Eduardo Galeano
13. O Livro dos Abraços
Crônica da cidade de Caracas
Preciso de alguém que me escutei — gritava. — Dizem sempre que é para eu voltar amanhã! — gritava. Jogou a camisa fora. Depois, as meias e os sapatos. José Manuel Pereira estava parado na marquise de um décimo-oitavo andar de um edifício em Caracas.
Os policiais quiseram agarrá-lo e não conseguiram. Uma psicóloga falou com ele da janela mais próxima. Depois, um sacerdote levou a ele a palavra de Deus. — Não quero mais promessas! — gritava José Manuel. Dos janelões do restaurante da Torre Sul, viam Manuel em pé na marquise, com as mãos pregadas na parede. Era a hora do almoço, e este acabou sendo o tema de conversa em todas as mesas.
Lá embaixo, na rua, tinha se juntado uma multidão.
Passaram-se seis horas. No fim, as pessoas estavam cansadas.
— Decida-se de uma vez — diziam as pessoas —. Que se jogue de uma vez e pronto! — pensavam.
Os bombeiros aproximaram uma corda. No começo, ele não deu confiança. Mas finalmente esticou uma das mãos, e depois outra, e agarrado na corda deslizou até o décimo-sexto andar.
Então tentou entrar pela janela aberta e escorregou e despencou no vazio. Ao bater no chão, o corpo fez um ruído de bomba que explode. Então as pessoas foram embora, e foram embora os vendedores de sorvete e de cachorro-quente e os vendedores de cerveja e de refrigerantes em lata.
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Vende-se:
— Uma negra meio boçal, da nação cabinda, pela quantidade de 430 pesos. Tem rudimentos de costurar e passar.
— Sanguessugas recém-chegadas da Europa, da melhor qualidade, por quatro, cinco e seis vinténs uma.
— Um carro, por quinhentos patacões, ou troca-se por negra.
— Uma negra, de idade de treze a quatorze anos, sem vícios, de nação bangala.
— Um mulatinho de idade onze anos, com rudimentos de alfaiate.
— Essência de salsaparrilha, a dois pesos o frasquinho.
— Uma primeiriça com poucos dias de parida. Não tem cria, mas tem abundante leite bom.
— Um leão, manso feito um cão, que come de tudo, e também uma cômoda e uma caixa de embuia.
— Uma criada sem vícios nem doenças, de nação conga, de idade de uns dezoito anos, e além disso um piano e outros móveis a preços cômodos.
(Dos jornais uruguaios de 1840, vinte e sete anos depois da abolição da escravatura.)
Crônica da cidade do Rio de Janeiro
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente:
— Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
— Não se preocupe — tranquiliza uma vizinha
—. Não se preocupe: Ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Os numerinhos e as pessoas
Onde se recebe a Renda per Capita? Tem muito morto de fome querendo saber. Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento?
Em Cuba, a Revolução triunfou no ano mais próspero de toda a história econômica da ilha.
Na América Central, as estatísticas sorriam e riam quanto mais fodidas e desesperadas estavam as pessoas. Nas décadas de 50, de 60, de 70, anos atormentados, tempos turbulentos, a América Central exibia os índices de crescimento econômico mais altos do mundo e o maior desenvolvimento regional da história humana.
Na Colômbia, os rios de sangue cruzam os rios de ouro. Esplendores da economia, anos de dinheiro fácil: em plena euforia, o país produz cocaína, café e crimes em quantidades enlouquecidas.
A fome/2
Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
12.O Livro dos Abraços - Noite de Natal - Eduardo Galeano
14.O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Nova Iorque - Eduardo Galeano
13. O Livro dos Abraços
Crônica da cidade de Caracas
Preciso de alguém que me escutei — gritava. — Dizem sempre que é para eu voltar amanhã! — gritava. Jogou a camisa fora. Depois, as meias e os sapatos. José Manuel Pereira estava parado na marquise de um décimo-oitavo andar de um edifício em Caracas.
Os policiais quiseram agarrá-lo e não conseguiram. Uma psicóloga falou com ele da janela mais próxima. Depois, um sacerdote levou a ele a palavra de Deus. — Não quero mais promessas! — gritava José Manuel. Dos janelões do restaurante da Torre Sul, viam Manuel em pé na marquise, com as mãos pregadas na parede. Era a hora do almoço, e este acabou sendo o tema de conversa em todas as mesas.
Lá embaixo, na rua, tinha se juntado uma multidão.
Passaram-se seis horas. No fim, as pessoas estavam cansadas.
— Decida-se de uma vez — diziam as pessoas —. Que se jogue de uma vez e pronto! — pensavam.
Os bombeiros aproximaram uma corda. No começo, ele não deu confiança. Mas finalmente esticou uma das mãos, e depois outra, e agarrado na corda deslizou até o décimo-sexto andar.
Então tentou entrar pela janela aberta e escorregou e despencou no vazio. Ao bater no chão, o corpo fez um ruído de bomba que explode. Então as pessoas foram embora, e foram embora os vendedores de sorvete e de cachorro-quente e os vendedores de cerveja e de refrigerantes em lata.
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Vende-se:
— Uma negra meio boçal, da nação cabinda, pela quantidade de 430 pesos. Tem rudimentos de costurar e passar.
— Sanguessugas recém-chegadas da Europa, da melhor qualidade, por quatro, cinco e seis vinténs uma.
— Um carro, por quinhentos patacões, ou troca-se por negra.
— Uma negra, de idade de treze a quatorze anos, sem vícios, de nação bangala.
— Um mulatinho de idade onze anos, com rudimentos de alfaiate.
— Essência de salsaparrilha, a dois pesos o frasquinho.
— Uma primeiriça com poucos dias de parida. Não tem cria, mas tem abundante leite bom.
— Um leão, manso feito um cão, que come de tudo, e também uma cômoda e uma caixa de embuia.
— Uma criada sem vícios nem doenças, de nação conga, de idade de uns dezoito anos, e além disso um piano e outros móveis a preços cômodos.
(Dos jornais uruguaios de 1840, vinte e sete anos depois da abolição da escravatura.)
Crônica da cidade do Rio de Janeiro
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente:
— Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
— Não se preocupe — tranquiliza uma vizinha
—. Não se preocupe: Ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Os numerinhos e as pessoas
Onde se recebe a Renda per Capita? Tem muito morto de fome querendo saber. Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento?
Em Cuba, a Revolução triunfou no ano mais próspero de toda a história econômica da ilha.
Na América Central, as estatísticas sorriam e riam quanto mais fodidas e desesperadas estavam as pessoas. Nas décadas de 50, de 60, de 70, anos atormentados, tempos turbulentos, a América Central exibia os índices de crescimento econômico mais altos do mundo e o maior desenvolvimento regional da história humana.
Na Colômbia, os rios de sangue cruzam os rios de ouro. Esplendores da economia, anos de dinheiro fácil: em plena euforia, o país produz cocaína, café e crimes em quantidades enlouquecidas.
A fome/2
Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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