motor da iniciativa estranha, para se pôr em movimento.
Os pais de Zilda tinham aproximado os dois; a avó, a quem a moça estimava deveras, fizera as insinuações de praxe; e, vendo ela que a coisa era do gosto de todos, por curiosidade mais do que por amor ou outra coisa parecida, resolveu-se a casar com o escriturário de seu pai. Casaram-se, viviam muito bem. Entre ambos, não havia a menor rusga, a menor desinteligência que lhes toldasse a vida matrimonial; mas não existia também, como era de esperar, uma profunda e constante penetração, de um para o outro e vice-versa, de desejos, de sentimentos, de dores e alegrias.
Viviam placidamente numa tranqüilidade de lagoa, cercada de altas montanhas, por entre as quais os ventos fortes não conseguiam penetrar, para encrespar-lhe as águas imotas.
A beleza do viver daquele novel casal, não era ter conseguido de duas fazer uma única vontade; estava em que os dois continuassem a ser cada um uma personalidade, sem que, entanto, encontrassem nunca motivo de conflito, o mais ligeiro que fosse. Uma vez, porem... Deixemos isso para mais tarde... O gênio e a educação de ambos muito contribuíam para tal.
O marido, exato burocrata, era cordato, de temperamento calmo, ponderado e seco que nem uma crise ministerial. A mulher era quase passiva e tendo sido educada na disciplina ultra-regrada e esmerilhadora de seu pai, velho funcionário, obediente aos chefes, aos ministros, aos secretários destes e mais bajuladores, às leis e regulamentos, não tinha assomos nem caprichos, nem fortes vontades. Refugiava-se no sonho e, desde que não fosse multado, estava por tudo.
Os hábitos do marido eram os mais regulares e executados, sem a mínima discrepância. Erguia-se do leito muito cedo, quase ao alvorecer, antes mesmo da criada, a Genoveva, levantar-se da cama. Pondo-se de pé, ele mesmo coava o café e, logo que estava pronto, tomava uma grande xícara.
Esperando o jornal (só comprava um), ia para o pequeno jardim, varria-o, amarrava as roseiras e craveiros, nos espeques, em seguida, dava milho às galinhas e pintos e tratava dos passarinhos.
Chegando o jornal, lia-o meticulosamente, organizando, para uso do dia, as suas opiniões literárias, científicas, artísticas, sociais e, também, sobre a política internacional e as guerras que havia pelo mundo.
Quanto à política interna, construía algumas, mas não as manifestava a ninguém, porque quase sempre eram contra o governo e ele precisava ser promovido.
Às nove e meia, já almoçado e vestido, despedia-se da mulher, com o clássico beijo, e lá ia tomar o trem. Assinava o ponto, de acordo com o regulamento, isto é, nunca depois das dez e meia.
Na repartição, cumpria religiosamente os seus sacratíssimos deveres de funcionário.
Sempre foi assim; mas, após o casamento, aumentou de zelo, a fim de pôr a seção do sogro que nem um brinco, em questão de rapidez e presteza no andamento e informações de papéis.
Andava pelas bancas dos colegas, pelos protocolos, quando o serviço lhe faltava e se, nessa correição, topava com expediente em atraso, não hesitava: punha-se a “desunhar”.
Acontecendo-lhe isto, ao sentar-se à mesa, para jantar, já em trajes caseiros, apressava-se em dizer à mulher:
– Arre! Trabalhei hoje, Zilda, que nem o diabo!
– Porque?
– Ora, porque? Aqueles meus colegas são uma pinoia...
– Que houve?
– Pois o Pantaleão não está com o protocolo dele, o da Marinha, atrasado de uma semana? Tive que o pôr em dia...
– Papai foi quem te mandou?
– Não; mas era meu dever, como genro dele, evitar que a seção que ele dirige, fosse tachada de relaxada.
Demais não posso ver expediente atrasado...
– Então, esse Pantaleão falta muito?
– Um horror! Desculpa-se com estar estudando direito. Eu também estudei, quase sem faltas.
Com semelhantes notícias e outras de mexericos sobre a vida íntima, defeitos morais e vícios dos colegas, que ele relatava à mulher, Zilda ficou enfronhada no viver da diretoria em que funcionava seu marido, tanto no aspecto puramente burocrático, como nos da vida particular e familiar dos respectivos empregados.
Ela sabia que o Calçoene bebia cachaça; que o Zé Fagundes vivia amancebado com uma crioula, tendo filhos com ela, um dos quais com concurso e ia ser em breve colega do marido; que o Feliciano Brites das Novas jogava nos dados todo o dinheiro que conseguia arranjar; que a mulher do Nepomuceno era amante do General T., com auxílio do qual ele preteria todos nas promoções, etc., etc.
O marido não conversava com Zilda senão essas coisas da repartição; não tinha outro assunto para palestrar com a mulher. Com as visitas e raros colegas com quem discutia, a matéria da conversação eram coisas patrióticas: as forças de terra e mar, as nossas riquezas naturais, etc.
Para tais argumentos tinha predileção especial e um especial orgulho em desenvolvê-los com entusiasmo. Tudo o que era brasileiro era primeiro do mundo ou, no mínimo, da América do Sul. E – ai! – de quem o contestasse; levava uma sarabanda que resumia nesta frase clássica:
– É por isso que o Brasil não vai para adiante. O brasileiro é o maior inimigo de sua pátria.
Zilda, pequena burguesa, de reduzida instrução e, como todas as mulheres, de fraca curiosidade intelectual, quando o ouvia discutir assim com os amigos, enchia-se de enfado e sono; entretanto, gostava das suas alcovitices sobre os lares dos colegas...
Assim ela ia repassando a sua vida de casada, que já tinha mais de três meses feitos, na qual, para quebrar-lhe a monotonia e a igualdade, só houvera um acontecimento que a agitara, a torturara, mas, em compensação, espantara por algumas horas o tédio daquele morno e plácido viver. É preciso contá-lo.
Augusto – Augusto Serpa de Castro – tal era o nome de seu marido – tinha um ar mofino e enfezado; alguma coisa de índio nos cabelos muito negros, corredios e brilhantes, e na tez acobreada. Seus olhos eram negros e grandes, com muito pouca luz, mortiços e pobres de expressão, sobretudo de alegria.
A mulher, mais moça do que ele uns cinco ou seis anos, ainda não havia completado os vinte. Era de uma grande vivacidade de fisionomia, muito móbil e vária, embora o seu olhar castanho claro tivesse, em geral, uma forte expressão de melancolia e sonho interior. Miúda de feições, franzina, de boa estatura e formas harmoniosas, tudo nela era a graça do caniço, a sua esbelteza, que não teme os ventos, mas que se curva à força deles com mais elegância ainda, para ciciar os queixumes contra o triste fado de sua fragilidade, esquecendo-se, porém, que é esta que o faz vitorioso.
Após o casamento, vieram residir na Travessa das Saudades, na estação de ***.
É uma pitoresca rua, afastada alguma coisa das linhas da Central, cheia de altos e baixos, dotada de uma caprichosa desigualdade de nível, tanto no sentido longitudinal como no transversal.
Povoada de árvores e bambus, de um lado e outro, correndo quase exatamente de norte para sul, as habitações do lado do nascente, em grande número, somem-se na grota que ela forma, com o seu desnivelamento; e mais se ocultam debaixo dos arvoredos em que os cipós se tecem.
Do lado do poente, porém, as casas se alteiam e, por cima das de defronte, olham em primeira mão a aurora, com os seus inexprimíveis cambiantes de cores e matizes.
Como no fim do mês anterior, naquele outro, o segundo término de mês depois do seu casamento, o bacharel Augusto, logo que recebeu os vencimentos e conferiu as contas dos fornecedores, entregou o dinheiro necessário à mulher, para pagá-los, e também a importância do aluguel da casa.
Zilda apressou-se em fazê-lo ao carniceiro, ao padeiro e ao vendeiro; mas, o procurador do proprietário da casa em que moravam, demorou-se um pouco. Disso, avisou o marido, em certa manhã, quando ele lhe dava uma pequena quantia para as despesas com o quitandeiro e outras miudezas caseiras. Ele deixou o importe do aluguel com ela.
Havia já quatro dias que ele se havia vencido; entretanto, o preposto do proprietário não aparecia.
Na manhã desse quarto dia, ela amanheceu alegre e, ao mesmo tempo apreensiva.
Tinha sonhado; e que sonho!
Sonhou com a avó, a quem amava profundamente e que desejara muito o seu casamento com Augusto. Morrera ela poucos meses antes de realizar-se o seu enlace com ele; mas ambos já eram noivos.
Sonhara a moça com o número da sepultura da avó – 1724; e ouvira a voz dela, da sua vovó, que lhe dizia: “Filha, joga neste número!”
O sonho impressionou-a muito; nada, porém, disse ao marido. Saído que ele foi para a repartição, determinou à criada o que tinha a fazer e procurou afastar da memória tão estranho sonho.
Não havia, entretanto, meios para conseguir isso. A recordação dele estava sempre presente ao seu pensamento, apesar de todos os seus esforços em contrário.
A pressão que lhe fazia no cérebro a lembrança do sonho, pedia uma saída, uma válvula de descarga, pois já excedia a sua força de contensão. Tinha que falar, que contar, que comunicá-lo a alguém...
Fez confidência do sucedido à Genoveva. A cozinheira pensou um pouco e disse:
– Nhanhã: eu se fosse a senhora arriscava alguma coisa no “bicho”.
– Que “bicho” é?
– 24 é cabra; mas não deve jogar só por um lado. Deve cercar por todos e fazer fé na dezena, na centena, até no milhar. Um sonho destes não é por aí coisa à toa.
– Você sabe fazer a lista?
– Não, senhora. Quando jogo é o seu Manuel do botequim quem faz “ela”; mas a vizinha, dª Iracema, sabe bem e pode ajudar a senhora.
– Chame “ela” e diga que quero lhe falar.
Em breve chegava a vizinha e Zilda contou-lhe o acontecido.
Dª Iracema refletiu um pouco e aconselhou:
– Um sonho desses, menina, não se deve desprezar. Eu, se fosse a vizinha, jogava forte.
– Mas, dª Iracema, eu só tenho os oitenta mil-réis para pagar a casa. Como há de ser?
A vizinha cautelosamente respondeu:
– Não lhe dou a tal respeito nenhum conselho. Faça o que disser o seu coração; mas um sonho desses...
Zilda que era muito mais moça que Iracema, teve respeito pela sua experiência e sagacidade. Percebeu logo que ela era favorável a que ela jogasse. Isto estava a quarentona da vizinha, a tal dª Iracema, a dizer-lhe pelos olhos.
Refletiu ainda alguns minutos e, por fim, disse de um só hausto:
– Jogo tudo.
E acrescentou:
– Vamos fazer a lista – não é Dª Iracema?
– Como é que a senhora quer?
– Não sei bem. A Genoveva é quem sabe.
E gritou, para o interior da casa:
– Ó Genoveva! Genoveva! Venha cá, depressa!
Não tardou que a cozinheira viesse. Logo que a patroa lhe comunicou o embaraço, a humilde preta apressou-se em explicar:
– Eu disse a nhanhã que cercasse por todos os lados o grupo, jogasse na dezena, na centena e no milhar.
Zilda perguntou à dª Iracema:
– A senhora entende dessas coisas?
– Ora! Sei muito bem. Quanto quer jogar?
– Tudo! Oitenta mil-réis!
– É muito, minha filha. Por aqui não há quem aceite. Só se for no Engenho de Dentro, na casa do Halavanca, que é forte. Mas quem há de levar o jogo? A senhora tem alguém?
– A Genoveva.
A cozinheira, que ainda estava na sala, de pé, assistindo os preparativos de tão grande ousadia doméstica, acudiu com pressa:
– Não posso ir, nhanhã. Eles me embrulham e, se a senhora ganhar, a mim eles não pagam. É preciso pessoa de mais respeito.
Dª Iracema, por aí, lembrou:
– É possível que o Carlito tenha vindo já de Cascadura, onde foi ver a avó... Vai ver, Genoveva!
A rapariga foi e voltou em companhia do Carlito, filho de dª Iracema. Era um rapagão dos seus dezoito anos, espadaúdo e saudável.
A lista foi feita convenientemente; e o rapaz levou-a ao “banqueiro”.
Passava de uma hora da tarde, mas ainda faltava muito para as duas. Zilda lembrou-se então do cobrador da casa. Não havia perigo. Se não tinha vindo até ali, não viria mais.
Dª Iracema foi para a sua casa; Genoveva foi para a cozinha e Zilda foi repousar daqueles embates morais e alternativas cruciantes, provocados pelo passo arriscado que dera. Deitou-se já arrependida do que fizera.
Se perdesse, como havia de ser? O marido... sua cólera... as repreensões... Era uma tonta, uma doida... Quis cochilar um pouco; mas logo que cerrou os olhos, lá viu o número – 1724. Tomava-se então de esperança e sossegava um pouco da sua ânsia angustiosa.
Passando, assim, da esperança ao desânimo, prelibando do a satisfação de ganhar e antevendo os desgostos que sofreria, caso perdesse – Zilda, chegou até à hora do resultado, suportando os mais desencontrados estados de espírito e os mais hostis ao seu sossego. Chegando o tempo de saber “o que dera”, foi até à janela. De onde em onde, naquela rua esquecida e morta, passava uma pessoa qualquer. Ela tinha desejo de perguntar ao transeunte o “resultado”; mas ficava possuída de vergonha e continha-se.
Nesse ínterim, surge o Carlito a gritar:
– Dª Zilda! Dª Zilda! A senhora ganhou, menos no milhar e na centena.
Não deu um “ai” e ficou desmaiada no sofá da sua modesta sala de visitas.
Voltou em breve a si, graças às esfregações de vinagre de dª Iracema e de Genoveva. Carlito foi buscar o dinheiro que subia a mais de dois contos de réis. Recebeu-o e gratificou generosamente o rapaz, a mãe dele e a sua cozinheira, a Genoveva. Quando Augusto chegou, já estava inteiramente calma. Esperou que ele mudasse de roupa e viesse à sala de jantar, a fim de dizer-lhe:
– Augusto: se eu tivesse jogado o aluguel da casa no “bicho”, você ficava zangado?
– Por certo! Ficaria muito e havia de censurar você com muita veemência, pois que uma dª de casa não...
– Pois, joguei.
– Você fez isto, Zilda?
– Fiz.
– Mas quem virou a cabeça de você para fazer semelhante tolice? Você não sabe que ainda estamos pagando despesas do nosso casamento?
– Acabaremos de pagar agora mesmo.
– Como? Você ganhou?
– Ganhei. Está aqui o dinheiro.
Tirou do seio o pacote de notas e deu-o ao marido, o que se tornara mudo de surpresa. Contou as pelegas muito bem, levantou-se e disse com muita sinceridade, abraçando e beijando a mulher:
– Você tem muita sorte. É o meu anjo bom. E todo o resto da tarde, naquela casa, tudo foi alegria. Vieram dª Iracema, o marido, o Carlito, as filhas e outros vizinhos.
Houve doces e cervejas. Todos estavam sorridentes, palradores; e o contentamento geral só não desandou em baile, porque os recém-casados não tinham piano. Augusto deitou patriotismo com o marido de Iracema. Entretanto, por causa das dúvidas, no mês seguinte, quem fez os pagamentos domésticos foi ele próprio, Augusto em pessoa.
Revista Sousa Cruz, Rio, maio 1921
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Leia também:
4. Contos de Lima Barreto - Manel Capineiro
Houve doces e cervejas. Todos estavam sorridentes, palradores; e o contentamento geral só não desandou em baile, porque os recém-casados não tinham piano. Augusto deitou patriotismo com o marido de Iracema. Entretanto, por causa das dúvidas, no mês seguinte, quem fez os pagamentos domésticos foi ele próprio, Augusto em pessoa.
Revista Sousa Cruz, Rio, maio 1921
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