sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Moçal (7)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
                              ______________________________________________________




CAPÍTULO II
A   M O Ç A





continuando...


Quando não encontra o amor, encontra a poesia. Como não age, ela olha, sente, registra; uma cor, um sorriso encontram nela ecos profundos; porque é fora de si, nas cidades já construídas, no rosto dos homens feitos que se espalha seu destino; ela apalpa, aprecia de uma maneira a um tempo apaixonada e mais gratuita do que o rapaz. Mal integrada no universo humano, tendo dificuldade em se adaptar a ele, ela é como a criança capaz de vê-lo; em lugar de se interessar tão-somente pelo domínio sobre as coisas, esforça-se por compreendê-las; apreende-lhes os perfis singulares, as metamorfoses imprevistas. É raro que sinta em si uma audácia criadora e os mais das vezes carece das técnicas que lhe permitiriam exprimir-se; mas nas suas conversas, nas suas cartas, seus ensaios literários, seus esboços, manifesta uma originalidade sensível. A jovem atira-se com ardor às coisas porque ainda não está mutilada em sua transcendência e o fato de não realizar nada, de não ser nada, tornará seu impulso tanto mais apaixonado. Vazia e ilimitada, é Tudo que ela procurará atingir do fundo de seu nada. Eis por que dedicará um amor especial à Natureza: mais ainda do que o adolescente, ela lhe rende um culto. Indomada, inumana, é a natureza que resume com mais evidência a totalidade do que é. A adolescente não se anexou ainda a nenhuma parcela do universo: graças a essa carência, ele é por inteiro seu reino; quando toma posse dele toma também orgulhosamente posse de si mesma. Colette (Sido) descreveu-nos muitas vezes essas orgias juvenis:

Pois já gostava tanto da alvorada que minha mãe me concedia como recompensa. Conseguia dela que me despertasse às três e meia e eu partia, com um cesto vazio em cada braço, para o lado das hortas que se refugiavam na dobra estreita do riacho, à cata de morangos, cassis e groselhas peludas.
Às três e meia tudo dormia em um azul original, úmido e confuso, e quando eu descia o caminho arenoso, a bruma retida pelo próprio peso banhava-me primeiramente as pernas, em seguida meu pequeno torso bem feito, atingindo meus lábios, minhas orelhas e minhas narinas mais sensíveis do que todo o resto do corpo. . . Nesse caminho, nessa hora é que eu tomava consciência de meu valor, de um estado de graça indizível e de minha conivência com o primeiro sopro surgindo, o primeiro pássaro, o sol ainda oval. deformado pela sua eclosão. . . Voltava ao ouvir o sino da primeira missa. Mas não antes de ter comido à farta, não antes de ter traçado no bosque um grande circuito de cão caçando sozinho e ter saboreado a água de duas nascentes perdidas que eu venerava...



Mary Webb descreve-nos também em Peso das Sombras as alegrias ardentes que uma jovem pode conhecer na intimidade de uma paisagem familiar:


Quando a atmosfera do lar se tornava demasiado carregada, os nervos de Ambre crispavam-se até quase rebentar. Nesses momentos ela ia até o bosque pela colina. Parecia-lhe então que, enquanto a gente de Dormer vivia sob a férula da lei, a floresta só vivia de impulsos. À força de atentar para a beleza da Natureza, ela chegou a uma percepção particular da beleza. Pôs-se a ver analogias; a Natureza não era mais um conjunto fortuito de pormenores e sim uma harmonia, um poema austero e majestoso. A beleza nela reinava, uma luz brilhava, que não era a da flor nem a da estrela... Um tremor leve, misterioso e avassalador parecia correr como a luz através de toda a floresta. . . Os passeios de Ambre nesse mundo de vegetação tinham algo de um rito religioso. Uma noite em que tudo estava calmo, ela subiu ao Pomar dos Pássaros. Era o que fazia amiúde antes que começasse o dia de irritações mesquinhas. . . hauria certo reconforto na absurda inconsequência do mundo dos pássaros. . . Chegou enfim perto da floresta densa e logo se sentiu em luta com a beleza. Havia literalmente para ela nessas conversas com a Natureza algo de uma batalha, alguma coisa daquele humor que assim falou: "Não te deixarei partir enquanto não me tiveres abençoado . . . " Como se apoiasse ao tronco de uma macieira selvagem, subitamente, tomou consciência, por essa espécie de audição interior, da subida da seiva, tão viva e tão forte que a imaginava roncando como a maré. Depois um arrepio de vento passou sobre a polpa florida da árvore e ela despertou de novo para a realidade dos sons, os discursos estranhos das folhas. . . Cada pétala, cada folha parecia cantarolar uma música, lembrando ela também as profundezas de que jorrara. Cada uma das flores levemente estufadas lhe parecia cheia de ecos demasiado graves para sua fragilidade. . . Do alto das colinas veio um sopro de ar perfumado que deslizou por entre os galhos. As coisas que tinham uma forma e conheciam a mortalidade das formas tremeram ante essa coisa que passava, sem forma e inexprimível. Por causa dela, a floresta não era mais um simples agrupamento, e sim um conjunto glorioso como uma constelação. . . Ela possuía-se a si própria numa existência contínua e imutável. Era isso que atraía Ambre, tomada de uma curiosidade que lhe prendia a respiração, nesses sítios assombrados da Natureza. Era o que a imobilizava agora num êxtase singular...


Mulheres tão diferentes como Emily Brontë e Anna de Noailles conheceram em sua juventude semelhantes fervores — e os prolongaram em seguida durante a vida.

Os textos que citei mostram bem o socorro que a adolescente encontra nos campos e nos bosques. Na casa paterna reinam a mãe, as leis, o costume, a rotina e ela quer arrancar-se desse passado; quer tornar-se por sua vez um sujeito soberano: mas socialmente só atinge sua vida de adulto fazendo-se mulher; paga sua libertação com uma abdicação, ao passo que no meio dos pássaros e dos bichos ela é um ser humano; libertou-se ao mesmo tempo da família e dos homens, é um sujeito, uma liberdade. Encontra no segredo das florestas uma imagem da solidão de sua alma e nos vastos horizontes das planícies a figura sensível de sua transcendência; é ela própria a charneca ilimitada, o pico voltado para o céu. Essas estradas que partem para o futuro, ela as pode seguir, ela as seguirá; sentada no alto da colina domina todas as riquezas do mundo jogadas a seus pés, oferecidas. Através das palpitações da água, do frêmito da luz, pressente alegrias, lágrimas, êxtases que ainda ignora; são as aventuras de seu próprio coração que confusamente lhe prometem as ondulações da água, as manchas de sol. Odores e cores falam uma linguagem misteriosa mas de que se destaca com triunfante evidência uma palavra: a palavra "vida". A existência não é somente um destino abstrato que se inscreve nos registros civis, é futuro e riqueza carnal. Ter um corpo não surge mais como uma tara vergonhosa; nesses desejos que repudia ante o olhar materno, a adolescente reconhece a seiva que sobe nas árvores; não é mais maldita, reivindica orgulhosamente seu parentesco com as folhagens e as flores; amarrota uma corola, e sabe que uma presa viva encherá um dia suas mãos vazias. A carne não é mais uma sujeira: é alegria e beleza. Confundida com o céu e a planície, a jovem é esse sopro indistinto que anima e abrasa o universo, está em cada raminho de urze; indivíduo arraigado ao solo e consciência infinita, é a um tempo espírito e vida; sua presença é imperiosa e triunfante como a da própria terra.

Para além da Natureza, ela busca por vezes uma realidade mais longínqua e mais deslumbrante ainda; está disposta a perder- -se em êxtases místicos; nas épocas de fé, numerosas jovens almas femininas pediam a Deus que enchesse o vazio de seu ser; foi muito cedo que se revelou a vocação de Catarina de Siena, de Teresa d'Ávila [1]. Joana d'Arc era uma moça. Noutros tempos, é a humanidade que aparece como fim supremo; então o impulso místico funde-se em projetos definidos; mas foi também um jovem desejo de absoluto que fez nascer em Mme Roland, em Rosa Luxemburgo, a chama com que se alimentaram suas vidas. Em sua servidão, em sua carência, do fundo de sua recusa, a jovem pode tirar as maiores audácias. Ela encontra a poesia; encontra também o heroísmo. Uma das maneiras de assumir o fato de que está mal integrada na sociedade é ultrapassar os seus horizontes mesquinhos. 

[1] Voltaremos a referir-nos aos caracteres singulares da mística feminina.

A riqueza e a força de sua natureza, circunstâncias felizes, permitiram a algumas mulheres perpetuarem em sua vida de adulto os projetos apaixonados de sua adolescência. Mas trata-se de exceções. Não é sem razão que George Eliot faz morrer Maggie Tulliver, e Margaret Kennedy faz o mesmo com Tessa. Áspero destino conheceram as irmãs Brontë. A jovem é patética porque se ergue, fraca e só, contra o mundo; mas o mundo é poderoso demais; se se obstina em o recusar, ela é quebrada. Belle de Zuylen, que deslumbrava a Europa pela força cáustica e a originalidade de seu espírito, assustava todos os pretendentes: sua recusa a quaisquer concessões condenou-a durante longos anos a um celibato que lhe pesava, porquanto declarava que a expressão "virgem e mártir" é um pleonasmo. Essa obstinação é rara. Na imensa maioria dos casos a jovem se dá conta de que o combate é por demais desigual e acaba cedendo. "Vocês morrem todas aos quinze anos", escreve Diderot a Sophie Volland. Quando o combate não passou — como acontece o mais das vezes — de uma revolta simbólica, a derrota é certa. Exigente em sonho, cheia de esperança mas passiva, a jovem faz os adultos sorrirem com alguma piedade. Eles votam-na à resignação. E, com efeito, a criança rebelde e barroca que haviam deixado, encontram-na dois anos mais tarde recatada, disposta a consentir em sua vida de mulher. É o futuro que Colette prediz para Vinca; assim aparecem as heroínas dos primeiros romances de Mauriac. A crise da adolescência é uma espécie de "trabalho", análogo ao que o Dr. Lagache chama "trabalho do luto". A jovem enterra lentamente sua infância, o indivíduo autônomo e imperioso que foi; e entra submissa na existência adulta.

Naturalmente não se pode estabelecer somente pela idade categorias bem nítidas. Há mulheres que permanecem infantis durante toda a vida; as condutas que descrevemos perpetuam-se por vezes até uma idade avançada. Entretanto há, no conjunto, uma grande diferença entre o "broto" de 15 anos e uma "moça feita". Esta está adaptada à realidade. Quase não se move mais no plano do imaginário; é menos dividida em si mesma do que antes. Maria Bashkirtseff escreve, por volta de 18 anos:



Quanto mais avanço para a velhice de minha mocidade, mais me cubro de indiferença. Poucas coisas me agitam e tudo me agitava.


Irene Reweliotty anota:


Para ser aceita pelos homens é preciso pensar e agir como eles, sem o que eles nos tratam como ovelha negra e a solidão se torna o nosso quinhão. E eu, agora, estou farta da solidão, quero gente e não apenas ao redor de mim, mas comigo. . . Viver agora, não existir e esperar, e sonhar e tudo contar a si mesma de boca fechada e corpo imóvel.


E mais adiante:


À força de ser lisonjeada, cortejada etc, vou-me tornando terrivelmente ambiciosa. Não é mais a felicidade, temerosa, maravilhada de meus 15 anos. É uma espécie de embriaguez fria e dura de ter meu revide contra a vida, de subir. Namoro, brinco de amar. Não amo. . . Ganho em matéria de inteligência, sangue frio, lucidez habitual. Perco meu coração. Foi como uma rachadura. . . Em dois meses abandonei minha infância.


É mais ou menos o mesmo tom destas confidencias de uma jovem de 19 anos [2] :

[2] Citado por Debesse, La crise d'originalité de l'adolescente.

Outrora ah! que conflito entre uma mentalidade que parecia incompatível com o século e os apelos do próprio século! Agora tenho a impressão de um sossego. Cada nova grande ideia que entra em mim, em lugar de provocar um desmoronamento penoso, uma destruição e uma reconstrução incessante, vem adaptar-se maravilhosamente ao que já está em mim. . . Agora, passo insensivelmente dos pensamentos teóricos à vida corrente sem solução de continuidade.


A jovem, a não ser que seja particularmente desgraciosa, acabou por aceitar sua feminilidade; e não raro ela se sente feliz por gozar gratuitamente dos prazeres, dos triunfos que disso tira antes de se instalar definitivamente em seu destino. Não sendo ainda exigida por nenhum dever, irresponsável, disponível, o presente não lhe parece entretanto nem vazio nem decepcionante porque não passa de uma etapa; a elegância e o namoro têm ainda a leveza de um jogo e seus sonhos de futuro mascaram-lhe a futilidade. Assim é que V. Woolf descreve, em As Vagas, impressões de uma jovem coquete durante uma noitada:


Sinto-me toda brilhante na escuridão. Minhas pernas sedosas esfregam- se docemente uma na outra. As pedras frias de um colar repousam no meu colo. Estou enfeitada, estou pronta. . . Meus cabelos têm a ondulação que devem ter, meus lábios são tão vermelhos quanto o quero. Estou preparada para juntar-me a esses homens e essas mulheres que sobem a escada. São meus pares. Passo diante deles, exposta aos olhares deles como eles estão aos meus. . . Nessa atmosfera de perfumes, de luzes, desabrocho como uma avenca que exibe suas folhas crespas.. . Sinto mil possibilidades nascerem em mim. Sou respectivamente travessa, alegre, langorosa, melancólica. Flutuo por cima de minhas raízes profundas. Inclinada para a direita, toda dourada, digo ao rapaz: "Achega-te". . . Ele vem. Ele aproxima-se, vem para meu lado. É o momento mais excitante que jamais vivi. Tremo, ondulo. . . Não somos nós encantadores sentados juntos, eu vestida de cetim e ele todo de preto e branco? Meus pares, quem quer que sejam, homens ou mulheres, podem encarar-me agora. Devolvo os olhares, sou dos vossos. Estou aqui, no meu universo. . . A porta abre-se. A porta abre-se sem parar. Na próxima vez que se abrir talvez minha vida inteira mude por completo. . . A porta abre-se. "Achega-te", digo ao jovem inclinando-me para ele como uma grande flor de ouro. "Achega-te", digo-lhe e ele vem a mim.


Entretanto, quanto mais a jovem amadurece, mais a autoridade materna lhe pesa. Se leva, em casa, uma vida doméstica, sofre por não passar de uma assistente, gostaria de consagrar seu trabalho a seu próprio lar, a seus próprios filhos. Muitas vezes a rivalidade com a mãe exaspera-se: uma primogênita em particular irrita-se se nascem ainda jovens irmãos ou irmãs; ela considera que a mãe já "teve sua vez". Cabe agora a ela engendrar, reinar. Se trabalha fora de casa, sofre quando volta para o lar por ser ainda tratada como um simples membro da família e não como um indivíduo autônomo.

Menos romanesca do que outrora, começa a pensar muito mais no casamento do que no amor. Não envolve mais seu futuro esposo numa auréola prestigiosa: o que almeja é ter neste mundo uma situação estável, começar a viver sua vida de mulher. Virgínia Woolf assim descreve, em As Vagas, as fantasias de uma camponesa rica e jovem:



Dentro em pouco, na hora quente de meio-dia em que as abelhas zunem em torno da madressilva, meu bem-amado virá. Não dirá mais do que uma palavra e só uma palavra lhe responderei. Dar-lhe-ei tudo o que cresceu em 'mim. Terei filhos, terei criadas de avental e operárias carregando tochas. Terei uma cozinha para onde trarão, dentro de cestos, cordeiros doentes a fim de serem aquecidos, onde haverá presuntos pendurados às vigas e onde rosários de cebolas brilharão. Serei igual a minha mãe, silenciosa, com um avental azul e na mão as chaves dos armários.


Sonho semelhante obsidia a pobre Prue Sarn (Cf. Sarn de Mary Webb):


Pensava que nunca se casar fosse um destino horrível. Todas as moças se casam. E quando uma moça se casa, tem um lar e talvez uma lâmpada que acende à noite, na hora em que seu homem chega; se tem apenas velas dá na mesma, pois pode colocá-las perto da janela; então ele diz para si mesmo: "Minha mulher está aí, acendeu as velas". E chega um dia em que Mrs. Beguildy lhe confecciona um berço de vime; e depois vê-se nele um bebê belo e grave, e mandam-se convites para o batismo; e os vizinhos acorrem para perto da mãe como as abelhas para junto da rainha. Muitas vezes quando as coisas iam mal eu me dizia: "Não faz mal, Prue Sarn, um dia serás rainha em tua própria colmeia".


Para a maioria das jovens — tenham elas uma vida laboriosa ou frívola, estejam confinadas ao lar paterno ou dele se evadam parcialmente — a conquista de um marido — ou, a rigor, de um amante sério — torna-se uma empresa dia a dia mais urgente. Essa preocupação é muitas vezes nefasta às amizades femininas. A "amiga íntima" perde seu lugar privilegiado. A jovem vê, em suas companheiras, antes cúmplices do que rivais. Conheci uma, inteligente e bem dotada, mas que resolvera imaginar- se "princesa longínqua": assim é que se descrevia em poemas e ensaios literários; confessava sinceramente que não conservava nenhum apego a suas amigas de infância: feias e tolas, elas lhe desagradavam; sedutoras, ela as temia. A espera impaciente do homem que implica não raro manobras, ardis e humilhações, fecha o horizonte da jovem; ela torna-se egoísta e dura. E se o príncipe encantado tarda a surgir, nascem o desgosto e o azedume.

O caráter e as condutas da jovem exprimem sua situação: se esta se modifica, a figura da adolescente apresenta-se também como diferente. Hoje em dia, torna-se-lhe possível tomar o destino nas mãos, ao invés de entregá-lo ao homem. Se está absorvida pelos estudos, os esportes, um aprendizado profissional, liberta-se da obsessão do homem, preocupa-se muito menos com seus conflitos sentimentais e sexuais. Entretanto, tem muito mais dificuldade do que o rapaz em se realizar como indivíduo autônomo. Já disse que nem a família nem os costumes favoreciam seu esforço. Demais, mesmo que escolha a independência, reserva um lugar em sua vida para o homem, para o amor. Terá muitas vezes medo de falhar em seu destino de mulher dedicando- se por inteira a alguma empresa. Tal sentimento permanece não raro inconfessado; mas está presente, perverte as vontades concertadas, estabelece limites. Em todo caso, a mulher que trabalha quer conciliar seu êxito com êxitos puramente femininos; isso não exige que consagre um tempo considerável a sua elegância, a sua beleza, porém, o que é mais grave, implica que seus interesses vitais se achem divididos. À margem dos programas, o estudante diverte-se com jogos gratuitos de ideias e daí nascem seus melhores achados; os devaneios da mulher orientam-se de maneira inteiramente diversa: ela pensará em sua aparência física, no homem, no amor; não dará senão o estritamente necessário a seus estudos, a sua carreira, quando nesses terrenos nada é tão necessário quanto o supérfluo. Não se trata de uma fraqueza mental, de uma incapacidade de se concentrar, e sim de uma partilha de interesses que se conciliam mal. Forma-se um círculo vicioso: espantamo-nos muitas vezes, ao ver com que facilidade uma mulher pode abandonar a música, os estudos, a profissão logo que encontra um marido; é que empenhara demasiado pouco de si mesma em seus projetos para descobrir grande proveito na realização deles. Tudo contribui para frear sua ambição pessoal, enquanto uma enorme pressão social a convida a encontrar uma posição social no casamento, uma justificação. É natural que não procure criar por si mesma seu lugar neste mundo, ou que só o faça timidamente. Enquanto não houver uma perfeita igualdade econômica na sociedade e enquanto os costumes autorizarem a mulher, como esposa ou amante, a aproveitar-se dos privilégios de certos homens, o sonho de um êxito passivo continuará e ela freará suas próprias realizações.

Entretanto, seja qual for a maneira pela qual a jovem encare sua existência de adulta, o aprendizado não estará ainda terminado. Por lentas gradações ou brutalmente, ser-lhe-á necessário passar pela iniciação sexual. Há jovens que se recusam a isso. Se incidentes sexualmente penosos marcaram sua infância, se uma educação infeliz lentamente arraigou nelas o horror à sexualidade, conservarão sua repugnância de menina púbere em relação ao homem. Algumas vezes as circunstâncias conduzem, contra sua vontade, certas mulheres a uma virgindade prolongada. Mas, na maioria dos casos, a jovem realiza, numa idade mais ou menos avançada, seu destino sexual. A maneira pela qual o enfrenta está evidentemente em estreita ligação com seu passado. Mas há também nisso uma experiência nova que se propõe em circunstâncias imprevistas e à qual ela reage livremente. É esta nova etapa que nos cumpre encarar agora.




continua página 109...

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Leia também:


O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (9)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (8)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (7)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (3)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (2)
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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (7)



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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"



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