quinta-feira, 7 de outubro de 2021

parábolas de uma professora: Eva e a uva

parábolas de uma professora


a Eva e a uva
Ensaio 016B – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




estávamos em silêncio, sentadas e bem comportadas nas cadeiras de fórmica verde, observando o Rodolfo e o Marko com suas palavras e olhares de provocação, todos e todas somos mais ou menos exibidas, mas dava para perceber a postura orgulhosa dos dois, nenhum homem está salvo da própria história, o fascínio e o assombro de ser homem, rostos abismados e aturdidos, mas nunca desnorteados, donos de tudo, as caras que Rodolfo fazia mostravam além, anunciavam o seu desprezo, Como esse homenzinho torto de ideias – e seus óculos ridículos – tem coragem de dizer isso? Parece uma mulherzinha...

Colegas, precisamos nos acalmar, está bem, a altíssima nos vigiava de perto, o poder seja qual for – mesmo o legítimo – tem receio do debate, está sempre atenta e se faz presente, a raiva pode ser perigosa, não concordam? Sei que é difícil entrar e sair de um debate sem que a emoção, em algum momento, acelere nossos corações e suba o tom das palavras, mas estamos entre colegas, não estamos? É nossa reunião pedagógica, certo?

às vezes, não entendo a altíssima tentando amornar as disputas, ora se aproxima ora se afasta de confrontar essa vida minguada de beleza, mas recheada de fome, pobreza, injustiça, opressão, doenças, violências e ignorância, quanto medo temos das palavras mais profundas da outra pessoa, os pensamentos guardados falando sozinhos são os mais perigosos, adormecidos e latejando, uma infecção se alastrando

Sei que algumas de vocês não me entendem, mas quero lembrar que criar com nossas mãos, palavras e coração o mundo da esperança requer mais que insultos. Desaforos não legitimam as ideias, discernimento, discernimento...

não sei se a altíssima percebeu meu sorriso amargo, a história me parece um histórico recomeço de recontar a prosperidade que está logo ali, na esquina sem endereço, mas parece que para o professor Rodolfo está tudo muito claro e definido, a estrada traçada e o mapa desenhado

Estamos vivendo tudo isso porque nossos jovens não têm disciplina! Essa escola parece uma colônia de delinquentes juvenis. Repito: Nossos jovens não têm disciplina, não sabem o Hino Nacional – muito menos, nosso valoroso Hino Rio-grandense –, precisam de uma educação familiar com disciplina e um ensino escolar sem ideologia política para ensinar o que é certo e o que é errado. Precisamos fortalecer a disciplina e decorar nossos hinos! Rezar mais e rir menos! Tenho guardado um livrinho de civismo e OSPB que herdei do papai. Acredito que o Paulo vai lembrar desse livrinho, estou com ele guardado todos esses anos. Às vezes, abro suas páginas e me arrepia o que leio. Uma relíquia. É esse arrepio que gostaria de ver nessas gerações novas, esse sentimento de Pátria Amada Acima de Todos, mas elas não sabem nem conhecem esse livrinho, muito menos, o que está escrito nele.

olho para o Paulo, sempre penso nas suas palavras quando o discurso dos sem ideologia e sem política ressurge, um discurso que tem lugar garantido nos desejos de dominação da vida do outro e das outras, o ecumenismo da política sem política, onde a pátria é a trincheira do homem e da mulher de bem acima do bem

Professora Rachel, gostaria de dizer umas duas ou três palavras, se me permite, já que fui citado, sobre as palavras do querido professor Rodolfo. Prometo que não quero me estender muito, mas acho que o momento requer uma pequena reflexão sobre a Eva e a uva.

o professor Rodolfo atira o seu gemido de desdém – ou teria vomitado seu mal-estar?  ao ser confrontado com suas verdades seculares de opressão

Professor Paulo, por favor, sabemos que estudos bíblicos não é a sua disciplina curricular. O seu forte é o comunismo. E já anuncio que vou lutar para termos mais ensino religioso em nossas escolas, mas, por ora, deixemos a coitada da Eva e o seu pecado original para quem entende do assunto. O senhor não concorda?

Desculpe, Rodolfo, não era essa a minha intenção, por agora. Mas gostaria de conversar sobre as nossas vidas serem geridas por minorias ínfimas e sem justiça que não seja dessa da classe dominante. Posso?

A troco do quê? Qual a razão? Essa sua conversinha mole de comunistinha não me agrada.

Mas foi o professor que me citou...

E já me arrependo! Posso retirar a citação?

Pode, claro. Mas não lhe parece estranho e oportunista que quando a conversa encetada não corresponde aos seus planos – e arrepios – o senhor resolve silenciar a treta? O esvaziamento das ideias. Não, não vou permitir que interdite o que penso. O senhor pode e deve – e não precisa minha permissão, claro – criticar e argumentar minhas palavras, mas vou dizê-las. Aceite o peixe, às vezes, não é preciso pescar, o pescador pode ser outro ou outra: isso pode ser política, isso pode ser ideologia, e pode ser bom senso, mas saiba que o preço do peixe é política, o preço da carne é política, todos os nossos atos e omissões no cotidiano são ideológicos e políticos. O simples ato de separar os resíduos secos e orgânicos em nossas casas é ideológico e político. E o senhor... está ao lado do opressor ou do oprimido? Isso também é político e ideológico. Mas para responder essa pergunta, cada um de nós e cada uma de nós, precisa saber quem é, onde está, qual o lugar que ocupa, e depois, descobrir que não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho. Não basta ler livrinhos de civismo e ficar arrepiado. É preciso descobrir quem lucra com esse patriotismo de retórica arrepiada.

Retórica! Agora, Pátria e Deus viraram retórica! Cada um inventa a Pátria e o Deus que quiser, é isso?!

uau, ele está começando a entender... não, acho que não, a doação de si próprio não é generosa, não entende que nossa liberdade é abstrata, não tem a ver com disciplina do colégio, restrições familiares ou hábitos sociais



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