sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Série: Jazz Para Sempre 02

John Coltrane



Quando você não sabe o que dizer... escute


My Favorite Things










13. A Metamorfose - Como ninguém se aventurava - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 3

13 A Metamorfose - Como ninguém se aventurava - Franz Kafka



Como ninguém se aventurava a retirá-la, a maçã manteve-se cravada no corpo de Gregório como recordação visível da agressão, que lhe causara um grave ferimento, afetando-o havia mais de um mês. A ferida parecia ter feito que o próprio pai se lembrasse de que Gregório era um membro da família, apesar do seu desgraçado e repelente aspecto atual, não devendo, portanto, ser tratado como inimigo; pelo contrário, o dever familiar impunha que esquecessem o desgosto e tudo suportassem com paciência. 

O ferimento tinha-lhe diminuído, talvez para sempre, a capacidade de movimentos e eram-lhe agora precisos longos minutos para se arrastar ao longo do quarto, como um velho inválido; nas presentes condições, estava totalmente fora de questão a possibilidade de trepar pela parede. 

Parecia-lhe que este agravamento da sua situação era suficientemente compensado pelo fato de terem passado a deixar aberta, ao anoitecer, a porta que dava para a sala de estar, a qual fitava intensamente desde uma a duas horas antes, aguardando o momento em que, deitado na escuridão do quarto, invisível aos outros, podia vê-los sentados à mesa, sob a luz, e ouvi-los conversarem, numa espécie de comum acordo, bem diferente da escuta que anteriormente escutara. 

É certo que faltava às suas relações com a família a animação de outrora, que sempre recordara com certa saudade nos acanhados quartos de hotel em cujas camas úmidas se acostumara a cair, completamente esgotado. Atualmente, passavam a maior parte do tempo em silêncio. Pouco tempo após o jantar, o pai adormecia na cadeira de braços; a mãe e a irmã exigiam silêncio uma à outra. Enquanto a mãe curvada sob o candeeiro, bordava para uma firma de artigos de roupa interior, a irmã, que se empregara como caixeira, estudava estenografia e francês, na esperança de melhor situação. De vez em quando, o pai acordava e, como se não tivesse consciência de que estivera a dormir, dizia à mãe:

— Hoje tens cosido que te fartas! — caindo novamente no sono, enquanto as duas mulheres trocavam um sorriso cansado.

Por qualquer estranha teimosia, o pai persistia em manter-se fardado, mesmo em casa, e, enquanto o pijama repousava, inútil, pendurado no cabide, dormia completamente vestido onde quer que se sentasse, como se estivesse sempre pronto a entrar em ação e esperasse apenas uma ordem do superior. Em conseqüência, a farda, que, para começar, não era nova, principiava a ter um ar sujo, mau grado os desvelados cuidados a que a mãe e a irmã se entregavam para a manter limpa. Não raro, Gregório passava a noite a fitar as muitas nódoas de gordura do uniforme, cujos botões dourados se mantinham sempre brilhantes, dentro do qual o velho dormia sentado, por certo desconfortavelmente, mas com a maior das tranquilidades. 


Logo que o relógio batia as dez, a mãe tentava despertar o marido com palavras meigas e convencê-lo depois a ir para a cama, visto que assim nem dormia descansado, que era o mais importante para quem tinha de entrar ao serviço às seis da manhã. Não obstante, com a teimosia que o não largava desde que se empregara no banco, insistia sempre em ficar à mesa até mais tarde, embora tornasse invariavelmente a cair no sono e por fim só a muito custo a mãe conseguisse que ele se levantasse da cadeira e fosse para a cama. Por mais que mãe e filha insistissem com brandura, ele mantinha-se durante um quarto de hora a abanar a cabeça, de olhos fechados, recusando-se a abandonar a cadeira. A mãe sacudia-lhe a manga, sussurrando-lhe ternamente ao ouvido, mas ele não se deixava levar. Só quando ambas o erguiam pelas axilas, abria os olhos e as fitava, alternadamente, observando quase sempre: Que vida a minha! Chama-se a isto uma velhice descansada, apoiando-se na mulher e na filha, erguia-se com dificuldade, como se não pudesse com o próprio peso, deixando que elas o conduzissem até à porta, após o que as afastava, prosseguindo sozinho, enquanto a mãe abandonava a costura e a filha pousava a caneta para correrem a ampará-lo no resto do caminho. 

Naquela família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que tivesse tempo para se preocupar com Gregório mais do que o estritamente necessário! As despesas da casa eram cada vez mais reduzidas. A criada fora despedida; uma grande empregada ossuda vinha de manhã e à tarde para os trabalhos mais pesados, encarregando-se a mãe de Gregório de tudo o resto, incluindo a dura tarefa de bordar. Tinham-se visto até na obrigação de vender as jóias da família, que a mãe e a irmã costumavam orgulhosamente pôr para as festas e cerimônias, conforme Gregório descobriu uma noite, ouvindo-os discutir o preço por que haviam conseguido vendê-las. Mas o que mais lamentava era o fato de não poderem deixar a casa, que era demasiado grande para as necessidades atuais, pois não conseguiam imaginar meio algum de deslocar Gregório. Gregório bem via que não era a consideração pela sua pessoa o principal obstáculo à mudança, pois facilmente poderiam metê-lo numa caixa adequada, com orifícios que lhe permitissem respirar; o que, na verdade, os impedia de mudarem de casa era o próprio desespero e a convicção de que tinham sido isolados por uma infelicidade que nunca sucedera a nenhum dos seus parentes ou conhecidos. Passavam pelas piores provações que o mundo impõe aos pobres; o pai ia levar o pequeno almoço aos empregados de menor categoria do banco, a mãe gastava todas as energias a confeccionar roupa interior para estranhos e a irmã saltava de um lado para outro, atrás do balcão, às ordens dos fregueses, mas não dispunham de forças para mais. E a ferida que Gregório tinha no dorso parecia abrir-se de novo quando a mãe e a irmã, depois de meterem o pai na cama, deixavam os seus trabalhos no local e se sentavam, com a cara encostada uma à outra. A mãe costumava então dizer, apontando para o quarto de Gregório:

— Fecha a porta, Grete




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Universidade da Amazônia
A Metamorfose
de Franz Kafka de Franz Kafka

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Leia também:


14. A Metamorfose - E lá ficava ele novamente mergulhado na escuridão - Franz Kafka


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

100 Anos Com Samba - Esperanças Perdidas

Originais do Samba


Esperanças Perdidas




Quantas belezas deixadas nos cantos da vida








Esperanças Perdidas



Quantas belezas deixadas nos cantos da vida
Que ninguém quer e nem mesmo procura encontrar
E quando os sonhos se tornam esperanças perdidas
Que alguém deixou morrer sem nem mesmo tentar

Minha beleza encontro no samba que faço
Minha tristeza se torna um alegre cantar
É que carrego o samba bem dentro do peito
E sem a cadência do Samba não posso ficar

Quantas belezas deixadas nos cantos da vida
Que ninguém quer e nem mesmo procura encontrar
E quando os sonhos se tornam esperanças perdidas
Que alguém deixou morrer sem nem mesmo tentar

Minha beleza encontro no samba que faço
Minha tristeza se torna um alegre cantar
É que carrego o samba bem dentro do peito
E sem a cadência do Samba não posso ficar

Não posso ficar, eu juro que não
Não posso ficar, eu tenho razão
Já fui batizado na roda de bamba
O Samba é a corda, eu sou a caçamba (2x)

Quantas noites de tristeza ele me consola
Tenho como testemunha a minha viola
Ai se me faltar o samba não sei que será
E sem a cadência do samba não posso ficar

Não posso ficar, eu juro que não
Não posso ficar, eu tenho razão
Já fui batizado na roda de bamba
O Samba é a corda, eu sou a caçamba





Bobók - 2. Olho para as caras dos mortos com cautela - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


2.


Olho para as caras dos mortos com cautela, desconfiado da minha impressionabilidade. Há expressões amenas, como há desagradáveis. Os sorrisos são geralmente maus, uns até muito. Não gosto; sonho com eles. 

Durante a missa saí da capela para tomar ar fresco; o dia estava acinzentado, mas seco. E frio; também pudera, estávamos em outubro. Comecei a caminhar entre as sepulturas. Classes diferentes. As de terceira classe custam trinta rublos: são bastante boas e não tão caras. As duas primeiras ficam na igreja, no adro; bem, isso custa os olhos da cara. Na terceira classe enterraram desta vez umas seis pessoas, entre eles o general e a grã-fina. 

Dei uma olhada nas sepulturas — um horror: havia água, e que água! Toda verde e... só vendo o que mais! A todo instante o coveiro a retirava com uma vasilha. Enquanto transcorria a missa, saí para dar uma voltinha além dos portões. Fui logo encontrando um hospício, e um pouco adiante um restaurante. E um restaurantezinho mais ou menos: tinha de tudo e até salgadinhos. Havia muita gente, inclusive acompanhantes do enterro. Notei muita alegria e animação sincera. Comi uns salgadinhos e tomei um trago. 

Depois ajudei com as próprias mãos a levar o caixão da igreja para o túmulo. Por que os mortos ficam tão pesados no caixão? Dizem, com base em alguma inércia, que o corpo já não teria domínio sobre si mesmo... ou algum absurdo dessa ordem; coisa contrária à mecânica e ao bom senso. Não gosto quando alguém apenas com instrução geral se mete a especialista: entre nós isso acontece a torto e a direito. Civis gostam de julgar assuntos de militares, e até da alçada de marechais de campo, gente com formação em engenharia discute mais filosofia e economia política. 

Não assisti ao Réquiem. Sou orgulhoso, e se me recebem apenas por extrema necessidade, por que vou me enfiar nos seus jantares, ainda que sejam de funerais? Só não entendo por que fiquei no cemitério: sentei-me em uma sepultura e passei a meditar de verdade. 

Comecei por uma exposição de Moscou e terminei refletindo sobre a admiração, falando do tema em linhas gerais. Eis o que concluí sobre a “admiração”: 

“Admirar-se de tudo é, sem dúvida, uma tolice, não se admirar de nada é bem mais bonito e, por algum motivo, reconhecido como bom-tom. Mas é pouco provável que no fundo seja assim. Acho que não se admirar de nada é uma tolice bem maior do que admirar-se de tudo. Além do mais, não se admirar de nada é quase o mesmo que não respeitar nada. Aliás, um homem tolo não pode mesmo respeitar.” 

— Sim, acima de tudo desejo respeitar. Estou sequioso por respeitar — disse-me certa vez, por esses dias, um conhecido. 

Está sequioso por respeitar! Meu Deus, pensei, o que seria de ti se te atrevesses a publicar essa coisa hoje em dia! 

Nisso comecei a dormitar. Não gosto de ler inscrições de túmulos; são sempre iguais. Sobre uma lápide, ao meu lado, havia um resto de sanduíche: coisa tola e inoportuna. Derrubei-o sobre a terra, pois não era pão mas apenas sanduíche. Aliás, parece que não é pecado esfarelar pão sobre a terra; sobre o assoalho é que é pecado. Procurar informações no almanaque de Suvórin. 

Cabe supor que fiquei sentado muito tempo, até demais; ou seja, cheguei inclusive a me deitar em um longo bloco de pedra com formato de caixão de mármore. E como foi acontecer que de repente comecei a ouvir coisas diversas? A princípio não prestei atenção e desdenhei. Mas a conversa continuava. E eu escutava: sons surdos, como se as bocas estivessem tapadas por travesseiros; e, a despeito de tudo, nítidos e muito próximos. Despertei, sentei-me e passei a escutar atentamente. 

— Excelência, isso simplesmente não se faz. O senhor canta copas, eu faço o jogo, e de repente o senhor aparece com um sete de ouros. Devia ter cantado ouros antes. 

— Então, quer dizer que vamos jogar de memória? Que graça há nisso? 

— Não, Excelência, não há meio de jogar sem garantias. Não pode faltar o morto, e as cartas têm de ser dadas viradas para baixo na mesa. 

— Bem, morto por aqui não se arranja. 

Que raio de conversa mais maçante! É estranha e surpreendente. Uma voz tão forte e grave, a outra parecendo suavemente adulçorada; não acreditaria se eu mesmo não estivesse ouvindo. Ao Réquiem parece que não assisti. E, no entanto, como é que podem jogar préférence aqui, e que general é esse? De que ouvi coisas de debaixo dos túmulos não há nenhuma dúvida. Inclinei-me e li uma inscrição em um túmulo: 


“Aqui jaz o corpo do general-major Piervoiêdov... tais e tais medalhas de cavaleiro.” Hum! “Faleceu em agosto deste ano... cinquenta e sete... Descansem em paz, queridos restos mortais, até o amanhecer radiante!” 

Hum! que diabo, é um general mesmo! Na outra cova, de onde vinha a voz bajuladora, ainda não havia túmulo; havia apenas uma lápide; pelo visto era de algum novato. Pela voz, um conselheiro da corte. — Oh-oh-oh-oh! — ouviu-se uma voz bem nova a umas cinco braças do lugar do general e vinda de uma cova bem fresquinha, voz masculina e vulgar, porém atenuada pela maneira reverente e comovida. 

— Oh-oh-oh-oh! 

— Ah, ele está soluçando de novo! — ouviu-se de súbito a voz enojada e arrogante de uma dama irritada, parece que da alta sociedade. — Para mim é um castigo ficar ao lado desse vendeiro! 

— Eu não estou soluçando coisa nenhuma, e além do mais nem comi nada, isso é só por causa de minha natureza. Tudo isso, senhora, é porque os seus caprichos aqui neste lugar nunca lhe dão paz. 

— Então, por que o senhor se deitou aqui? 

— Me botaram, foram a mulher e os filhos que me botaram e não eu que me deitei. É o mistério da morte! E eu não me deitaria a seu lado por nada, por ouro nenhum; estou deitado às custas de meu próprio capital, a julgar pelo preço. Porque sempre podemos pagar por uma sepultura de terceira classe.

— Juntou dinheiro; roubando as pessoas? 

— De que jeito roubar a senhora se desde janeiro não recebemos nenhum pagamento da sua parte? Tem uma conta em seu nome na minha venda.

— Bem, isso já é uma bobagem; acho muita bobagem cobrar dívidas aqui! Vá lá em cima. Cobre da minha sobrinha; ela é a herdeira. 

— Ora essa, onde é que se vai cobrar e aonde ir agora. Nós dois chegamos ao limite, e em matéria de pecados somos iguais perante o tribunal de Deus. 

— De pecados! — arremedou a finada com desdém. 

— E não tenha o atrevimento de falar nada comigo! 

— Oh-oh-oh-oh! 

— Mas o vendeiro obedece à senhora, Excelência. 

— E por que não haveria de obedecer? 

— Sabe-se por quê, Excelência, já que reina aqui uma nova ordem. 

— Que nova ordem é essa? 

— É que nós, por assim dizer, estamos mortos, Excelência. 

— Ah, é mesmo! Mas ainda assim é ordem... 

Que obséquio! realmente um consolo! Se a coisa aqui chegou a esse ponto, o que se pode indagar no andar de cima? Que coisas estão acontecendo, sim senhor! Mas no entanto continuei a escutar, mesmo tomado de excessiva indignação.


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Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881 D724b Bobók / Fiódor Dostoiévski; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; desenhos de Oswaldo Goeldi; texto de Mikhail Bakhtin. — São Paulo: Editora 34, 2012 (1ª Edição). 96 p. (Coleção Leste)


1. Literatura russa. I. Bezerra, Paulo. II. Goeldi, Oswaldo, 1895-1961. III. Bakhtin, Mikhail, 1895-1975. IV. Título. V. Série.

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BOBÓK*

*Publicado originalmente no semanário Grajdanin (O Cidadão), nº 6, em 5 de fevereiro de 1873, quando Dostoiévski já era seu redator-chefe. Traduzido do original russo Pólnoie sobránie sotchiniénii v tridtsatí tomákh (Obras completas em trinta tomos) de Dostoiévski, tomo XXI, Leningrado, Ed. Naúka, 1980. As notas da edição russa estão assinaladas com (N. da E.); as notas do tradutor, com (N. do T.).

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Leia também:

Bobók - 1. Desta vez eu publico - Dostoiévski

Bobók - 3. Não, eu ainda gostaria de viver! - Dostoiévski

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

15.O Livro dos Abraços - O diagnóstico e a terapêutica - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


15. O Livro dos Abraços



O diagnóstico e a terapêutica


O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo. 



A noite/2 



― Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me, dispa-me.



As chamadas


A lua chama o mar e o mar chama o humilde fiapinho de água, que na busca do mar corre e corre de onde for, por mais longe que seja, e correndo cresce e avança e não há montanha que pare seu peito. O sol chama a parreira, que desejando sol se estica e sobe. O primeiro ar da manhã chama os cheiros da cidade que desperta, aroma de pão recém-dourado, aroma do café recém-moído, e os aromas do ar entram e do ar se apoderam. A noite chama as flores da dama-da-noite, e à meia-noite em ponto explodem no rio esses brancos fulgores que abrem o negror e se metem nele e o rompem e o comem.



A noite/3


Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.



A pequena morte


Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.



A noite /4 


Solto-me do abraço, saio às ruas. 

No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua. A lua tem duas noites de idade. Eu, uma.



O devorador devorado


O polvo tem os olhos do pescador que o atravessa. É de terra o homem que será comido pela terra que lhe dá de comer. O filho come a mãe e a terra come o céu cada vez que recebe a chuva de seus peitos. A flor se fecha, glutona, sobre o bico do pássaro faminto de seus méis. Não há esperado que não seja esperador nem amante que não seja boca e bocado, devorador devorado: os amantes se comem entre si de ponta a ponta, todos todinhos, todo-poderosos, todo-possuídos, sem que fique sobrando a ponta de uma orelha ou um dedo do pé.





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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:

14.O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Nova Iorque - Eduardo Galeano


16.O Livro dos Abraços - Dizem as paredes/2 - Eduardo Galeano



Hay tantas maneras de no ser vida... Mercedes

Honrar la Vida




#étempo de lutar, #étempo de resistir, sempre étempo de ouvir La Negra dentro e fora das escolas











HONRAR LA VIDA




Permanecer y transcurrir
no es perdurar, no es existir,
ni honrar la vida!
Hay tantas maneras de no ser
tanta conciencia sin saber,
adormecida...
Merecer la vida, no es callar y consentir
tantas injusticias repetidas...
Es una virtud, es dignidad
y es la actitud de identidad
más difinida!
Eso de durar y transcurrir
no nos dá derecho a presumir,
porque no es lo mismo que vivir
honrar la vida!


Permanecer y transcurrir
no siempre quiere sugerir
honrar la vida!
Hay tanta pequeña vanidad
en nuestra tonta humanidad
enceguecida.
Merecer la vida es erguirse vertical
más allá del mal, de las caídas...
Es igual que darle a la verdad
y a nuestra propia libertad
la bienvenida!
Eso de durar y transcurrir
no nos da derecho a presumir
porque no es lo mismo que vivir
honrar la vida!




terça-feira, 27 de setembro de 2016

histórias de avoinha: quero tirar...

Ensaio 89B – 2ª edição 1ª reimpressão

mulheres descalças
quero tirar...



baitasar



não gosto de dormir. então, não durmo. e se durmo, acordo assustada. não lembro das formiguinhas nem do formigueiro. estou cansada de comandar tudo sozinha. desacordo com a assombração do que lembro dormindo e não lembro acordada. esse serviço de faxina nas casas das madames é só uma repetição das mesmas coisas, das mesmas sujeiras

não somos desunidas, somos desconhecidas uma das outras, mas nos reconhecemos nas ruas, o mesmo olhar. a mesma pressa. o mesmo silêncio. a repetição das mesmas palavras duras, é isso, esse formigueiro de mulheres pobres que não têm respostas, foram ordenadas servas do senhor dos sentidos da vida, um macho augusto e egocêntrico que não acredita nas mulheres, menos ainda, que pobres precisem de respostas

alisava o polegar e o indicador da mão esquerda com os fios do cabelo crespo, delicadamente da raiz pras pontas. o aroma da água sanitária nas mãos subia nos furos do nariz. estava pronta. acenava com a mão direita pras meninas que chegavam ou partiam montadas em suas rotinas de limpeza. assaltos às suas vidas de mulheres. inclinava o queixo levemente. mulheres e meninas misturadas, lutando do seu jeito, o nosso jeito

abri minha casa pras meninas depois que voltei das terras dos capões e corvos. não foi difícil encontrar meninas dispostas. fugiram do grupó escolar pra buscar uma vida melhor. todas lindas. villa de fartura e beleza, mas sem regras para fazer o preço da quantia justa, Meninas, isso é apenas negócio!

Milagres, você parece um homem de negócios.

Aprendi como pensa um homem de coisas e troços, dono de troféus e gente de carne e osso. Tudo se aprende quando se quer. Aprender ser bom é mais difícil, eles nascem maus e egocêntricos. Os homens deveriam aprender como as mulheres pensam. Mas não sou um homem de negócios, sou uma mulher de negócios.

as meninas apenas sorriam

E as bruxas?

O que é que tem?

E se eles aprenderem como ser uma bruxa?

Eu não quero aprender isso... e não quero que me aprendam. Não sou uma lição da professora, aliás, não vou à escola, nos abandonamos faz muito tempo.

Nem eu.

as borbulhas daqueles murmúrios esparramados pela casa, joana, a faxineira, teresinha, a cozinheira, terezinha, a passadeira, amélia, a doceira, isaura, a costureira, camélia, a cozinheira, todas ali, outras por chegar, prontas para servirem seus serviços. todas rimos alto, bem alto, quanto mais alto mais lágrimas escondemos, as gargalhadas se chocavam no ar, chocoalhando nossos risos, Milagres! Tu conta histórias como um homem, fala como um homem e dá ordens como um homem.

Gosto dos homens.

Hummm...

Gosto das mulheres.

Óóóó...

Adoro domesticar gatos selavagens, sentia o silêncio das meninas saboreando cada palavra, quanto mais gigante maior o desafio. Mal sabem, toda aquela dureza não está a serviço deles, existe pra nosso proveito e gula. Adoro deixar o felino gatoso, um animalzinho de luxo e recreação.

Uau...

Enquanto não aprendem são apenas um felino gatoso, um animalzinho de luxo e recreação.

Viu? Tu pensas como os homens.

as meninas são divertidas, adoro provocá-las com outros sonhos além do pesadelo reservado às mulheres, Angorá siamês bengala persa, quero cruzar com todos até encontrar a mutação doméstica, o aprimoramento do físico, dos costumes e do desempenho, um vira-lata que ronrona satisfeito, adornado com laço de fitas, lavado com xampu cheiroso penteado escovado.

Uiuiui!

Milagres... Milagres...

a vida dessas meninas já é bastante dura recebendo ordens desaforos exigências queixas, tudo sob a mais absoluta desconfiança. entramos nas casas porque somos chamadas, mas não somos bem-vindas, apenas necessárias, Enlouqueço escorregando os dedos nas listas pardas e peludas enquanto eu sugiro o que quero fazer. As raças com pelo ralo me provocam arrepios, felinos me excitam, nenhum precisa usar guia presa no pescoço; fogem, é verdade, eixo que fujam, eles voltam... sempre voltam: famintos magros cansados jogados pelos cantos.

a villa cresce. a freguesia aumenta. não saio mais daqui. espero que tudo continue dando certo, mas nada garante a continuação de nada. é uma carga pesada cuidar das meninas. o tempo está passando. logo, serei apenas mais outra mulher envelhecida frouxa feia enfiando os dedos nos pelos de outro felino. qual o sentido disso tudo? esse trabalho ocupou os melhores anos da minha vida, claro que me ajudou muito, me afastou dos pensamentos ruins enquanto limpava as sujeiras das casas fidalgas da villa. nos meus melhores tempos fiquei conhecida como a nêga canhota, só usava a esquerda. o meu nome ficou esquecido. quando procuravam meus serviços gritavam, Alguém me chama a Nêga Canhota, por favor!

engraçado como a direita e a esquerda são diferentes. eu me pergunto como pode ser assim, as duas nasceram no mesmo corpo. a canhota se mexe com alegria, a direita com disciplina; a canhota faz da preguiça uma festa da rebeldia, a direita faz da preguiça a suprema aflição. acostumei com o uso da canhota. engraçado, a direita procura adestrar a canhota com isso de não fazer e ter, tomou gosto de mandar. não comparo as duas, são diferentes. confio mais na canhota, mas com reservas, por vezes, a canhota gosta de dar beliscões em nome da boa educação. é quando ela perde o controle em nome da vitória sobre a outra

caso pudesse falar, a direita, por certo, iria argumentar que não é produtivo passar a vida fazendo perguntas que não sabemos responder, O sentido da vida? Conhecimento inútil. A canhota precisa ter curiosidade sobre como melhorar no seu trabalho, ele é a energia necessária à vida. O caminho para o sucesso é longo, é preciso merecer.

A destra parece que tem mais direito sobre a boa vida.

depois de algum tempo, percebemos que as duas estão a mesma distância uma da outra, mas não se entendem. a canhota continua interferindo e estimulando novas ideias de ser melhor com alegria e paixão de aprender, È possível fazer diferente, você precisa tentar, não se espanta nem busca privilégios, sabe que parada irá murchar até não conseguir levantar a si mesma. não tem medo do próprio corpo, gosta de me tocar. é muito atrevida

a direita tem bom uso pro sinal da cruz, acusa com o mesmo dedo duro que enfia no nariz. ela não gosta que se diga, mas come meleca, aprendeu que não se deve desperdiçar nada. nem o balde com água ela carrega, gesticula que isso não é sua tarefa, Estou me guardando pra tarefas maiores.

não sei o que seria de mim sem a canhota, acho que passaria meus dias com a direita fingindo conforto, cuidado e gentileza

percebo meu corpo inclinando na direção da canhota, também pudera, o descanso e o divertimento chega pela canhota. prazer e disciplina não são opostos, não se rejeitam, os dois são um compromisso com a vida. nessa trilha o que importa é a nossa paixão de aprender, pois que nos pegue rindo e não chorando. é isso, a vida é uma montanha que precisa ser escalada, mas não precisamos subir marchando com um saco de pedras nas costas e outro nas mãos. podemos surfar suas ondas gigantes ou afogar sentados na praia

depois da morte do general calçacurta, derrame, perdeu os movimentos do lado direito, foi demais pra ele, a nossa vida parece que piorou, mas não me engano com essas aparências. quando do passamento do calçacurta passamos a viver um tempo de pequenas confusões na villa. coisa normal depois de tantos impedimentos ditados pela força. muitos fingiam contentamento, outros tristeza, mas esperavam o novo cão de guarda. não custou muito e chegaram três: um almirante, um brigadeiro e um general

não existe só uma pergunta nem apenas uma resposta. não saber, não é o mesmo que saber errado, não escutar não é o mesmo que não querer escutar, mas os olhos não mentem. vejo nos olhos das pessoas tanto medo e indiferença que paro de respirar fascinada. é como me desafiar com a morte, não hesito, assim, quando ela vier estarei preparada

gosto de me provocar a vida com a vida, assim, quando me vier estarei preparada

uso a direita e faço o sinal da cruz, ainda não estou pronta pra esse encontro, na testa o pai, no peito o filho, na canhota o espírito, na direita o santo, o amém com os dedos nos lábios, como um beijo vaporoso que deseja mais o medo que o desejo, algo que precisamos respeitar

Adoro quando um homem me convence e pensa que me acalma.

Milagres... Milagres...

Uau!

vou repetir: gosto do café da manhã com as meninas, é quando todas nos encontramos antes do dia acordar. depois fica impossível, as correrias dos nossos dias não permitem

Por que tu não fez nenhum filho, Milagres?

uma pergunta com aprumo direto, não temos o costume de dizer ou perguntar assim, na maioria das vezes, somos evasivas e sorrimos, o nosso silêncio quer dizer tudo bem, mesmo que não esteja tudo bem

Vocês são o meu tesouro, assim, juntas.

uma resposta que não responde, não respinga nem perto da verdade. continuam me olhando com aquela intimidade das manhãs. fechei os olhos por prudência. essas meninas aprenderam ler o coração nos olhos

Milagres...

Nunca procurei saber, respondi, prometi segredo para mim mesma. Não quis viver essa tentação assustadora do arrependimento. Agora que o caminho está menor o medo está maior, mas não há mais tempo. É isso.

olhavam como se não estivessem olhando, exigiam que eu abandonasse minha intimidade secreta me revelando

Minhas meninas, caso fosse fazer um filho escolheria fazer sem saber que estaria fazendo, correndo o risco, mas nunca me senti à vontade nem em paz para tal risco. Não acho que um filho iria mudar isso.

Iria mudar, Milagres.

Não sei...

Mudaria tudo.

a cozinha era o único lugar do casarão em que todas as manhãs estávamos sentadas à mesa, trazendo confidências, querendo conselhos, escutando, tagarelando, juntando os pedaços, sendo surpreendidas

Eu, no caso de querer fazer filho, escolheria a época das chuvas.

Chuvas, Joana?

Sim, Terezinha. Minha família toda é do interior, na época das chuvas plantamos milho. Tudo cresce bem.

A mocinha gosta da chuva...

Quando chove fico feliz. Quero fazer um filho quando estiver feliz.

E dá pra escolher?

Claro, Isaura!

as meninas ficaram em silêncio, esperavam uma fórmula fácil para aguentar todos os dias perdidos, as queixas, reclamações, críticas, xingamentos, acusações, por fazer tanto filho; um conselho pra suportar chegar em casa, depois desta tortura, sem que exista alguma recompensa pra resistir

É preciso aprender a controlar o descontrole.

Bem assim... na hora de fazer é bom, mas depois...

todas nos voltamos silenciosas e espantadas pra camélia, ela estava em pé encostada na porta, uma caneca de café preto sem açúcar e forte, na canhota, pra cada gole que tomava esperávamos algum trejeito de desprazer, e nada, nem prazer

... o que foi? Eu disse alguma besteira?

Camélia...

O que foi?

Você tem seis...

outro gole, parecia buscar ânimo na caneca que mergulhava pra dentro dela mesma, nenhum desejo ou humor

E daí? Eu sou descontrolada. Não consigo esfriar nem fazer fingimento que não quero quando eu quero.

E o jogo da sobrevivência?

Não sei fazer esse joguinho. Quando estou com fome eu como. E quando não tô com cobiça, mas vale a pena... eu dô.

que sorte dela saber viver assim, pensei, entre partidas e chegadas, cada filho um pai, cada pai um filho, com você ou com ele não dá, mas sem vocês é impossível, e segue a vida. outro gole, e nada

Milagres...

O que foi Isaura?

Eu quero abrir a minha casa, ficamos em silêncio enquanto ela levantou e foi até a pia lavar sua caneca, sem ofensas, sem brigas. Quero abrir meu próprio negócio.

Mas que grande sonho...

Teresinha, não é só uma casa de faxineiras, demorava lustrando a caneca com o pano de pratos, eu sei que vai ser difícil encontrar meninas prontas pra essa vida...

Nem tanto, Isaura. É só ir nos grupos escolares da Villa, as meninas se oferecem. Querem uma chance pra ganhar o seu dinheirinho.

Somos um negócio barato.

Eu sei disso, Milagres. Mas quem sabe, duas casas recebendo os pedidos de faxineiras da Villa...

Essa Villa tem fartura, beleza e nenhuma regra pra nos proteger. Fazem o uso que querem e pagam o que querem.

Eu quero trabalho, não preciso de regras!

Isaura, somos exploradas.

E daí, preciso desse dinheirinho.

Concordo, isso parece nunca vai mudar. Nem tudo que sonhamos dá certo. O caminho é comprido e é preciso gostar da luta.

quando terminei, isaura estava de costas, pendurada no armário guardando sua caneca, não esperou ficar de frente pra todas nós, já tinha aprendido esconder o coração, Sei que te chamam Milagres, a mulher-homem, não gostei daquele tom assustado na voz dela, a aprendiz parecia embrulhada com as palavras, esperei ela continuar, eu não penso como um homem, não quero ser um homem, não quero contar histórias como um homem. gosto de ser mulher, não preciso ser homem, mas quero respeito e autoridade.

Preciso de um cigarro, disse para quebrar o silêcio da casa toda

Cigarro, Milagres?

Cigarro não, Milagres...

Vão à merda! Quero um cigarro, calem suas bocas e me deem um cigarro!

uma caneca de café e um cigarro, coisas simples que acalmam

O que a mocinha quer fazer, perguntei direto pra isaura, nunca deixei de ouvir o interesse das interessadas, não acho justo tomar decisões pelas meninas fingindo que não tinham nenhuma influência no ânimo do casarão

Quero tirar...



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Florbela Espanca - A Mensageira das Violetas 06

Florbela Espanca



06 - A Mensageira das Violetas





DOCE CERTEZA


Por essa vida fora hás-de adorar 
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca, 
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d´ouro fulgindo em muita boca! 

Hás de guardar em cofre perfumado 
Cabelos d´ouro e risos de mulher, 
Muito beijo d´amor apaixonado; 
E não te lembrarás de mim sequer... 

Hás de tecer uns sonhos delicados... 
Hão de por muitos olhos magoados, 
Os teus olhos de luz andar imersos!... 

Mas nunca encontrarás p´la vida fora, 
Amor assim como este amor que chora 
Neste beijo d´amor que são meus versos!...




VERSOS


Versos! Versos! Sei lá o que são versos... 
Pedaços de sorriso, branca espuma, 
Gargalhadas de luz, cantos dispersos, 
Ou pétalas que caem uma a uma... 

Versos!... Sei lá! Um verso é o teu olhar, 
Um verso é o teu sorriso e os de Dante 
Eram o teu amor a soluçar 
Aos pés da sua estremecida amante! 

Meus versos!... Sei eu lá também que são... 
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração 
Partido em mil pedaços são talvez... 

Versos! Versos! Sei lá o que são versos... 
Meus soluços de dor que andam dispersos 
Por este grande amor em que não crês...





À TUA PORTA HÁ UM PINHEIRO MANSO


À tua porta há um pinheiro manso 
De cabeça pendida, a meditar, 
Amor! Sou eu, talvez, a contemplar 
Os doces sete palmos do descanso. 

Sou eu que para ti atiro e lanço, 
Como um grito, meus ramos pelo ar, 
Sou eu que estendo os braços a chamar 
Meu sonho que se esvai e não alcanço. 

Eu que do sol filtro os ruivos brilhos 
Sobre as louras cabeças dos teus filhos 
Quando o meio-dia tomba sobre a serra... 

E, à noite, a sua voz dolente e vaga 
É o soluço da minha alma em chaga: 
Raiz morta de sede sob a terra!



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A Mensageira das Violetas, de Florbela Espanca

Fonte: ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket). 

Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. 

Texto-base digitalizado por: 
Luciana Peixoto Silva – Divinópolis/MG
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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / V

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/V





Mal deu tempo para voltar a depor o infeliz documento sobre a mesa. 

O professor Lidenbrock parecia profundamente absorto. A ideia fixa não lhe dava um único momento de descanso. Era evidente que havia perscrutado e analisado o caso, que lançara mão de todos os recursos de sua imaginação durante o passeio e que vinha aplicar alguma nova combinação.

De fato, sentou-se em sua poltrona e, pena na mão, começou a estabelecer fórmulas que pareciam um cálculo algébrico.

Eu seguia com os olhos sua mão fremente; não perdia um único movimento seu.

Surgiria algum resultado inesperado? Eu tremia sem motivo, pois, como já encontrara a verdadeira combinação, qualquer outra pesquisa era forçosamente vã.

Meu tio trabalhou sem parar por três horas, sem erguer a cabeça, apagando, rasurando, recomeçando mil vezes a tarefa.

Eu bem sabia que, se conseguisse organizar as letras de acordo com todas as posições relativas que podiam ocupar, encontraria a frase.

Mas também sabia que apenas vinte letras podem formar dois quinquilhões quatrocentos e trinta e dois quatrilhões novecentos e dois trilhões oito bilhões cento e setenta e seis milhões seiscentas e quarenta mil combinações. Ora, havia cento e trinta e duas letras na frase, e essas cento e trinta e duas letras davam um número de frases diferentes composto de cento e trinta e três números pelo menos, número quase impossível de enunciar e que escapa a qualquer avaliação.

Fiquei mais tranqüilo com esse meio heroico de resolver o problema. O tempo passou. A noite caiu. Os ruídos da rua diminuíram. Ainda debruçado em sua tarefa, meu tio nada viu, nem mesmo a boa Marthe, que entreabriu a porta; nada ouviu, nem mesmo a voz da digna criada, que disse:

- O senhor não vai jantar hoje?

Marthe teve que ir embora sem resposta. Quanto a mim, após ter resistido por algum tempo, fui tomado por um sono invencível e adormeci num canto do canapé, enquanto o meu tio Lidenbrock continuava a calcular e rasurar. Quando acordei no dia seguinte, o trabalhador incansável continuava em suas pesquisas. Olhos vermelhos, rosto lívido, cabelos despenteados por suas mãos febris, maçãs do rosto avermelhadas, indicavam sua terrível luta contra o impossível e o cansaço mental, contra o esforço cerebral das últimas horas. Fiquei realmente com pena dele. Embora eu achasse que tinha o direito de censurá-lo, começava a sentir uma certa emoção.

O pobre homem estava tão possuído por sua ideia que se esquecia de encolerizar-se. Todas as suas forças vitais encontravam-se num único ponto, e, como não escoavam por seu exutório normal, era de temer-se que sua tensão fizesse com que explodisse de uma hora para outra.

Com um gesto, com uma única palavra poderia desapertar o anel de ferro que lhe esmagava o crânio! Mas não me mexi.

E, no entanto, eu tinha um bom coração. Por que ficava mudo naquelas circunstâncias? No próprio interesse de meu tio.

"Não, não", repetia, "não falarei". Vai querer ir até lá, conheço-o bem, nada o deterá. Tem uma imaginação vulcânica e, para fazer o que os outros geólogos não fizeram, arriscaria sua vida. Não falarei nada. Guardarei esse segredo que me foi revelado por acaso! Revelá-lo seria matar o professor Lidenbrock! Ele que adivinhe, se conseguir. Não quero carregar a culpa de tê-lo conduzido à perdição!'' Resolvido isso, cruzei os braços e esperei. Mas não contara com um incidente que aconteceu algumas horas depois.

Quando a boa Marthe quis sair de casa para ir ao mercado, encontrou a porta fechada. A chave sumira da fechadura. Quem a tirara? É claro que meu tio, quando voltara, na véspera, de sua excursão apressada. Fizera de propósito ou fora distração? Queria submeter-nos aos rigores da fome? Achei que era demais. Imaginem! Marthe e eu, vítimas de uma situação com a qual nada tínhamos a ver!

Com certeza, e lembrei-me de um precedente de dar medo. De fato, há alguns anos, na época em que meu tio trabalhava em sua grande classificação mineralógica, ficou quarenta e oito horas sem comer, e toda a casa teve de se conformar à sua dieta científica. Tive câimbras no estômago bem pouco recreativas para um moço bastante voraz por natureza.

Ora, constatei que não iríamos ter café da manhã, assim como não tivéramos jantar. Resolvi, contudo, ser heroico e não ceder às exigências da fome. Marthe levava o caso muito a sério e estava desolada, pobre mulher! Já eu estava mais preocupado com a impossibilidade de sair de casa, e com razão. Estou certo de que todos me compreenderão.

Por volta do meio-dia, comecei realmente a sentir fome. Muito inocentemente, Marthe devorara na véspera as provisões da despensa; não havia mais nada em casa. Assim mesmo, resisti. Era uma espécie de questão de honra.

Deram duas horas. Aquilo começava a tornar-se ridículo e até intolerável. Esbugalhava os olhos. Começava a achar que havia exagerado na importância do documento; que meu tio não acreditaria em minhas deduções, que só veria nelas uma simples mistificação, que, na pior das hipóteses, conseguiria detê-lo contra sua vontade se quisesse arriscar a aventura e que, finalmente, ele mesmo poderia descobrir a chave da "cifra", o que tornaria minha abstinência completamente inútil.

Esses motivos, que eu teria rejeitado na véspera com indignação, pareceram-me excelentes; achei até completamente absurdo ter esperado por tanto tempo e decidi contar tudo.

Procurava, portanto, uma forma de entrar no assunto que não fosse muito brusca, quando o professor levantou-se, enfiou o chapéu e preparou-se para sair.

O quê! Sair de casa e deixar-nos trancados. Nunca!

- Meu tio! - chamei.

Não pareceu ter me ouvido.

- Meu tio Lidenbrock! - repeti, falando mais alto.

- Hum? - resmungou como um homem que acaba de despertar.

- Então, e a chave?

- Que chave? A chave da porta?

- Não - exclamei -, a chave do documento!

O professor encarou-me por cima dos óculos; sem dúvida notara algo de insólito na minha fisionomia, pois agarrou meu braço e, sem conseguir falar, interrogou-me com o olhar. No entanto, nunca uma pergunta foi formulada mais claramente. Concordei com a cabeça.

Ele sacudiu a sua mão com uma espécie de piedade, como se estivesse falando com um louco.

Fiz um gesto ainda mais afirmativo.



Seus olhos brilharam; sua mão tornou-se ameaçadora.

Essa conversa muda naquelas circunstâncias interessaria o espectador mais indiferente. E realmente começava a achar que não ousaria falar, pois temia que meu tio me sufocasse com seus primeiros abraços de alegria. Mas ele estava tão ansioso que tive de responder.

- Sim, essa chave... o acaso!..

- O que você está dizendo? - exclamou com uma emoção indescritível.

- Veja - eu disse, apresentando-lhe a folha de papel na qual havia escrito. - Leia.

- Mas isso não quer dizer nada! - respondeu amarrotando a folha.

- Não quer dizer nada se começarmos a ler pelo começo, mas lendo a partir do fim...

Mal havia terminado a frase, e o professor já dava um grito, mais do que um grito, um verdadeiro rugido! Acabara de ter a revelação. Estava transfigurado.

- Ah! Engenhoso Saknussemm! - exclamou. - Então você escreveu a frase ao contrário?

E precipitando-se para a folha de papel, olhar turvo, voz emocionada, leu o documento inteiro, seguindo da última letra até a primeira. Eram esses os termos da mensagem: 

In Sneffeis Yoculis craterem kem delibat umbra Scartaris Julii intra calendas descende, audas viator, et terrestre centrum attinges. Kod feci. Arne Saknussemm.

em mau latim pode ser traduzido dessa maneira:

Desça à cratera de Yocul do Sneffels, que a sombra do Scartaris vem acariciar antes das calendas de julho, viajante audacioso, e chegarás ao centro da Terra. Foi o que fiz. Arne Saknussemm.

Ao final da leitura, meu tio pulou como se tivesse tocado sem querer numa garrafa de Leyde. Estava magnífico em sua audácia, alegria e convicção. Ia e vinha; pegava a cabeça com as duas mãos; tirava as cadeiras do lugar; empilhava livros; fazia malabarismos com seus preciosos geodos, o que parecia inacreditável; batia com o punho aqui, dava um tapa acolá. Finalmente acalmou-se e, como homem esgotado por um grande desperdício de energia, voltou a cair em sua poltrona.

- Que horas são, afinal? - perguntou após alguns minutos de silêncio.

- Três horas - respondi.

- Que coisa! Digeri o almoço depressa demais. Estou morrendo de fome. Vamos comer. Depois...

- Depois?

- Vá fazer minha mala.

- O quê? - exclamei.

- E a sua também! - respondeu o implacável professor, entrando na sala de jantar.



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domingo, 25 de setembro de 2016

Edgar Allan Poe - O Gato Preto - 08

Edgar Allan Poe




#conto de terror, mistério e morte



08. O Gato Preto



Loucura seria falar de meus próprios pensamentos. Desfalecendo, recuei até a parede oposta. Durante um minuto, o grupo que se achava na escada ficou imóvel, no paroxismo do medo e do pavor. Logo depois, uma dúzia de braços robustos se atarefava em desmantelar a parede. Ela caiu inteiriça. O cadáver, já grandemente decomposto, e manchado de coágulos de sangue, erguia-se, ereto, aos olhos dos espectadores. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha escancarada, o olho solitário chispante, estava assentado o horrendo animal cuja astúcia me induzira ao crime e cuja voz delatora me havia apontado ao carrasco. 

Eu havia emparedado o monstro no túmulo!





Fim

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Série: Jazz Para Sempre 01

John Coltrane



Quando você não sabe o que dizer... escute


Equinox










sábado, 24 de setembro de 2016

22. Pedro Páramo: El padre Rentería se acordaría muchos años después - Juan Rulfo

Juan Rulfo




22. Pedro Páramo: El padre Rentería se acordaría muchos años después





El padre Rentería se acordaría muchos años después de la noche en que la dureza de su cama lo tuvo despierto y después lo obligó a salir. Fue la noche en que murió Miguel Páramo. 

Recorrió las calles solitarias de Comala, espantando con sus pasos a los perros que husmeaban en las basuras. Llegó hasta el río y allí se entretuvo mirando en los remansos el reflejo de las estrellas que se estaban cayendo del cielo. Duró varias horas luchando con sus pensamientos, tirándolos al agua negra del río. 

«El asunto comenzó -pensó- cuando Pedro Páramo, de cosa baja que era, se alzó a mayor. Fue creciendo como una mala yerba. Lo malo de esto es que todo lo obtuvo de mí: "Me acuso padre que ayer dormí con Pedro Páramo." "Me acuso padre que tuve un hijo de Pedro Páramo." "De que le presté mi hija a Pedro Páramo". Siempre esperé que él viniera a acusarse de algo; pero nunca lo hizo. Y después estiró los brazos de su maldad con ese hijo que tuvo. Al que él reconoció, sólo Dios sabe por qué. Lo que si sé es que yo puse en sus manos ese instrumento.» 

Tenía muy presente el día que se lo había llevado, apenas nacido. 

Le había dicho: 

-Don Pedro, la mamá murió al alumbrarlo. Dijo que era de usted. Aquí lo tiene. 

Y él ni lo dudó, solamente le dijo: 

-¿Por qué no se queda con él, padre? Hágalo cura. 

-Con la sangre que lleva dentro no quiero tener esa responsabilidad. 

-¿De verdad cree usted que tengo mala sangre? 

-Realmente sí, don Pedro. 

-Le probaré que no es cierto. Déjemelo aquí. Sobra quien se encargue de cuidarlo. 

-En eso pensé, precisamente. Al menos con usted no le faltará el sustento. 

El muchachito se retorcía, pequeño como era, como una víbora. -¡Damiana! Encárgate de esa cosa. Es mi hijo. 

Después había abierto la botella: 

-Por la difunta y por usted beberé este trago. 

-¿Y por él? 

-Por él también, ¿por qué no? 

Llenó otra copa más y los dos bebieron por el porvenir de aquella criatura. 

Así fue. 

Comenzaron a pasar las carretas rumbo a la Media Luna. Él se agachó, escondiéndose en el galápago que bordeaba el río. «¿De quién te escondes?», se preguntó a sí mismo. 

-¡Adiós, padre! -oyó que le decían. 

Se alzó de la tierra y contestó: 

-¡Adiós! Que el Señor te bendiga. 

Estaban apagándose las luces del pueblo. El río llenó su agua de colores luminosos. 

-Padre, ¿ya dieron el alba? -preguntó otro de los carreteros. 

-Debe ser mucho después del alba -respondió él. Y caminó en sentido contrario al de ellos, con intenciones de no detenerse. 

-¿Adónde tan temprano, padre? 

-¿Dónde está el moribundo, padre? 

-¿Ha muerto alguien en Contla, padre? 

Hubiera querido responderles: «Yo. Yo soy el muerto». Pero se conformó con sonreír. 

Al salir del pueblo precipitó sus pasos. 

Regresó entrada la mañana. 

-¿Dónde estuvo usted, tío? -le preguntó Ana su sobrina-. Vinieron muchas mujeres a buscarlo. Querían confesarse por ser mañana viernes primero. 

-Que regresen a la noche. 

Se quedó un rato quieto, sentado en una banca del pasillo, lleno de fatiga. 

-¡Qué fresco está el aire!, ¿no, Ana? 

-Hace calor, tío. 

-Yo no lo siento.

No quería pensar para nada que había estado en Contla, donde hizo confesión general con el señor cura, y que éste, a pesar de sus ruegos, le había negado la absolución: 

-Ese hombre de quien no quieres mencionar su nombre ha despedazado tu Iglesia y tú se lo has consentido. ¿Qué se puede esperar ya de ti, padre? ¿Qué has hecho de la fuerza de Dios? Quiero convencerme de que eres bueno y de que allí recibes la estimación de todos; pero no basta ser bueno. El pecado no es bueno. Y para acabar con él, hay que ser duro y despiadado. Quiero creer que todos siguen siendo creyentes; pero no eres tú quien mantiene su fe; lo hacen por superstición y por miedo. Quiero aún más estar contigo en la pobreza en que vives y en el trabajo y cuidados que libras todos los días en tu cumplimiento. Sé lo difícil que es nuestra tarea en estos pobres pueblos donde nos tienen relegados; pero eso mismo me da derecho a decirte que no hay que entregar nuestro servicio a unos cuantos, que te darán un poco a cambio de tu alma, y con tu alma en manos de ellos ¿qué podrás hacer para ser mejor que aquellos que son mejores que tú? No, padre, mis manos no son lo suficientemente limpias para darte la absolución. Tendrás que buscarla en otro lugar. 

-¿Quiere usted decir, señor cura, que tengo que ir a buscar la confesión a otra parte? 

-Tienes que ir. No puedes seguir consagrando a los demás si tú mismo estás en pecado. 

-¿Y si suspenden mis ministerios? 

-No creo que lo hagan, aunque tal vez lo merezcas. Quedará a juicio de ellos. 

-¿No podría usted...? Provisionalmente, digamos... Necesito dar los santos óleos... la comunión. Mueren tantos en mi pueblo, señor cura. 

-Padre, deja que a los muertos los juzgue Dios. 

-¿Entonces, no? 

Y el señor cura de Contla había dicho que no. 

Después pasearon los dos por los corredores del curato, sombreados de azaleas. Se sentaron bajo una enramada donde maduraban las uvas. 

-Son ácidas, padre -se adelantó el señor cura a la pregunta que le iba a hacer-. Vivimos en una tierra en que todo se da, gracias a la providencia; pero todo se da con acidez. Estamos condenados a eso. 

-Tiene usted razón, señor cura. Allá en Cotnala he intentado sembrar uvas. No se dan. Sólo crecen arrayanes y naranjos; naranjos agrios y arrayanes agrios. A mí se me ha olvidado el sabor de las cosas dulces. ¿Recuerda usted las guayabas de China que teníamos en el seminario? Los duraznos, las mandarinas aquellas que con sólo apretarlas soltaban la cáscara. Yo traje aquí algunas semillas. Pocas; apenas una bolsita... después pensé que hubiera sido mejor dejarlas allá donde maduraran, ya que aquí las traje a morir. 

-Y sin embargo, padre, dicen que las tierras de Comala son buenas. Es lástima que estén en manos de un solo hombre. ¿Es Pedro Páramo aún el dueño, no? 

-Así es la voluntad de Dios. 

-No creo que en este caso intervenga la voluntad de Dios. ¿No lo crees tú así, padre? 

-A veces lo he dudado; pero allí lo reconocen. 

-¿Y entre ésos estás tú? 

-Yo soy un pobre hombre dispuesto a humillarse, mientras sienta el impulso de hacerlo. 

Luego se habían despedido. Él tomándole las manos y besándoselas. Con todo, ahora aquí, vuelto a la realidad, no quería volver a pensar más en esa mañana de Contla. 

Se levantó y fue hacia la puerta.

-¿Adónde va usted, tío? 

Su sobrina Ana, siempre presente, siempre junto a él, como si buscara su sombra para defenderse de la vida. 

-Voy a ir un rato a caminar, Ana. A ver si así reviento. 

-¿Se siente mal? 

-Mal no, Ana. Malo. Un hombre malo. Eso siento que soy. 

Fue hasta la Media Luna y dio el pésame a Pedro Páramo. Volvió a oír las disculpas por las inculpaciones que le habían hecho a su hijo. Lo dejó hablar. Al fin ya nada tenía importancia. En cambio, rechazó la invitación a comer con él: 

-No puedo, don Pedro, tengo que estar temprano en la iglesia porque me espera un montón de mujeres junto al confesionario. Otra vez será. 

Se vino al paso, y cuando atardecía entró directamente en la iglesia, tal como iba, lleno de polvo y de miseria. Se sentó a confesar. 

La primera que se acercó fue la vieja Dorotea, quien siempre estaba allí esperando a que se abrieran las puertas de la iglesia. 

Sintió que olía a alcohol. 

-¿Qué, ya te emborrachas? ¿Desde cuándo? 

-Es que estuve en el velorio de Miguelito, padre. Y se me pasaron las canelas. Me dieron de beber tanto, que hasta me volví payasa. 

-Nunca has sido otra cosa, Dorotea. 

-Pero ahora traigo pecados, padre. Y de sobra. 

En varias ocasiones él le había dicho: «No te confieses, Dorotea, nada más vienes a quitarme el tiempo. Tú ya no puedes cometer ningún pecado, aunque te lo propongas. Déjale el campo a los demás». 

-Ahora sí, padre. Es verdad. 

-Di. 

-Ya que no puedo causarle ningún perjuicio, le diré que era yo la que le conseguía muchachas al difunto Miguelito Páramo. 

El padre Rentería, que pensaba darse campo para pensar, pareció salir de sus sueños y preguntó casi por costumbre: 

-¿Desde cuándo? 

-Desde que él fue hombrecito. Desde que le agarró el chincual. -Vuélveme a repetir lo que dijiste, Dorotea. 

-Pos que yo era la que conchavaba las muchachas a Miguelito. -¿Se las llevabas? 

Algunas veces, sí. En otras nomás se las apalabraba. Y con otras nomás le daba el norte. Usted sabe: la hora en que estaban solas y en que él podía agarrarlas descuidadas. 

-¿Fueron muchas? 

No quería decir eso: pero le salió la pregunta por costumbre. 

-Ya hasta perdí la cuenta. Fueron retemuchas. 

-¿Qué quieres que haga contigo, Dorotea? Júzgate tú misma. Ve si tú puedes perdonarte. 

-Yo no, padre. Pero usted sí puede. Por eso vengo a verlo. 

-¿Cuántas veces viniste aquí a pedirme que te mandara al cielo cuando murieras? ¿Querías ver si allá encontrabas a tu hijo, no, Dorotea? Pues bien, no podrás ir ya más al cielo. Pero que Dios te perdone. 

-Gracias, padre.

-Sí. Yo también te perdono en nombre de él. Puedes irte. 

-¿No me deja ninguna penitencia? 

-No la necesitas, Dorotea. 

-Gracias, padre. 

-Ve con Dios. 

Tocó con los nudillos la ventanilla del confesionario para llamar a otra de aquellas mujeres. Y mientras oía el Yo pecador su cabeza se dobló como si no pudiera sostenerse en alto. Luego vino aquel mareo, aquella confusión, el irse diluyendo como en agua espesa, y el girar de luces; la luz entera del día que se desbarataba haciéndose añicos; y ese sabor a sangre en la lengua. El Yo pecador se oía más fuerte, repetido, y después terminaban: «por los siglos de los siglos, amén», «por los siglos de los siglos, amén», «por los siglos...». 

-Ya calla -dijo-. ¿Cuánto hace que no te confiesas? 

-Dos días, padre. 

Allí estaba otra vez. Como si lo rodeara la desventura. «¿Qué haces aquí? -pensó-. Descansa. Vete a descansar. Estás muy cansado.» 

Se levantó del confesionario y se fue derecho a la sacristía. Sin volver la cabeza dijo a aquella gente que lo estaba esperando: 

-Todos los que se sientan sin pecado, pueden comulgar mañana. 

Detrás de él, sólo se oyó un murmullo.


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O PADRE RENTERÍA iria se lembrar muitos anos depois da noite em que a dureza de sua cama o manteve acordado e depois obrigou-o a sair. Foi a noite em que morreu Miguel Páramo. 

Percorreu as ruas solitárias de Comala, espantando com seus passos os cães que fuçavam o lixo. Chegou até o rio e ali se entreteve olhando nos remansos o reflexo das estrelas que estavam caindo do céu. Levou várias horas lutando com seus pensamentos, jogando-os na água negra do rio. 

“O assunto começou” pensou “quando Pedro Páramo, de coisa baixa que era, alçou-se a maior. Foi crescendo feito praga. O ruim disso é que obteve tudo de mim: ‘Confesso, padre, que ontem dormi com Pedro Páramo.’ ‘Confesso, padre, que tive um filho de Pedro Páramo.’ ‘Que emprestei minha filha a Pedro Páramo.’ Sempre esperei que ele viesse para confessar de alguma coisa; mas não fez isso nunca. E depois estendeu os braços de sua maldade com esse filho que teve. O filho que ele reconheceu, sabe Deus por quê. O que eu sei é que pus em suas mãos esse instrumento.” 

Lembrava-se perfeitamente do dia em que ele tinha levado o filho, recém-nascido. 

Tinha dito a ele: 

— Dom Pedro, a mãe morreu ao dar à luz. Disse que era seu. Aqui está ele. 

E ele nem titubeou, disse apenas: 

— E por que o senhor não fica com ele, padre? Faça-o cura. 

— Com o sangue que está dentro dele, não quero assumir essa responsabilidade. 

— Mas o senhor acha mesmo meu sangue ruim?

— Realmente, sim, dom Pedro. 

— Pois vou provar que não é verdade. Deixe o menino comigo. Sobra gente que se encarregue de cuidar dele. 

— Pois foi precisamente o que pensei. Pelo menos com o senhor não lhe faltará sustento. 

O menininho se retorcia, pequeno como era, feito uma víbora. 

— Damiana! Tome conta dessa coisa. É meu filho. 

Depois havia aberto uma garrafa: 

— Pela finada e pelo senhor, tomarei este gole. 

— E por ele? 

— Por ele também, por que não? 

Encheu outra taça e os dois beberam pelo porvir daquela criatura. 

Assim foi. 

Começaram a passar as carretas rumo à Media Luna. Ele se agachou, escondendo-se no remanso do rio. “De quem você se esconde?”, perguntou a si mesmo. 

— Salve, padre! — ouviu que diziam a ele. 

Ergueu-se da terra e respondeu: 

— Salve! Que o Senhor te abençoe. 

As luzes do povoado estavam apagando-se. O rio encheu sua água de cores luminosas. 

— Padre, já deram a alvorada? — perguntou outro dos carreteiros. 

— Já deve ser muito depois da alvorada — respondeu ele. E caminhou em sentido contrário ao deles, com intenção de não se deter. 

— Indo para onde tão cedo, padre? 

— Onde está o moribundo, padre? 

— Morreu alguém em Contla, padre?

Bem que gostaria de ter respondido: “Eu. O morto sou eu.” Mas se conformou com sorrir. 

Ao sair do povoado precipitou seus passos. 

Regressou já avançada a manhã. 

— Onde é que o senhor esteve, tio? — perguntou-lhe Ana, sua sobrinha. — Muitas mulheres vieram atrás do senhor. Queriam confessar porque amanhã é a primeira sexta-feira. 

— Pois que voltem logo mais à noite. 

Ficou quieto um tempinho, sentado num banco do corredor, cheio de fadiga. 

— Como o ar está fresco, não é mesmo, Ana? 

— Está um calorão, tio. 

— Eu não sinto. 

Não queria pensar de jeito nenhum que havia estado em Contla, onde fez confissão geral com o senhor pároco, e que ele, apesar de seus rogos, tinha-lhe negado a absolvição: 

— Este homem de quem você não quer mencionar o nome despedaçou a sua Igreja e você deixou. O que se pode esperar de você, padre? O que é que você fez da força de Deus? Quero me convencer de que você é bom e que recebe, lá, a estima de todos; mas não basta ser bom. O pecado não é bom. E para acabar com ele, há de ser duro e impiedoso. Quero acreditar que todos continuam sendo crentes; mas não é você quem mantém a sua fé; eles mantêm a fé por superstição e por medo. Quero além do mais estar com você na pobreza em que você vive e no trabalho e nos cuidados que você labuta todos os dias em seu compromisso. Sei como é difícil essa nossa tarefa nesses pobres povoados onde nos abandonaram; mas isso mesmo me dá o direito de dizer a você que não se deve entregar nossos serviços a uns poucos, que nos darão um pouco a troco da nossa alma, e que com a nossa alma nas mãos deles o que é que você poderá fazer para ser melhor que aqueles que são melhores do que você? Não, padre, minhas mãos não são suficientemente limpas para dar a sua absolvição. Você vai ter de procurar em outro lugar. 

— Então o senhor está querendo dizer, senhor pároco, que tenho de ir buscar confissão em outras bandas? 

— Tem. Não pode continuar consagrando os outros, se você próprio estiver em pecado. 

— E se suspenderem meus ministérios? 

— Não acredito que façam isso, embora talvez você mereça. Fica a critério deles. 

— Será que o senhor não poderia...? Provisoriamente, digamos... Necessito dar os santos óleos... a comunhão. No meu povoado morrem tantos, senhor pároco. 

— Padre, deixe os mortos ao julgamento de Deus. 

— Então é não? 

E o senhor cura de Contla havia dito que não. 

Depois os dois passearam pelos corredores da paróquia, sombreados pelas azaleias. Sentaram-se debaixo de um caramanchão, onde as uvas amadureciam. 

— São ácidas, padre — antecipou-se o senhor cura à pergunta que ele ia lhe fazer. — Vivemos em uma terra que tudo dá, graças à Providência; mas tudo dá com acidez. Estamos condenados a isso. 

— Tem razão, senhor cura. Lá em Comala tentei plantar uvas. Não dão. Por lá só cresce goiaba e laranja; laranjas amargas e goiabas amargas. Eu já me esqueci do sabor das coisas doces. O senhor se lembra das goiabas da China, tão vermelhas, que nós tínhamos no seminário? Os pêssegos, e aquelas tangerinas que só de apertar já soltavam a casca. Eu trouxe para cá algumas sementes. Poucas; só um saquinho... depois pensei que talvez tivesse sido melhor deixá-las por lá, onde amadureceriam, pois trouxe para cá só para que morressem. 

— E no entanto, padre, dizem que as terras de Comala são boas. Pena que estejam nas mãos de um homem só. Pedro Páramo ainda é o dono, não é? 

— Esta é a vontade de Deus. 

— Não acho que a vontade de Deus intervenha nesse caso. O senhor também não acha, padre? 

— Às vezes, duvidei; mas lá acham e reconhecem. 

— E você está entre os que acham e reconhecem? 

— Eu sou um pobre homem disposto a se humilhar, cada vez que sinto o impulso para fazer isso. 

Depois tinham se despedido. Ele, tomando as mãos do pároco e beijando-as. E apesar disso, agora, aqui, de volta à realidade, não queria tornar a pensar naquela manhã de Contla. 

Levantou-se e foi até a porta. 

— Indo aonde, tio? 

Sua sobrinha Ana, sempre presente, sempre ao lado dele, como se buscasse a sua sombra para defender-se da vida. 

— Vou caminhar um pouco, Ana. Para ver se desse jeito desafogo. 

— Está se sentindo mal? 

— Mal, não, Ana. Mau. Um homem mau. Estou sentindo que sou isso.

Foi até a Media Luna e deu os pêsames a Pedro Páramo. Tomou a ouvir as desculpas pelas culpas que tinham posto em seu filho. Deixou-o falar. Afinal, nada mais tinha importância. Em compensação, recusou o convite para comer com ele: 

— Não posso, dom Pedro, preciso estar cedo na igreja, porque estou com um montão de mulheres me esperando ao lado do confessionário. Fica para a próxima. 

Saiu a caminho, e quando entardecia entrou direto na igreja, tal como estava, coberto de poeira e de miséria. Sentou-se para confessar. 

A primeira que se aproximou foi a velha Dorotea, que sempre andava por ali esperando que as portas da igreja se abrissem. 

Sentiu que cheirava a álcool. 

— Como é, já está bêbada? Desde quando? 

— É que eu estive no velório de Miguelzinho, padre. E fui além da conta, padre. É que me deram tanto de beber, que até virei palhaça. 

— Você nunca foi outra coisa, Dorotea. 

— Mas é que agora trago pecados, padre. E de sobra. 

Em várias ocasiões ele tinha dito a ela: “Não se confesse, Dorotea, que você só vem me fazer perder tempo. Você já não consegue cometer nenhum pecado, nem querendo. Deixe espaço para os outros.” 

— Agora sim, padre. É de verdade. 

— Pois diga. 

— Já que não posso causar nenhum mal ao finado, vou dizer ao senhor que era eu, a Dorotea, quem conseguia as moças ao falecido Miguelzinho Páramo. 

O padre Rentería, que estava pensando em dar-se um momento para pensar, pareceu sair de seus sonhos e perguntou quase por hábito: 

— Desde quando? 

— Desde que ele virou rapazinho. Desde que pegou a febre dessa coisa. 

— Torne a repetir o que acabou de dizer, Dorotea. 

— Pois que era eu a que conseguia as moças para o Miguelzinho. 

— Você as levava? 

— Algumas vezes, sim. Outras, só apalavrava. E de outras, eu dava o norte. O senhor sabe: a hora em que ficavam sozinhas e ele podia agarrá-las descuidadas. 

— Foram muitas? 

Não queria ter dito isso; mas a pergunta saiu por costume. 

— Até perdi a conta. Foram muitas e muitas mais. 

— O que quer que eu faça com você, Dorotea? Seja seu próprio juiz. Veja se consegue se perdoar. 

— Eu, não, padre. Mas o senhor, sim, pode. Por isso vim. 

— Quantas vezes você veio até aqui me pedir que a mandasse para o céu quando você morresse? Queria ver se lá nos céus encontrava seu filho, não é isso, Dorotea? Pois bem: você não pode mais ir para o céu. Que Deus a perdoe. 

— Obrigada, padre. 

— Está bem. Eu também perdoo você, em nome dEle. Pode ir. 

— Não vai me deixar nenhuma penitência? 

— Você não precisa, Dorotea.

— Obrigada, padre. 

— Vá com Deus. 

Bateu na janelinha do confessionário com os nós dos dedos para chamar outra daquelas mulheres. E enquanto ouvia o Eu pecador, sua cabeça dobrou-se como se não conseguisse manter-se no alto. Depois veio aquela tontura, aquela confusão, o ir-se diluindo como em água espessa, e o corrupiar das luzes; a luz inteira do dia que se desmanchava fazendo-se cacos; e aquele sabor de sangue na língua. O Eu pecador ouvia-se mais forte, repetido, e depois terminava: “pelos séculos dos séculos, amém”; “pelos séculos dos séculos, amém”; “pelos séculos...” 

— Agora, calada — disse. — Há quanto tempo você não se confessa? 

— Dois dias, padre. 

Lá estava ela de novo. Como se a desventura o rodeasse. “O que você está fazendo aqui?” disse a si mesmo. “Descanse. Vá descansar. Você está muito cansado.” 

Levantou-se do confessionário e foi direto para a sacristia. Sem virar a cabeça disse para aquelas pessoas que estavam esperando por ele: 

— Quem se sentir sem pecado pode comungar amanhã.

Atrás dele, ouviu-se apenas um murmúrio.



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Rulfo, Juan Pedro Páramo / tradução e prefácio de Eric Nepomuceno. — Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. Tradução de: Pedro Páramo ISBN 978-85-7799-116-7 1. Romance mexicano. I. Nepomuceno, Eric. II. Título

Pedro Páramo – Romance mais aclamado da literatura mexicana, Pedro Páramo é o primeiro de dois livros lançados em toda a vida de Juan Rulfo. O enredo, simples, trata da promessa feita por um filho à mãe moribunda, que lhe pede que saia em busca do pai, Pedro Páramo, um malvado lendário e assassino. Juan Preciado, o filho, não encontra pessoas, mas defuntos repletos de memórias, que lhe falam da crueldade implacável do pai. Vergonha é o que Juan sente. Alegoricamente, é o México ferido que grita suas chagas e suas revoluções, por meio de uma aldeia seca e vazia onde apenas os mortos sobrevivem para narrar os horrores da história. O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem Pedro Páramo; é dessa fonte que beberam o colombiano Gabriel Garcia Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, que também narram odisseias latino-americanas.


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