sexta-feira, 30 de setembro de 2016

13. A Metamorfose - Como ninguém se aventurava - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 3

13 A Metamorfose - Como ninguém se aventurava - Franz Kafka



Como ninguém se aventurava a retirá-la, a maçã manteve-se cravada no corpo de Gregório como recordação visível da agressão, que lhe causara um grave ferimento, afetando-o havia mais de um mês. A ferida parecia ter feito que o próprio pai se lembrasse de que Gregório era um membro da família, apesar do seu desgraçado e repelente aspecto atual, não devendo, portanto, ser tratado como inimigo; pelo contrário, o dever familiar impunha que esquecessem o desgosto e tudo suportassem com paciência. 

O ferimento tinha-lhe diminuído, talvez para sempre, a capacidade de movimentos e eram-lhe agora precisos longos minutos para se arrastar ao longo do quarto, como um velho inválido; nas presentes condições, estava totalmente fora de questão a possibilidade de trepar pela parede. 

Parecia-lhe que este agravamento da sua situação era suficientemente compensado pelo fato de terem passado a deixar aberta, ao anoitecer, a porta que dava para a sala de estar, a qual fitava intensamente desde uma a duas horas antes, aguardando o momento em que, deitado na escuridão do quarto, invisível aos outros, podia vê-los sentados à mesa, sob a luz, e ouvi-los conversarem, numa espécie de comum acordo, bem diferente da escuta que anteriormente escutara. 

É certo que faltava às suas relações com a família a animação de outrora, que sempre recordara com certa saudade nos acanhados quartos de hotel em cujas camas úmidas se acostumara a cair, completamente esgotado. Atualmente, passavam a maior parte do tempo em silêncio. Pouco tempo após o jantar, o pai adormecia na cadeira de braços; a mãe e a irmã exigiam silêncio uma à outra. Enquanto a mãe curvada sob o candeeiro, bordava para uma firma de artigos de roupa interior, a irmã, que se empregara como caixeira, estudava estenografia e francês, na esperança de melhor situação. De vez em quando, o pai acordava e, como se não tivesse consciência de que estivera a dormir, dizia à mãe:

— Hoje tens cosido que te fartas! — caindo novamente no sono, enquanto as duas mulheres trocavam um sorriso cansado.

Por qualquer estranha teimosia, o pai persistia em manter-se fardado, mesmo em casa, e, enquanto o pijama repousava, inútil, pendurado no cabide, dormia completamente vestido onde quer que se sentasse, como se estivesse sempre pronto a entrar em ação e esperasse apenas uma ordem do superior. Em conseqüência, a farda, que, para começar, não era nova, principiava a ter um ar sujo, mau grado os desvelados cuidados a que a mãe e a irmã se entregavam para a manter limpa. Não raro, Gregório passava a noite a fitar as muitas nódoas de gordura do uniforme, cujos botões dourados se mantinham sempre brilhantes, dentro do qual o velho dormia sentado, por certo desconfortavelmente, mas com a maior das tranquilidades. 


Logo que o relógio batia as dez, a mãe tentava despertar o marido com palavras meigas e convencê-lo depois a ir para a cama, visto que assim nem dormia descansado, que era o mais importante para quem tinha de entrar ao serviço às seis da manhã. Não obstante, com a teimosia que o não largava desde que se empregara no banco, insistia sempre em ficar à mesa até mais tarde, embora tornasse invariavelmente a cair no sono e por fim só a muito custo a mãe conseguisse que ele se levantasse da cadeira e fosse para a cama. Por mais que mãe e filha insistissem com brandura, ele mantinha-se durante um quarto de hora a abanar a cabeça, de olhos fechados, recusando-se a abandonar a cadeira. A mãe sacudia-lhe a manga, sussurrando-lhe ternamente ao ouvido, mas ele não se deixava levar. Só quando ambas o erguiam pelas axilas, abria os olhos e as fitava, alternadamente, observando quase sempre: Que vida a minha! Chama-se a isto uma velhice descansada, apoiando-se na mulher e na filha, erguia-se com dificuldade, como se não pudesse com o próprio peso, deixando que elas o conduzissem até à porta, após o que as afastava, prosseguindo sozinho, enquanto a mãe abandonava a costura e a filha pousava a caneta para correrem a ampará-lo no resto do caminho. 

Naquela família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que tivesse tempo para se preocupar com Gregório mais do que o estritamente necessário! As despesas da casa eram cada vez mais reduzidas. A criada fora despedida; uma grande empregada ossuda vinha de manhã e à tarde para os trabalhos mais pesados, encarregando-se a mãe de Gregório de tudo o resto, incluindo a dura tarefa de bordar. Tinham-se visto até na obrigação de vender as jóias da família, que a mãe e a irmã costumavam orgulhosamente pôr para as festas e cerimônias, conforme Gregório descobriu uma noite, ouvindo-os discutir o preço por que haviam conseguido vendê-las. Mas o que mais lamentava era o fato de não poderem deixar a casa, que era demasiado grande para as necessidades atuais, pois não conseguiam imaginar meio algum de deslocar Gregório. Gregório bem via que não era a consideração pela sua pessoa o principal obstáculo à mudança, pois facilmente poderiam metê-lo numa caixa adequada, com orifícios que lhe permitissem respirar; o que, na verdade, os impedia de mudarem de casa era o próprio desespero e a convicção de que tinham sido isolados por uma infelicidade que nunca sucedera a nenhum dos seus parentes ou conhecidos. Passavam pelas piores provações que o mundo impõe aos pobres; o pai ia levar o pequeno almoço aos empregados de menor categoria do banco, a mãe gastava todas as energias a confeccionar roupa interior para estranhos e a irmã saltava de um lado para outro, atrás do balcão, às ordens dos fregueses, mas não dispunham de forças para mais. E a ferida que Gregório tinha no dorso parecia abrir-se de novo quando a mãe e a irmã, depois de meterem o pai na cama, deixavam os seus trabalhos no local e se sentavam, com a cara encostada uma à outra. A mãe costumava então dizer, apontando para o quarto de Gregório:

— Fecha a porta, Grete




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de Franz Kafka de Franz Kafka

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