terça-feira, 14 de junho de 2016

6.O Livro dos Abraços - Neruda/1 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


6. O Livro dos Abraços


Neruda/1


Fui a Isla Negra, à casa que foi, que é, de Pablo Neruda. Era proibido entrar. Uma cerca de madeira rodeava a casa. Lá, as pessoas tinham gravado seus recados para o poeta. Não tinham deixado nenhum pedacinho de madeira descoberta. Todos talavam com ele como se estivesse vivo. Com lápis ou pontas de pregos, cada um tinha encontrado sua maneira de dizer-lhe: obrigado. 

Eu também encontrei, sem palavras, à minha maneira. E entrei sem entrar. E em silencio ficamos conversando vinhos, o poeta e eu, caladamente talando de mares e amares e de alguma poção infalível contra a calvície. Compartilhamos camarões ao pil-pil e uma prodigiosa torta de jaibas e outras dessas maravilhas que alegram a alma e a pança, que são, como ele sabe muito bem, dois nomes para a mesma coisa. 

Várias vezes erguemos taças de bom vinho, e um vento salgado golpeava nossas caras, e tudo foi uma cerimônia de maldição da ditadura, aquela lança negra cravada em seu torso, aquela puta dor enorme, e foi também uma cerimônia de celebração da vida, bela e efêmera como os altares de flores e os amores passageiros.


Neruda/ 2 

Aconteceu em La Sebastiana, outra casa de Neruda, debruçada sobre a montanha, sobre a baía de Valparaíso. A casa estava fechada à pedra e cal, com tranca e cadeado e debaixo de sete chaves, habitada por ninguém, fazia muito tempo. 


Os militares tinham usurpado o poder, o sangue tinha corrido pelas ruas, Neruda estava morto de câncer ou de dor. E então uns ruídos estranhos, no interior da casa fechada, chamaram a atenção dos vizinhos. Alguém chegou perto e viu, por um janelão alto, os olhos brilhantes e as garras de ataque de uma águia inexplicável. A águia não podia estar ali, não podia ter entrado, não tinha por onde entrar, mas estava lá dentro; e lá dentro agitava violentamente as asas.


Profecias/2

Helena sonhou com quem tinha guardado o fogo. As velhas tinham guardado, as velhas muito pobres, nas cozinhas dos subúrbios; e para oferecê-lo, lhes bastava soprar, suavemente, a palma das mãos. 


Celebração da fantasia

Foi na entrada da aldeia de Ollantaytambo, perto de Cuzco. Eu tinha me soltado de um grupo de turistas e estava sozinho, olhando de longe as ruínas de pedra, quando um menino do lugar, esquelético, esfarrapado, chegou perto para me pedir que desse a ele de presente uma caneta. Eu não podia dar a caneta que tinha, porque estava usando-a para fazer sei lá que anotações, mas me ofereci para desenhar um porquinho em sua mão. Subitamente, correu a notícia. E de repente me vi cercado por um enxame de meninos que exigiam, aos berros, que eu desenhasse em suas mãozinhas rachadas de sujeira e frio, pele de couro queimado: havia os que queriam um condor e uma serpente, outros preferiam periquitos ou corujas, e não faltava quem pedisse um fantasma ou um dragão. 

E então, no meio daquele alvoroço, um desamparadozinho que não chegava a mais de um metro do chão, mostrou-me um relógio desenhado com tinta negra em seu pulso: 

— Quem mandou o relógio foi um tio meu, que mora em Lima — disse. 

— E funciona direito? — perguntei. 

— Atrasa um pouco — reconheceu.

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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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