quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (31)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE



XXXI – RENATA DE L’ESTORADE A LUÍSA DE MACUMER 



Breve fará cinco meses que dei à luz e não achei, querida, um único momentinho para te escrever. Quando fores mãe, tu me desculparás mais plenamente do que o fizeste, pois me castigaste rareando tuas cartas. Escreve-me, querida mimosa! Dize-me todos os teus prazeres, pinta-me em cores bem vivas a tua felicidade, podes carregar nas tintas sem receio de me aborrecer, pois sou feliz e mais feliz do que jamais o imaginarias.

Fui à capela ouvir uma missa de purificação, com grande pompa, como é de uso nas nossas velhas famílias provençais. Os dois avós, o pai de Luís e o meu, deram-me o braço. Ah! Nunca me ajoelhei perante Deus em semelhante acesso de gratidão. Tenho tanta coisa a dizer-te, tanto sentimento a descrever-te que não sei por onde começar; mas, do seio desta confusão, ergue-se uma recordação radiosa, a da minha prece na igreja!

Quando, neste lugar, onde, donzela, duvidei da vida e de meu futuro, me vi metamorfoseada em mãe feliz, acreditei ver a Virgem do altar inclinando a cabeça e me mostrando o Menino Jesus que parecia sorrir-me! Com que santa efusão de amor celestial eu apresentei nosso pequenino Armando à bênção do padre, que o purificou antes do batismo. Mas nos verás juntos, Armando e eu.

Minha filha — aqui estou a te chamar de minha filha! Mas é efetivamente a mais doce palavra que existe no coração, na inteligência e nos lábios, quando se é mãe —, portanto, minha filha, arrastei-me durante os dois últimos meses, muito languidamente nos nossos jardins, cansada, acabrunhada pelo incômodo daquele fardo que eu não sabia tão caro e tão suave, apesar dos aborrecimentos desses dois meses. Tinha tantas apreensões, tantas previsões mortalmente sinistras, que a curiosidade não vencia: eu me sugestionava, a mim mesma dizia que nada do que a natureza exige é de temer, a mim mesma prometia ser mãe! Ai de mim! Nada sentia no coração, enquanto pensava nessa criança que me dava rudes pontapés no ventre; e, minha querida, pode-se gostar de os receber quando já se teve filhos; mas, pela primeira vez, essas manifestações de uma vida desconhecida causam mais espanto do que prazer. Falo-te de mim, que não sou nem falsa, nem teatral, e cujo fruto vinha mais de Deus, porquanto Deus dá os filhos, do que de um homem amado. Deixemos essas tristezas passadas e que não mais voltarão, assim o creio.

Quando sobreveio a crise, juntei em mim os elementos de tal resistência, preparei-me para tais dores, que suportei maravilhosamente, assim dizem, aquela horrível tortura. Houve uma hora, mais ou menos, minha mimosa, durante a qual me abandonei a um aniquilamento, cujos efeitos foram os de um sonho. Senti-me desdobrar: um invólucro atenazado, dilacerado, torturado, e uma alma plácida. Nesse estado singular, o sofrimento floresceu como uma coroa por sobre minha cabeça. Pareceu-me que uma imensa rosa que brotara de meu crânio crescia e me envolvia. A cor rósea dessa flor sangrenta estava no ar. Eu via tudo vermelho. Assim, chegada ao ponto em que parecem prestes a separar-se o corpo e a alma, alanceou-me uma dor que me fez crer numa morte imediata. Dei gritos horríveis e adquiri novas forças contra novas dores. Esse horroroso concerto de clamores foi subitamente coberto, para mim, pelo delicioso canto dos vagidos argentinos do pequeno ser. Não, nada te poderá descrever esse momento: parecia-me que o mundo inteiro clamava comigo, que tudo eram dores ou bramidos, e tudo foi como que abafado por aquele flébil grito de criança. Tornaram-me a levar para a minha cama, onde penetrei como num paraíso, embora estivesse num estado de fraqueza extrema. Três ou quatro alegres rostos, com os olhos marejados de lágrimas, mostraram-me, então, a criança. Querida, gritei de susto.

— Que macaquinho! — disse eu. — Têm certeza de que é uma criança? — perguntei.

Tornei a deitar-me, muito desolada por me sentir tão pouco mãe.

— Não se atormente, querida — disse-me minha mãe, que se constituíra minha enfermeira —, você fez a mais bela criança do mundo. Evite perturbar a sua imaginação, precisa empregar toda a sua inteligência em animalizar-se, fazer exatamente como a vaca que pasta para ter leite.

Adormeci com a firme intenção de me deixar arrastar pela natureza. Ah! Meu anjo, o despertar de todas aquelas dores, daquelas confusas sensações, daqueles primeiros dias em que tudo é obscuro, penoso e indeciso, foi divino. Aquelas trevas foram animadas por uma sensação, cujas delícias ultrapassavam as do primeiro grito de meu filho. Meu coração, minha alma, meu ser, um eu desconhecido foi despertado em seu invólucro, até então desbotado e sofredor, como uma flor que se alçasse de sua semente ao brilhante apelo do sol. O pequeno monstro tomou meu seio e sugou-o: eis o fiat lux. Senti-me subitamente mãe. Eis a felicidade, a alegria, uma alegria inefável, conquanto acompanhada de algumas dores. Ó, minha bela ciumenta, quanto apreciarás um prazer que se passa entre a mãe, o filho e Deus. Esse pequeno ser não conhece senão nosso seio. No mundo, para ele, somente existe esse ponto brilhante; ele o ama com todas as suas forças, não pensa senão nessa fonte de vida, a ela vem e dela se vai para dormir e desperta para voltar a ela. Seus lábios têm um amor inexprimível e, quando se colam ao seio, causam, ao mesmo tempo, uma dor e um prazer, um prazer que vai até a dor, ou uma dor que termina num prazer; não te saberia explicar essa sensação que do seio irradia em mim até as fontes da vida, pois parece um centro de onde partem mil raios que alegram o coração e a alma. Dar vida nada é; mas amamentar é dar vida a todo momento. Oh! Luísa, não há carícia de amante que valha as dessas pequeninas mãos rosadas, que afagam tão suavemente e procuram agarrar-se à vida. Que olhares passeia um filho, alternativamente, de nosso seio aos nossos olhos! Que sonhos temos ao vê-lo suspenso pelos lábios ao seu tesouro! Não interessa menos a todas as forças do espírito do que a todas as do corpo, solicita quer o sangue, quer a inteligência, e satisfaz-nos além dos nossos desejos. Aquela adorável sensação de seu primeiro grito, que foi para mim o que o primeiro raio de sol foi para a terra, eu tornei a senti-la, ao sentir meu leite encher-lhe a boca; tornei a senti-la ao receber o seu primeiro olhar; acabo de senti-la ao saborear, no seu primeiro sorriso, o seu primeiro pensamento. Ele riu, minha querida. Esse riso, esse olhar, aquela mordida, aquele grito, esses quatro gozos são infinitos: vão até o fundo do coração e lá fazem vibrar cordas que somente eles podem tocar! Os mundos devem prender-se a Deus, como uma criança se prende a todas as fibras de sua mãe: Deus é um grande coração de mãe. Nada há de visível nem de perceptível na concepção, nem mesmo na gravidez; mas amamentar, minha Luísa, é uma felicidade de todos os instantes. Vê-se no que se transforma o leite, faz-se carne, floresce na ponta desses dedos mimosos que se assemelham a flores e delas têm a delicadeza; cresce em unhas finas e transparentes, afila-se em cabelos, agita-se com os pés. Oh! Os pés de uma criança são uma linguagem completa. É por eles que a criança começa a expressar-se. Amamentar, Luísa!, é uma transformação que se segue de hora em hora e com olhos assombrados. Os gritos não são escutados pelos ouvidos, mas pelo coração; os sorrisos dos olhos e dos lábios, ou os movimentos dos pés, a gente os compreende como se Deus nos escrevesse em letras de fogo no espaço! Não há mais nada no mundo que nos interesse: o pai?... Seríamos capazes de matá-lo se ele se lembrasse de despertar a criança. Somos exclusivamente o mundo para essa criança, como a criança é o mundo para nós! Temos tanta certeza de que a nossa vida é partilhada, somos tão amplamente recompensadas dos trabalhos que nos impomos e dos sofrimentos que experimentamos — pois que há sofrimentos... Deus te preserve de ter assaduras no seio! Essa ferida que se reabre sob os lábios rosados, que tão dificilmente se cura e que causa torturas de enlouquecer — se não tivéssemos a alegria de ver a boca da criança lambuzada de leite —, é uma das mais terríveis punições da beleza. Minha Luísa, lembra-te, isso só acontece com uma pele fina e delicada.

O meu macaquinho tornou-se, em cinco meses, a mais linda criatura que uma mãe já tenha banhado de lágrimas felizes, lavado, esfregado, penteado, empoado; pois Deus sabe com que infatigável ardor empoamos, vestimos, esfregamos, lavamos, mudamos e beijamos essas pequeninas flores! Portanto, meu macaquinho não é mais um macaco, mas sim um baby, como diz a ama-seca inglesa, um baby, alvo e rosado; e como ele se sente querido não grita muito; mas, realmente, eu quase não o deixo e esforço-me em penetrá-lo com a minha alma.

Querida, tenho agora, no coração, por Luís, um sentimento que não é o amor, mas que, numa mulher amorosa, deve completar o amor. Quem sabe se essa ternura, essa gratidão, livre de qualquer interesse, não vai além do amor? Por tudo o que me disseste, querida mimosa, o amor tem algo de horrivelmente terrestre, ao passo que há não sei que de religioso e de divino na afeição que uma mãe feliz tributa àquele de quem procedem essas longas, essas eternas alegrias. A felicidade de uma mãe é uma luz que jorra até sobre o futuro e o ilumina, mas que se reflete sobre o passado para lhe dar o encanto das recordações.

O velho Estorade e o filho redobraram de bondade para comigo, sou para eles como uma nova criatura: suas palavras, seus olhares chegam-me à alma, pois me festejam todas as vezes que me veem ou me falam. O velho avô torna-se criança, creio: olha-me com admiração. A primeira vez que desci para almoçar e ele me viu comendo e dando de mamar ao seu neto, chorou. Essas lágrimas, naqueles olhos secos, onde brilham somente pensamentos de dinheiro, causaram-me um bem inexprimível; pareceu-me que o bom velho compreendia minhas alegrias. Quanto a Luís, teria sido capaz de dizer às árvores e às pedras da estrada que tinha um filho. Passa horas inteiras a contemplar o teu afilhado adormecido. Diz ele que não sabe quando se acostumará a isso. Essas excessivas demonstrações de alegria revelaram-me a extensão de suas apreensões e temores. Luís acabou confessando-me que duvidava de si mesmo e se julgava condenado a nunca ser pai. Meu pobre Luís teve uma súbita mudança para melhor, estuda agora mais do que antes. A criança duplicou a ambição do pai. Quanto a mim, alma querida, sinto-me cada vez mais feliz. Cada hora que passa acrescenta novo laço entre mãe e filho. O que sinto em mim demonstra-me que esse sentimento é imorredouro, natural, de todos os instantes; ao passo que suspeito o amor, por exemplo, de ter as suas intermitências. Não se ama do mesmo modo a todos os momentos, sobre esse tecido da vida não se bordam flores brilhantes, enfim, o amor pode e deve cessar; o sentimento materno, porém, não tem declínios a temer, cresce com as necessidades da criança, desenvolve-se com ela. Pois não é ao mesmo tempo uma paixão, uma necessidade, um sentimento, um dever, uma obrigação, a felicidade? Sim, mimosa, é essa a vida particular da mulher. Nossa sede de devotamento satisfaz-se com isso, e nesse sentimento não deparamos com as perturbações do ciúme. Por isso é talvez, para nós, o único ponto em que a natureza e a sociedade estão de acordo. Nisso a sociedade enriqueceu a natureza, pois aumentou o sentimento materno com o espírito de família, a continuidade de nome, de sangue, de fortuna. De que amor uma mulher não deverá cercar o querido ser que, primeiro que todos, lhe fez conhecer semelhante felicidade, lhe fez desenvolver as forças de sua alma e lhe ensinou a grande arte da maternidade? O direito de primogenitura, que, por sua antiguidade, é tão velho como o mundo e se confunde com a origem das sociedades não me parece passível de discussão. Ah! Quanta coisa um filho ensina a sua mãe! Há tantas promessas feitas entre nós e a virtude, nessa proteção incessante devida a um ser fraco, que a mulher não se acha na sua verdadeira esfera senão quando é mãe; só então é que ela desenvolve suas forças, pratica os deveres de sua vida, tem todas as felicidades e todos os prazeres. Uma mulher que não tem filhos é um ser incompleto e frustrado. Apressa-te em ser mãe, meu anjo! Multiplicarás tua felicidade atual por todas as muitas volúpias.

Deixei-te ao ouvir teu afilhado gritar, e esse grito ouvi-o do fundo do jardim. Não quero mandar-te esta carta sem te dizer uma palavra de adeus; acabo de relê-la e estou espantada com as vulgaridades de sentimento que ela contém. O que sinto, ai de mim!, parece-me que todas as mães o sentiram como eu e o devem ter exprimido do mesmo modo, e que tu zombarás de mim, como se zomba da ingenuidade de todos os pais que falam da inteligência e da beleza de seus filhos, achando sempre neles algo de particular. Enfim, querida mimosa, a chave desta carta, ei-la aqui, repito: sou tão feliz agora quanto era infeliz antes. Esta casinha de campo, que aliás se vai transformando numa fazenda, num morgadio, é, para mim, a terra prometida. Acabei atravessando o meu deserto. Mil ternuras, querida mimosa. Escreve-me, posso hoje ler sem chorar as descrições da tua felicidade e do teu amor. Adeus.



continua pág 316...

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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