sábado, 4 de junho de 2016

5.O Livro dos Abraços - Profecias/1 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


5. O Livro dos Abraços


Profecias/1   




No Peru, a maga cobriu-me de rosas vermelhas e depois leu a minha sorte. A maga anunciou: — Dentro de um mês, receberás uma distinção. Eu ri. Ri pela infinita bondade da mulher desconhecida, que me presenteava com rosas e bons presságios e ri por causa da palavra distinção, que tem um sei lá o quê de cômica, e porque me veio à cabeça um velho amigo do bairro, que era muito tosco mas muito certeiro, e que costumava dizer, sentenciando, levantando o dedo: "Cedo ou tarde, os escritores se hamburguesam". E então ri; e a maga riu da minha risada. 

Um mês depois, exatamente um mês depois, recebi em Montevidéu um telegrama. No Chile, dizia o telegrama, tinham me outorgado uma distinção. Era o prêmio José Carrasco. 







Celebração da voz humana/3

José Carrasco era um jornalista da revista Análisis. Certa madrugada, na primavera de 1986, foi arrancado de casa. Poucas horas antes tinha acontecido o atentado contra o general Augusto Pinochet. E poucos dias antes, o ditador tinha dito:

— Nós estamos cevando certos senhores, feito leitão de banquete. 


Ao pé de um muro, nos arredores de Santiago, meteram catorze tiros na cabeça de Carrasco. Foi ao amanhecer, e ninguém apareceu. O corpo ficou lá, estendido, até o meio-dia. 

Os vizinhos nunca lavaram o sangue. O lugar transformou-se em santuário dos pobres, sempre coberto de velas e flores, e José Carrasco virou alma milagreira. No muro mordido pelos tiros foram escritos agradecimentos pelos favores recebidos. 

No começo de 1988 viajei para o Chile. Fazia quinze anos que eu não ia. Fui recebido no aeroporto por Juan Pablo Cárdenas, o diretor de Análisis. 

Condenado por ofensa ao poder, Cárdenas dormia na cadeia. Todas as noites, as dez em ponto, entrava na prisão, e saía com o sol.




Crônica da cidade de Santiago

Santiago do Chile mostra, como outras cidades latino-americanas, uma imagem resplandecente. Por menos de um dólar por dia, legiões de trabalhadores lustram a máscara da cidade. 

Nos bairros altos, vive-se como em Miami, vive-se em Miami, miamiza-se a vida, roupa de plástico, comida de plástico, gente de plástico, enquanto os vídeos e os computadores domésticos se transformam em perfeitas contra-senhas da felicidade. 

Mas os chilenos são cada vez menos, e cada vez são mais os subchilenos: a economia os amaldiçoa, a polícia os persegue e a cultura os nega. 

Alguns viram mendigos. Burlando as proibições, dão um jeito para aparecer debaixo do sinal fechado ou em qualquer portal. Há mendigos de todos os tamanhos e cores, inteiros e mutilados, sinceros ou fingidos: alguns, na desesperação total, caminhando na beira da loucura; e outros exibindo caras retorcidas e mãos trêmulas graças a muito ensaiar, profissionais admiráveis, verdadeiros artistas do bom pedir. 

Em plena ditadura militar, o melhor dos mendigos chilenos era um que comovia dizendo num lamento: 

— Sou civil.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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