domingo, 4 de setembro de 2016

Histórias de avoinha: não falavam, apenas latiam

Ensaio 87B – 2ª edição 1ª reimpressão

não falavam, apenas batiam


baitasar


sempre que passo na calçada das igrejas desenho discretamente no ar a senha, um sinal combinado que separa as pessoas do bem das pessoas do mal, um sinal de proteção, é um anuncio baixinho, entre dentes, quase envergonhada, Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

a cruz é muito forte, não é para os fracos, mas são os fracos que a carregam – também respeito silenciosa e melancólica a cruz desbotada dos cemitérios, observo de longe a cruz do milagre da morte, não separa ricos e pobres

não tem menina bonitinha que não foi ensinada ser boazinha. repetimos à exaustão o desenho combinado. eu já fui bonitinha. sonhava com a cruz. tinha pesadelos. chorava e mijava na cama. o prenúncio do respeito, a pegada do medo. um traço aprendido antes de parir a montanha dos pecados que estava por vir, a antessala das letrinhas e continhas. a minha outra cruz foi a professorinha

talvez, quem sabe, exista alguma razão para tanta submissão. um medo devastador que nos ensinam desde o primeiro penico de barro. não sei se creio tanto, não sei se o sinal da cruz nos salva, mas é razoável afirmar aos quatro ventos que estamos dentro, é um jogo de tudo ou nada na esperança pelo paraíso

aprendi rezar o pai nosso e a ave maria antes das letrinhas e das continhas. aprendi outras que já esqueci

fiz a primeira comunhão toda vestidinha de branco. um anjinho ou uma anjinha? será que no paraíso as meninas viram anjinhos? lembro de tudo que preciso lembrar, mas não lembro de me ver, espelho era coisa do demônio. escutava que se os anjos pudessem escolher suas aparências, com certeza eu seria a escolhida. ainda dizem que pareço um anjo. dona anja e suas meninas

compreendo que exista alguma razão por trás das escolhas que faço, além da vontade que preciso satisfazer. é isso, sempre vai existir um ou outro motivo para os caprichos. gosto de repetir que faço o que faço porque quero

ajudo muitas meninas

rameiras

perdidas

secretas

amassadas

amarguradas

sovadas

ofendidas

usadas

cuspidas

abandonadas com seus olhos de monja

estamos juntas para o tudo ou nada, para defender minhas meninas entro no coração com um punhal feroz

sonham de olhos abertos sonhos desacordados

algumas moram na casa, outras chegam para atender a freguesia. a maioria das meninas ficam mortas nas ruas, vestidas nuas. o punhal enfiado. fazem o que fazem sem minha ajuda, mas quero ajudar. no começo não aceitam. as ruas ensinam desconfiar de tudo. não acreditam em nada. vivem um dia a cada dia

herdei a casa da vovó. os costumes também

quando as meninas moram na casa fico com cinquenta por cento, metade de tudo que faturam. não é o melhor arranjo, mas proteção custa caro. outras preferem chegar apenas para o trabalho, deixam com a casa vinte e cinco por cento do que ganham. um bom acordo para as meninas e para a casa. trabalhar sozinha nas ruas precisa sorte, ser maluca, engolir soluços e as correntes do vento. não basta ter coragem e cobiça

na casa estão protegidas

cliente violento precisa entender-se com o calçacurta. esse nunca pede dinheiro, taxa de proteção ou algum favor desmedido, mas exige atendimento de primeira classe. é preciso ter uma negrinha à sua disposição com gosto de uso, sem firulas

prefiro não ter na casa nenhuma menina da cor, não é nada pessoal, mas acho que essa mistura só trás confusão entre as meninas. a villa não vê com bons olhos essa mistura. querendo ou não, concordando ou não, é preciso manter as aparências e continuar a dar à casa feição de classe, mas o calçacurta tem essa tara por negrinhas. não diz onde aprendeu o gosto. a casa precisa manter uma negrinha, pelo menos

foi preciso contornar o mal-estar entre os clientes, ela tinha ordens para não transitar pela casa. aguardava no último dos quartos a convocação do trabalho. de qualquer jeito, a casa sempre manteve uma ou duas negrinhas para uso do calçacurta ou algum outro usuário excêntrico. o calçacurta nunca deixou de gozar e se endurecer de vontade. a casa tem orgulho da sua clientela, aqui, o cliente goza de prazer e não da piada

sou como as meninas, mas mais corajosa e cruel. preciso ser como uma general: dura, exigente, intransigente e disciplinada. fora da ordem e do respeito não se consegue nada. aceito muito conselho do calçacurta. o homem entende do que faz, mas adora que se baba todo quando apanha uma boa surra das negrinhas

não reclama, não dá um gemido. acho que é o seu jeito de mostrar como se apanha calado. o bico fechado. sente desprezo por malandro que abre o bico com uma ou duas porradas, Dona Maria Cobra, bandido fraco merece apanhar e bandido forte precisa apanhar, Não sei, não. O senhor não acha que violência faz mais violência, Bobagem, não dá para matar todos, mas dá para confinar num lugar só, O senhor acha, É mais prático para controlar, Desde que nenhum venha atrapalhar os negócios, Eles não virão, acredite. O meu sistema de avaliação é simples: quem merece mais apanha mais, quem merece menos apanha também, só para não ter uma falsa impressão e deixar as unhas crescerem. Assim se mantém o silêncio.

entre as meninas sempre tem uma mais chamada que as outras. é assim mesmo, mas demora convencer as meninas que isso não é nada demais, Meninas, é isso, na nossa atividade econômica, para ganhar bem é preciso aceitar muito, topar tudo, desde que paguem muito bem. E fim de papo.

mas sem mau gosto ou barbarismo, nestes casos, é preciso acertar antes. o pagamento é adiantado e as regras estabelecidas precisam ser respeitadas

às vezes, não fazemos nada. não temos o que fazer, apenas esperar. não adianta ficar incomodada. têm casos que é preciso paciência. é preciso consideração. o tempo ensina. e outros que nem a paciência ajuda, é preciso ser criativa e agir. a sineta está lá, pendurada no teto. acabou o tempo. vestir-se e sair. enquanto não toca é preciso estar pronta para despertar do mundo dos sonhos os mais demorados, preguiçosos ou distraídos. é preciso ser despachada, aplicar com zelo nossas melhores práticas e costumes

a mais ajustada em qualquer circunstância é Scarlett, a Foguista, não perde tempo com etiquetas ou protocolos, tem uma meta para cumprir. no seu horário de trabalho está sempre disponível e cheirosa. não usa mais que um vaporoso tecido invisível. mantém os cabelos tingidos de loiro soltos e revoltos, como se tivesse acabado de levantar, na maioria das vezes, é verdade. os lábios carnudos sempre prateados. o olhar tímido esconde a mulher ninja quando convida o cliente para apreciar seus truques

a mais provocante, por certo, é Heidi, os cabelos cacheados são loiros de verdade, loiros cacheados. os lábios finos e vermelhos desenham sua imensa boca que explode em risos e gemidos. está sempre vestida com seus fartos peitos decorando decotes confiantes e generosos. caminha descalça, gosta de mostrar os pés

Irina, tão doce e meiga, é profundamente sensual e profissional

Laetitia, uma negra que provoca saudades. adora sentar na cama, deitar para trás e pedir para o cliente tirar a roupa. usa as unhas bem compridas nas costas do garanhão. a queridinha do general

Petra, sem preconceitos, sem uma boa causa, sem nenhuma lucidez, não facilita as coisas. é cruel. nunca foi pega de jeito. só tira a calcinha depois que o cliente mostra a que veio

Kylie, o sal da terra que não abandona o caixão do dono. tem peitos ótimos. olha o cliente de cima até em baixo, examina as unhas dos pés, precisam estar limpas e cortadas, se gosta, oferece o uísque que sempre tem ao lado da cama, Tem bebida aqui.

Maribel, sempre em campanha para espreitar na sala e nos quartos, gosta mais de olhar que fazer. é perigosa com os beijos que rouba

Nicole, uma companhia amável e sempre possível. é autodidata, criou-se observando. gosta de contar histórias

Emmanuelle, uma estrela na luz e muitas cicatrizes no olhar. bica duas ou três doses de uísque e para. fica mais animada com velhos indecentes

Vanna, essa menina tem o gosto pronto, um gosto delicioso. é uma artista, pinta bem à beça. tem sempre tinta no quarto, lambuza a tela com os dedos

Anekcer, um beijo e um olhar para descobrir, promete-se pela casa, Eu sou uma selvagem das ruas!

Alicia, sempre atrás dos melhores resultados com suas tangas antes do amanhecer. quando bebe e se perde no uísque, repete que é um homem de 145 anos. todas achamos um exagero

Tori, o pecado original oriental, uma noite no paraíso com frutas nativas da villa: arumbeva, guabiju, bananinha-do-mato, maracujá-de-estalo, pêssego do mato, ananás, mamãozinho-do-mato, cereja-do-mato, pimenta-rosa, amora-do-mato, pitanga, araçá, butiá, araticum, guabiroba

quando a primeira campainha da noite toca, um pequeno tremor de tensão circula na casa. um morto da rua quer entrar com disposição para viver, Meninas o batom, sacudam as saias, apertem as ligas, as meias e as calças. Não esqueçam as luzes da ribalta. O abajur é nosso melhor amigo. Andem devagar. Suspirem. Mostrem. O amor que paga não se engana. Concentrem-se em ganhar dinheiro, negociem bem. Não esqueçam: sentamos em uma mina de ouro. Mas, antes de tudo, sejam cuidadosas. Deem apenas o que quiserem vender. Negócios são negócios.

às vezes, era engano, A senhora sabe me dizer se é aqui que vendem peixe?

despesas pequenas com médico e remédios pouco fica na conta das meninas, mas quando o serviço médico precisa de mais tempo que alguma visita de consultório, o socorro vem com o general. toda menina da casa com abatimento da doença recebe atendimento no Samdu. coisa boa. o homem manda e não pede

houve uma vez, depois existiram outras, a convocação da casa para um serviço extraordinário de extrema importância, mas precisava ser camuflado e sigiloso para o fortalecimento da família e tradição villeira. seis meninas foram escaladas a meu gosto e conhecimento. a única menina que a casa recebeu ordens para não alistar nos serviços, daquela noite, foi Laetitia. a queridinha do general

chamei Scarlett, meu braço direito. juntas decidimos a nominata das convocadas: Heidi, Kylie, Petra, Vanna e Alicia. avisei que estava fechando a casa. aquela seria uma noite a serviço do general. uma festa privada. chamei Scarlett, Precisamos dar atendimento com atenção especial ao pedido do General.

Quem iremos atender?

Um gringo graúdo das políticas estrangeiras está na Villa.

Aham, e não veio só a trabalho.

Vem conhecer a casa, parece que reclamou da tristeza e saudade. É uma grande honra o General ter confiado à nossa casa essa missão.

não precisei pedir duas vezes

A solidão que passeia pela Villa, habita as casas, mas não entra na Casa de Maria Cobra III!

Obrigada, Scarlett.

fechamos

na porta, colocamos um aviso de papelão com letras deformadas, uns garranchos feitos de improviso: Fechadas Para Balanço!

a clientela que não faltava foi surpreendida. a gritaria foi grande. na villa, gritos não caminham a esmo pelas madrugadas. incomodam uma ou outra alma penada sem ter o que fazer, Voltem amanhã...

Vamos esperar, foi a resposta que ouvimos. fiquei preocupada, não queria nenhum deles atrapalhando a chegada dos convidados, tampouco queria vê-los machucados pelas mãos do general

Escutem, por favor. Não iremos abrir. Voltem amanhã e compensaremos essa noite. Eu prometo.

não houve tempo. não houve resposta. três carros desconhecidos, sem identificação, sem placas, mas com a lotação cheia, chegaram do nada, como naves espaciais. quatro alienígenas desembarcaram de cada espaçonave, todos de preto, olhos, pés e mãos, cabelos bem curtinhos, nenhuma vontade para conversar, estavam ali para punir expulsar sumir com nossos clientes

não falavam, apenas batiam e latiam



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