domingo, 11 de setembro de 2016

11. A Metamorfose - Infelizmente a irmã era de opinião contrária - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 2

11 A Metamorfose - Infelizmente a irmã era de opinião contrária - Franz Kafka




Infelizmente a irmã era de opinião contrária; habituara-se, e não sem motivos, a considerar-se uma autoridade no que respeitava a Gregório, em contradição com os pais, de modo que a presente opinião da mãe era suficiente para a decidir a retirar, não só a cômoda e a secretária, mas toda a mobília, à exceção do indispensável sofá. É certo que esta decisão não era conseqüência da simples teimosia infantil nem da autoconfiança que recentemente adquirira, tão inesperada como penosamente; tinha, efetivamente, percebido que Gregório precisava de uma porção de espaço para vaguear e, tanto quanto lhe era dado observar, Gregório nunca usara sequer a mobília. Outro fator terá porventura sido igualmente o temperamento entusiástico de qualquer menina adolescente, que tende a manifestar-se em todas as ocasiões possíveis e que agora levava Grete a exagerar o drama da situação do irmão, a fim de poder auxiliá-lo mais ainda. Num quarto onde Gregório reinasse rodeado de paredes nuas, havia fortes probabilidades de ninguém alguma vez entrar, a não ser ela. 

Assim, não se deixou dissuadir pela mãe, que parecia cada vez menos à vontade no quarto, estado de espírito que só contribuía para sentir-se mais insegura. Rapidamente reduzida ao silêncio, limitou-se, pois, a ajudar a filha a retirar a cômoda, na medida do possível. Ora, sem a cômoda podia Gregório muito bem passar, mas era forçoso que conservasse a secretária. Logo que as mulheres removeram a cômoda, à força de arquejantes arrancos, Gregório pôs a cabeça de fora, para ver como poderia intervir da maneira mais delicada e cuidadosa. Quis o destino que fosse a mãe a primeira a regressar, enquanto Grete, no quarto contíguo, tentava deslocar sozinha a cômoda, evidentemente debalde. Como a mãe não estava habituada ao seu aspecto, era provável que sofresse um grande choque ao vê-lo. Receando que tal acontecesse, Gregório recuou precipitadamente para a outra extremidade do sofá, mas não conseguiu evitar que o lençol se agitasse ligeiramente. Esse movimento foi o bastante para alertar a mãe, que ficou imóvel por um instante e em seguida se refugiou junto de Grete. 

Embora Gregório tentasse convencer-se de que nada de anormal se passava, que se tratava apenas de uma mudança de algumas peças de mobiliário, acabou por reconhecer que as idas e vindas das mulheres, os sons momentâneos que produziam e o arrastar de móveis o afetavam como se tratasse de uma indisposição que viesse de todos os lados ao mesmo tempo e, por mais que encolhesse a cabeça e as pernas e se acachapasse no chão, viu-se perante a certeza de que não poderia continuar a suportar tudo aquilo por muito tempo. Tiravam-lhe tudo do quarto, privavam-no de tudo o que lhe agradava: a cômoda onde guardava a serra de recorte e as outras ferramentas tinha sido retirada, e agora tentavam remover a secretária, que quase parecia colada ao chão, na qual fizera todos os trabalhos de casa quando frequentara a escola comercial, e, antes disso, o liceu e, pois era, até a escola primária... Não conseguia deter-se a analisar as boas intenções das duas mulheres, cuja existência quase tinha esquecido nessa altura, visto estarem tão exaustas que se dedicavam ao trabalho em silêncio, ouvindo-se apenas o pesado arrastar dos pés de ambas. 

Nestas condições, apressou-se a sair do esconderijo, ao mesmo tempo que as mulheres, no quarto ao lado, se apoiavam na secretária, tomando fôlego. Quatro vezes mudou de direção, pois não sabia o que salvar primeiro. De repente, avistou na parede oposta, totalmente liberta de mobiliário, a figura da mulher envolta em peles; trepou rapidamente pela parede e colou-se ao vidro da moldura, que constituía uma superfície à qual o seu corpo aderia bem e que lhe refrescava agradavelmente o ventre escaldante. Pelo menos o quadro, que o corpo de Gregório ocultava totalmente, ninguém havia de retirar. Voltou a cabeça para a porta da sala de estar, a fim de poder observar as mulheres quando regressassem. 

Pouco tinham descansado, visto que regressavam nesse momento, a mãe quase apoiada a Grete, que lhe passara o braço em torno da cintura.

— Bem, que havemos de tirar agora? perguntou Grete, olhando em volta.

Foi então que deparou com Gregório. Manteve a compostura, provavelmente em atenção à mãe, e inclinou a cabeça para ela, a fim de evitar que levantasse a vista. Ao mesmo tempo, perguntou-lhe, em voz trêmula e desabrida:

— Não será melhor voltarmos um instante ao refeitório?

Gregório adivinhou facilmente as intenções de Grete: queria pôr a mãe a salvo e enxotá-lo seguidamente da parede. Muito bem, ela que experimentasse! Agarraria ao quadro e não cederia. Preferia avançar sobre o rosto de Grete. 

Mas as palavras de Grete não haviam logrado senão desassossegar a mãe, que deu um passo para o lado e encarou o enorme vulto castanho no florido papel da parede. Antes de tomar perfeita consciência de que se tratava de Gregório, gritou roucamente:

— Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!- e deixou-se desmaiar de braços abertos no sofá, não dando mais sinal de vida. 

— Gregório! - gritou a irmã, fitando-o com um punho cerrado erguido na sua direção. Era a primeira vez que se lhe dirigia diretamente depois da metamorfose. Correu à sala contígua em busca de um frasco de sais para reanimar a mãe. Gregório quis igualmente ajudar, pois havia tempo para salvar o quadro, mas teve de fazer grande esforço para se descolar do vidro. Ao consegui-lo, correu atrás da irmã para a sala contígua, como se pudesse aconselhá-la, a exemplo do que costumava fazer, mas não teve outro remédio senão deixar-se ficar desamparadamente atrás dela. Grete remexia por entre vários frascos e, ao virar-se, entrou em pânico ante a visão de Gregório. Um dos frascos caiu ao chão, partindo-se. Ao saltar, um caco cortou o focinho de Gregório, ao mesmo tempo que uma droga corrosiva lhe salpicava o corpo. Sem mais detenças, Grete agarrou em todos os frascos que lhe era possível transportar e correu para a mãe, fechando violentamente a porta com o pé. Gregório via-se assim separado da mãe, que talvez estivesse à beira da morte, por sua culpa. Não se atrevia a abrir a porta, receando assustar Grete, que tinha de cuidar da mãe. Só lhe restava esperar. Consumido pelo remorso e cuidado, começou a andar para um lado e para o outro, trepando tudo, paredes, mobília e tecto. Finalmente, acossado pelo desespero, viu a sala a andar à roda e caiu no meio da grande mesa.


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A Metamorfose
de Franz Kafka de Franz Kafka

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