sexta-feira, 30 de março de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Negociação (V)

Stendhal - O Vermelho e o Negro



Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo V

UMA NEGOCIAÇÃO


Cunctando restituit rem.
ENNIUS






RESPONDE-ME SEM MENTIR, se és capaz, cão maldito; de onde conheces a sra. de Rênal, quando falaste com ela?

– Jamais lhe falei, respondeu Julien, jamais vi essa senhora a não ser na igreja.

– Mas olhaste para ela, seu descarado?

– Nunca! O senhor sabe que na igreja só vejo a Deus, respondeu Julien com um arzinho hipócrita, muito próprio, segundo ele, para evitar mais um tapa na cabeça.

– Há no entanto alguma coisa aí, replicou o aldeão astuto, e calou-se por um instante. Mas por teu intermédio nada saberei, maldito hipócrita. O fato é que vou me livrar de ti e minha serraria vai melhorar com isso. Conquistaste o sr. cura ou algum outro, que te conseguiu um belo cargo. Vai arrumar teus pertences, te levarei à casa do sr. de Rênal onde serás preceptor das crianças.

– Que ganharei com isso?

– Comida, roupa e 300 francos de salário.

– Não quero ser criado.

– Animal, quem te falou de ser criado? acha que eu consentiria em meu filho ser criado?

– Mas com quem comerei?

Essa pergunta desconcertou o velho Sorel, ele sentiu que, se falasse, poderia cometer alguma imprudência; enfurecido, cobriu Julien de injúrias, acusando-o de gula, e deixou-o para ir consultar os outros filhos.

Julien os viu pouco depois, reunidos em conselho, cada um apoiado sobre seu machado. Após observá-los por algum tempo e vendo que nada podia adivinhar, Julien foi para o outro lado da serraria, para evitar ser surpreendido. Ele queria pensar nesse anúncio imprevisto que mu​dava seu destino, mas sentiu-se incapaz de prudência; sua imaginação ocupava-se inteiramente com o que veria na bela casa do sr. de Rênal.

Melhor renunciar a tudo isso, pensou, do que ser obrigado a comer com os criados. Meu pai quererá forçar-me a tanto; prefiro morrer. Tenho quinze francos e oito vinténs de economias, fugirei esta noite; em dois dias, por atalhos onde não há perigo de encontrar gendarmes, estou em Besançon; lá, alisto-me como soldado e, se preciso, passo para a Suíça. Mas, nesse caso, adeus minhas ambições, adeus essa bela carreira de padre que leva a tudo.

Esse horror de comer com os criados não era natural a Julien, para chegar à fortuna ele teria feito coisas bem mais penosas. Essa repugnância vinha das Confissões, de Rousseau. Era o único livro com o auxílio do qual sua imaginação concebia o mundo. A coletânea dos boletins do grande exército e o Memorial de Santa Helena completavam seu Alcorão. Ele enfrentaria a morte por essas três obras. Jamais acreditou em nenhuma outra. Segundo uma frase do velho cirurgião-mor, ele considerava todos os outros livros do mundo como mentirosos e escritos por velhacos para ganhar dinheiro.

Juntamente com uma alma de fogo, Julien tinha uma daqueles memórias espantosas frequentemente associadas à tolice. Para conquistar o velho cura Chélan, do qual via bem que dependia sua sorte futura, aprendera de cor todo o Novo Testamento em latim, conhecia também o livro Do papa, do sr. de Maistre, e acreditava tão pouco num quanto noutro.

Como por um acordo mútuo, Sorel e o filho evitaram falar-se naquele dia. Ao anoitecer, Julien foi tomar sua lição de teologia na casa do cura, mas julgou prudente nada lhe dizer da estranha proposta que haviam feito a seu pai. Talvez seja uma armadilha, pensava, convém fingir tê-la esquecido.

No dia seguinte de manhã cedo, o sr. de Rênal mandou chamar o velho Sorel que, após ter-se feito esperar uma hora ou duas, acabou por chegar, oferecendo desde a entrada cem escusas, entremeadas de outras tantas reverências. À força de percorrer todo tipo de objeções, Sorel compreendeu que seu filho comeria com o dono e a dona da casa, e, nos dias em que houvesse convidados, sozinho numa peça à parte com as crianças. Sempre mais disposto a levantar questões à medida que percebia uma verdadeira pressa no sr. prefeito, e aliás cheio de desconfiança e de espanto, Sorel pediu para ver o quarto onde dormiria o filho. Era uma grande peça muito bem mobilia​da, mas para a qual estavam sendo transportadas as camas das três crianças. 

Essa circunstância foi um raio de luz para o velho aldeão; ele pediu em seguida, com segurança, para ver a roupa que dariam ao filho. O sr. de Rênal abriu a escrivaninha e tirou cem francos.

– Com esse dinheiro, seu filho irá ao sr. Durand, o vendedor de tecidos, e terá um traje preto completo.

– E se eu o retirar de sua casa, disse o aldeão, que de repente esquecera suas formas de deferência, esse traje preto permanecerá com ele?

– Sem dúvida.

– Bem, disse Sorel, num tom de voz arrastado, só nos resta então entrar em acordo quanto a uma única coisa: o dinheiro que o senhor lhe dará.

– Como! exclamou o sr. de Rênal indignado, estamos de acordo desde ontem: ofereço 300 francos; é o bastante, creio, e talvez demais.

– Foi a sua oferta, não nego, disse o velho Sorel, falando ainda mais lentamente; e, por um esforço de gênio que não surpreenderá os que conhecem os camponeses do Franco-Condado, acrescentou, olhando fixamente o sr. de Rênal: Temos uma melhor noutra parte.

A essas palavras a fisionomia do prefeito agitou-se. Ele conteve-se, porém, e, depois de uma hábil conversa de duas horas, em que nenhuma palavra foi dita ao acaso, a astúcia do camponês prevaleceu sobre a astúcia do homem rico, que dela não tem necessidade para viver. Todos os inúmeros artigos que deviam regulamentar a nova existência de Julien foram acertados; não apenas seu ordenado foi estabelecido em 400 francos, mas também que seria pago antecipadamente, no primeiro dia de cada mês.

– Muito bem! dar-lhe-ei 35 francos, disse o sr. de Rênal.

– Para arredondar, um homem rico e generoso como o senhor prefeito, disse o aldeão com uma voz meiga, concordará com 36 francos.

– Seja, disse o sr. de Rênal, mas acabemos com isso.

No momento, a cólera dava-lhe o tom da firmeza. O aldeão viu que devia deter seu avanço. Foi a vez, então, de o sr. de Rênal contra-atacar. Ele jamais pretendera entregar a primeira mesada de 36 francos ao velho Sorel, muito apressado em recebê-la pelo filho. O sr. de Rênal chegou a pensar que seria obrigado a contar à mulher o papel que desempenhara em toda essa negociação.

– Devolva-me os cem francos que lhe dei, disse ele, com humor. O sr. Durand deve-me alguma coisa. Irei com seu filho arrecadar o tecido preto.

Depois desse gesto de firmeza, Sorel voltou prudentemente às suas fórmulas respeitosas; elas ocuparam um bom quarto de hora. Ao final, vendo que não havia decididamente mais nada a ganhar, retirou-se. Sua última reverência terminou com estas palavras:

– Enviarei meu filho ao castelo.

Era assim que os administrados do sr. prefeito chamavam sua casa quando queriam agradá-lo.

De volta à sua oficina, em vão Sorel procurou pelo filho. Desconfiado do que pudesse acontecer, Julien saíra no meio da noite. Quisera colocar em segurança seus livros e sua cruz da Legião de Honra. Havia transportado tudo para a casa de um jovem comerciante de madeira, seu amigo, chamado Fouqué, que morava na alta montanha que domina Verrières.

Quando reapareceu, o pai disse-lhe: – Sabe Deus, maldito preguiçoso, se alguma vez terás suficiente honra para pagar-me o preço de tua comida, que adianto há tantos anos! Pega teus trapos e vai para a casa do sr. prefeito.

Julien, surpreso de não ser surrado, apressou-se em partir. Mas, tão logo desapareceu da vista de seu terrível pai, diminuiu o passo. Julgou que seria útil à sua hipocrisia passar pela igreja.

A palavra vos surpreende? Antes de chegar a essa horrível palavra, a alma do jovem aldeão percorrera um longo caminho.

Desde que vira, na primeira infância, alguns dragões do 6o regimento, com longas túnicas brancas e capacetes de crinas negras, regressarem da Itália e atrelarem os cavalos à janela gradeada da casa do pai, Julien apaixonara-se pela vida militar. Mais tarde escutava, enlevado, os relatos das batalhas da ponte de Lodi, de Arcole, de Rivoli que o velho cirurgião-mor lhe fazia. Observava os olhares inflamados que o ancião lançava à sua cruz.

Mas, quando Julien tinha catorze anos, começaram a construir em Verrières uma igreja que pode ser chamada de magnífica para uma cidade tão pequena. Suas quatro colunas de mármore, sobretudo, impressionaram Julien; elas se tornaram célebres na região pelo ódio que suscitaram entre o juiz de paz e o jovem vigário, enviado de Besançon, que era tido por espião da Congregação. O juiz de paz esteve a ponto de perder seu cargo, pelo menos era a opinião comum. Não ousara ele disputar com um padre que, a cada quinze dias, ia a Besançon, onde se avistava, diziam, com o bispo?

Nesse meio tempo, o juiz de paz, pai de uma numerosa família, emitiu várias sentenças que pareceram injustas; todas foram proferidas contra os habitantes que liam o Constitutionnel. O bom partido triunfou. Não se tratava, é verdade, senão de quantias de três ou de cinco francos; mas uma dessas pequenas multas teve de ser paga por um frabricante de pregos, padrinho de Julien. Em sua cólera, esse homem exclamava: “Que mudança! E dizer que, há mais de vinte anos, o juiz de paz era considerado um homem de bem!” O cirurgião-mor, amigo de Julien, já havia morrido.

De repente Julien parou de falar de Napoleão; anunciou o projeto de tornar-se padre, e era visto constantemente, na serraria do pai, ocupado em aprender de cor uma bíblia latina que o cura lhe emprestara. Esse bom velho, maravilhado com seus progressos, passava noites inteiras a ensinar-lhe a teologia. Julien demonstrava dian​te dele apenas sentimentos piedosos. Quem poderia adivinhar que aquele jovem com rosto de moça, tão pálido e doce, ocultava a resolução inabalável de preferir expor-se à morte do que não fazer fortuna!

Para Julien, fazer fortuna era antes de mais nada sair de Verrières; ele abominava sua pátria. Tudo o que via ali gelava-lhe a imaginação.

Desde sua primeira infância ele tivera momentos de exaltação. Imaginava então, com delícia, que um dia seria apresentado às belas mulheres de Paris, saberia chamar a atenção delas por algum feito notável. Por que não seria amado por uma delas, como Bonaparte, ainda pobre, fora amado pela brilhante Madame de Beauharnais? Havia muitos anos, Julien não passava talvez uma hora de seu dia sem dizer-se que Bonaparte, tenente obscuro e sem fortuna, fizera-se o senhor do mundo com sua espada. Essa ideia o consolava de seus infortúnios que ele acreditava grandes, e redobrava sua alegria, quando a tinha.

A construção da igreja e as sentenças do juiz de paz de repente o iluminaram; uma ideia o deixou como enlouquecido durante algumas semanas, e enfim apoderou-se dele com a onipotência da primeira ideia que uma alma apaixonada acredita ter inventado.

“Quando Bonaparte fez que falassem dele, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava em moda. Hoje, vemos padres de quarenta anos com rendimentos anuais de cem mil francos, isto é, três vezes mais que os famosos generais da divisão de Napoleão. Eles precisam de pessoas que os apoiem. Vejam esse juiz de paz, tão sensato, tão honesto até então, tão velho, que se desonra por temor de desagradar um jovem vigário de trinta anos. Preciso ser padre.”

Certa vez, em meio à sua nova piedade, fazendo já dois anos que Julien estudava teologia, ele foi traído por uma irrupção súbita do fogo que devorava sua alma. Foi na casa do sr. Chélan, num jantar de padres durante o qual o bom cura o apresentara como um prodígio de instrução: sucedeu-lhe de enaltecer Napoleão com furor. Ele atou o braço direito contra o peito, alegou tê-lo deslocado ao remover um tronco de pinheiro, e o manteve durante dois meses nessa incômoda posição. Depois desse castigo aflitivo, perdoou-se. Eis o jovem de dezenove anos, mas de aparência frágil e a quem dariam no máximo de​zessete, que agora entrava com um pequeno pacote sob o braço na magnífica igreja de Verrières.

Encontrou-a escura e solitária. Por ocasião de uma festa, todas as janelas do prédio haviam sido cobertas de pano carmesim. Disso resultava, aos raios do sol, um efeito de luz deslumbrante, de caráter mais imponente e mais religioso. Julien estremeceu. Sozinho na igreja, instalou-se no banco que tinha a mais bela aparência, e que trazia as armas do sr. de Rênal.

Sobre o genuflexório, Julien observou um pedaço de papel impresso, posto ali como para ser lido. Viu escrito:

Detalhes da execução e últimos momentos de Louis Jenrel, executado em Besançon, no...

O papel estava rasgado. No verso liam-se as duas primeiras palavras de uma linha: O primeiro passo.

– Quem teria deixado esse papel aí?, disse Julien. Pobre infeliz, acrescentou com um suspiro, seu nome termina como o meu... E amarrotou o papel.

Ao sair, Julien acreditou ver sangue junto à pia; era água benta derramada: o reflexo das cortinas vermelhas que cobriam as janelas a fazia parecer sangue.

Por fim, Julien envergonhou-se de seu terror secreto.

Serei um covarde?, pensou. Às armas!

Essa expressão frequentemente repetida nos relatos de batalha do velho cirurgião era heroica para Julien. Ele levantou-se e caminhou rapidamente até a casa do sr. de Rênal.

Apesar dessa resolução corajosa, assim que a avistou a vinte passos foi tomado de uma invencível timidez. A grade de ferro estava aberta, a casa parecia-lhe magnífica, era preciso entrar lá dentro.

Julien não foi a única pessoa cujo coração agitou-se por sua chegada a essa casa. A extrema timidez da sra. de Rênal perturbava-se pela ideia desse estranho que, em virtude de suas funções, ia constantemente estar entre ela e os filhos. Estava acostumada a ter os filhos dormindo em seu quarto. De manhã, muitas lágrimas rolaram quando viu transportarem suas camas para os aposentos destinados ao preceptor. Em vão pediu ao marido que a cama de Stanislas-Xavier, o mais jovem, voltasse a seu quarto.

A delicadeza da mulher desenvolvera-se a um ponto extremo na sra. de Rênal. Ela fazia a imagem mais desagradável do preceptor, um indivíduo grosseiro e mal penteado, encarregado de repreender os filhos unicamente porque sabia latim, uma língua bárbara em razão da qual as crianças seriam castigadas.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Negociação (V)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Constrangimento (VI)


Assim é a vida...

Emerson, Lake and Palmer




e as cinzas ainda permanecem?












quarta-feira, 28 de março de 2018

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (2)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Ao "Chat-Qui-Pelote"
Dedicado a mlle. Marie de Montheau

(Parte 2)





Guillaume tinha duas filhas. A mais velha, srta. Virgínia, era em tudo o retrato da mãe. A sra. Guillaume, filha de sieur Chevrel, mantinha-se tão ereta no banco da caixa que por mais de uma vez ouvira graciosos apostarem que ela estava ali empalada. Sua figura magra e alta atraía uma devoção desmedida. Sem graças e sem maneiras amáveis, a sra. Guillaume enfeitava habitualmente a cabeça, quase sexagenária, com uma touca, cuja forma era invariável e guarnecida de fitas pendentes, como as de uma viúva. Toda a vizinhança chamava-a de irmã porteira. Tinha a palavra breve, e havia em seus gestos qualquer coisa dos movimentos entrecortados de um aparelho telegráfico[31]. Seus olhos, claros como os de um gato, pareciam ter rancor contra todos pelo fato de ela ser feia. A srta. Virgínia, educada, assim como a irmã mais nova, sob as leis despóticas da mãe, alcançara a idade dos vinte e oito anos. A mocidade atenuava o ar desgracioso que a semelhança com a mãe dava por vezes à sua fisionomia, mas o rigor materno dotara-a de duas grandes qualidades que podiam contrabalançar tudo: era meiga e paciente. A srta. Augustina, com dezoito anos apenas, em nada se parecia ao pai nem à mãe. Era dessas raparigas que, pela ausência de qualquer laço físico com os pais, fazem crer no ditado devoto: “Deus é quem dá os filhos”. Augustina era pequena, ou, para melhor descrevê-la, mimosa. Graciosa e cheia de candor, um homem da alta sociedade nada poderia censurar a essa encantadora criatura, a não ser gestos acanhados ou certas atitudes vulgares e, por vezes, constrangimento. Seu semblante mudo e imóvel respirava essa melancolia passageira que se apodera de todas as raparigas demasiado fracas para ousar resistir à vontade de uma mãe. Sempre modestamente vestidas, as duas irmãs não podiam satisfazer a faceirice inata na mulher senão por um luxo de asseio que lhes assentava às mil maravilhas e punhaas em harmonia com aqueles balcões lustrosos e aquelas prateleiras sobre as quais o velho criado não consentia um grão de pó, e, numa palavra, com a simplicidade antiga de tudo que as cercava. Obrigadas pelo seu gênero de vida a procurar elementos de felicidade em trabalhos obstinados, Augustina e Virgínia até então só haviam dado motivos de contentamento a sua mãe, que, secretamente, se felicitava
pela perfeição do caráter das filhas. É fácil imaginar os resultados da educação que as duas haviam recebido. Educadas para o comércio, habituadas a só ouvir raciocínios e cálculos tristemente mercantis, não tendo estudado mais do que gramática, escrituração, um pouco de história judaica, a história da França em Le Ragois[32] e lendo somente os autores cuja leitura lhes era permitida pela mãe, suas ideias não tinham adquirido grande descortino; conheciam perfeitamente os arranjos domésticos, sabiam o preço das coisas, avaliavam as dificuldades que há em juntar dinheiro, eram econômicas e tinham grande respeito às qualidades do negociante. Apesar da fortuna do pai, eram tão hábeis em cerzir como em remendar: seguidamente a mãe falava em ensinar-lhes a cozinhar, a fim de que soubessem determinar um jantar e repreender a cozinheira com conhecimento de causa. Ignorando os prazeres sociais e vendo como se escoava a vida exemplar dos pais, bem raramente deixavam ir o olhar além do recinto da velha casa patrimonial, que para a mãe delas era todo o universo. As reuniões motivadas pelas solenidades de família constituíam todo o futuro de suas alegrias terrenas. Quando o grande salão, situado no segundo andar, se abria para receber a sra. Roguin — uma srta. Chevrel, mais moça quinze anos do que a prima e que usava diamantes; o jovem Rabourdin, subchefe das Finanças; o sr. César Birotteau, rico perfumista, e sua mulher, a quem chamavam sra. César; o sr. Camusot, o mais rico comerciante de sedas da rue des Bourdonnais, e seu sogro, o sr. Cardot; dois ou três velhos banqueiros e mulheres irrepreensíveis —, os aprestos devidos ao modo como eram empacotados a prataria, as porcelanas de Saxe, as velas, os cristais, traziam uma variante à vida monótona daquelas três mulheres que iam e vinham, movimentando-se tanto quanto religiosas para a recepção de um bispo. Depois, quando, à noite, cansadas as três de terem limpado, esfregado, desempacotado, posto no lugar os ornamentos da festa, as duas filhas ajudavam a mãe a deitar-se, a sra. Guillaume dizia-lhes:

— Nada fizemos hoje, minhas filhas!

Quando, nessas assembleias solenes, a irmã porteira permitia que dançassem, removendo as partidas de bóston, de uíste e de gamão para o seu quarto de dormir, essa concessão era classificada entre as felicidades mais inesperadas e causava uma ventura igual à de ir a dois ou três grandes bailes, aonde Guillaume levava as filhas na época do Carnaval. Enfim, uma vez por ano, o honesto negociante dava uma festa, para a qual nada era poupado. Por mais ricas e elegantes que fossem as pessoas convidadas, ninguém se lembrava de faltar, pois as mais importantes casas da praça recorriam ao imenso crédito, à fortuna ou à velha experiência do sr. Guillaume. Mas as duas filhas desse digno negociante não aproveitavam tanto como se poderia supor das lições que a sociedade oferece às almas jovens. Apresentavam-se nessas reuniões, aliás inscritas na lista dos vencimentos de letras da casa, com vestidos e adornos cuja mesquinhez as fazia corar. O modo como dançavam nada tinha de notável, e a vigilância materna não lhes permitia manter uma conversação mais do que por meio de “sim” e de “não” com os seus pares. Demais, a lei da velha tabuleta do “Chat-qui- pelote” ordenava-lhes estar de volta às onze horas, momento em que bailes e festas começavam a animar-se. Assim é que os seus prazeres, aparentemente de acordo com a riqueza do pai, se tornavam muitas vezes insípidos por circunstâncias decorrentes dos hábitos e princípios da família. Quanto à sua vida habitual, uma única observação bastará para completar a pintura. A sra. Guillaume exigia que as duas filhas estivessem vestidas muito cedo, que descessem todos os dias à mesma hora e submetia suas ocupações a uma regularidade monástica. Entretanto, Augustina recebera do acaso uma alma bastante elevada para que não sentisse o vazio dessa existência. Seus olhos azuis por vezes se erguiam como para interrogar as profundezas daquela escada sombria e daquela loja úmida. Depois de haver sondado aquele silêncio de claustro, ela parecia ouvir ao longe confusas revelações dessa vida de paixões que dá maior valor aos sentimentos do que às coisas; em tais momentos, seu rosto criava cor, suas mãos inativas deixavam a branca musselina cair sobre o carvalho polido do balcão, e logo sua mãe lhe dizia com uma voz que se conservava sempre desagradável, mesmo nos tons mais suaves:

— Augustina! Em que estás pensando, minha joia?

É possível que Hipólito, conde de Douglas e o Conde de Comminges,[33] dois romances achados por Augustina no armário de uma cozinheira recentemente despedida pela sra. Guillaume, tivessem contribuído para desenvolver as ideias da rapariga, que os devorara furtivamente durante as longas noites do inverno anterior. As expressões de vago desejo, a voz suave, a pele de jasmim e os olhos azuis de Augustina tinham, pois, acendido na alma do pobre Lebas um amor tão violento quanto respeitoso. Por um capricho fácil de ser compreendido, Augustina não sentia nenhuma inclinação pelo órfão: talvez por não saber que era amada. Em compensação, as pernas compridas, os cabelos castanhos, as mãos grandes e a aparência vigorosa do primeiro caixeiro tinham causado uma secreta admiração à srta. Virgínia, a qual, não obstante seus cinquenta mil escudos de dote, não fora pedida em casamento por ninguém. Nada mais natural do que essas duas paixões desencontradas, nascidas no silêncio daqueles obscuros escritórios, como florescem violetas na profundeza de um bosque. A muda e constante contemplação que reunia os olhos dessa gente moça por uma necessidade de distrações, em meio a trabalhos obstinados e uma paz religiosa, tinha de, cedo ou tarde, excitar sentimentos de amor. O hábito de ver constantemente uma pessoa faz descobrir nela, insensivelmente, as qualidades da alma e acaba por fazer desaparecer os defeitos.

“Do jeito por que vai este homem, nossas filhas não tardarão a pôr-se de joelhos ante um pretendente!”, disse consigo o sr. Guillaume, ao ler o primeiro decreto pelo qual Napoleão antecipava a idade para o recrutamento.

Desde esse dia, desesperado por ver a filha mais velha emurchecer, o velho negociante recordou-se de ter casado com a srta. Chevrel pouco mais ou menos nas mesmas condições em que se achavam José Lebas e Virgínia. Que bom negócio casar a filha e saldar uma dívida sagrada, prestando a um órfão o benefício que em outros tempos recebera de seu predecessor nas mesmas circunstâncias! Com trinta e três anos de idade, José Lebas pensava nos obstáculos que quinze anos de diferença punham entre Augustina e ele. Demasiado perspicaz para não perceber as intenções do sr. Guillaume, conhecia-lhe muito bem os princípios inexoráveis para saber que a mais moça jamais casaria antes da primogênita. O pobre caixeiro, cujo coração era tão bem formado quanto suas pernas eram compridas e seu busto atarracado, sofria, pois, em silêncio.

Assim estavam as coisas naquela pequena república, que, no meio da rue SaintDenis, se assemelhava bastante a uma sucursal da Trappe.[34] Mas para dar uma ideia exata dos acontecimentos exteriores, como dos sentimentos, é necessário retornar a alguns meses antes da cena pela qual começa esta história. Ao anoitecer, um rapaz, ao passar pela obscura loja do “Chat-qui-pelote”, ficara um momento a contemplar o aspecto de um quadro que teria feito parar todos os pintores do mundo. A loja, não estando ainda iluminada, formava um plano escuro, no fundo da qual se via a sala de jantar do negociante. Uma lâmpada astral esparzia ali a luz amarela que dá tanta graça às telas da escola holandesa. As toalhas alvas, a prataria, os cristais formavam acessórios brilhantes mais embelezados ainda pelos contrastes de luz e sombra. A figura do pai de família e a de sua mulher, o
semblante dos caixeiros e as formas puras de Augustina, a dois passos da qual se achava uma pesada rapariga bochechuda, compunham um grupo de tal modo curioso, as cabeças eram tão originais, e cada caráter tinha uma expressão tão franca, adivinhava-se tão bem a paz, o silêncio e a vida modesta daquela família que, para um artista acostumado a exprimir a natureza, havia qualquer coisa de desesperador em querer reproduzir essa cena fortuita. O transeunte era um jovem pintor que, sete anos antes, tinha conquistado o grande prêmio de pintura. Voltava de Roma. Sua alma nutrida de poesia, seus olhos saturados de Rafael e de Michelangelo tinham sede da verdadeira natureza, depois de uma longa permanência no país pomposo onde a arte lançara por tudo a sua grandiosidade. Falso ou justo, tal era o seu sentimento pessoal. Entregue por muito tempo à fuga das paixões italianas, seu coração suspirava por uma dessas virgens modestas e sonhadoras que, infelizmente, só pudera encontrar em pintura, em Roma. Do entusiasmo impresso em sua alma, exaltada pelo quadro natural que estava contemplando, passou suavemente a uma profunda admiração à figura principal: Augustina parecia pensativa e não comia; por uma disposição da lâmpada, cuja luz lhe caía em cheio no rosto, seu busto parecia mover-se num círculo de fogo que lhe destacava mais nitidamente os contornos da cabeça e a iluminava de um modo quase sobrenatural. O artista comparou-a involuntariamente a um anjo exilado, com a nostalgia do céu. Uma sensação quase desconhecida, um amor límpido e fervente inundou-lhe o coração. Depois de ter ficado durante um momento como que esmagado sob o peso de suas ideias, arrancou-se à sua felicidade, voltou para casa, não comeu, não dormiu. No dia seguinte entrou no seu ateliê e dele só saiu depois de ter lançado numa tela a magia daquela cena que de algum modo o tinha fanatizado. Enquanto não possuiu um fiel retrato do seu ídolo, sua felicidade não foi completa. Passou várias vezes pela frente da casa do “Chat-qui-pelote”: atreveuse mesmo a entrar uma ou duas vezes, sob um disfarce, a fim de ver de mais perto a encantadora criatura que a sra. Guillaume cobria com a sua asa. Durante oito meses inteiros, entregue ao seu amor e aos seus pincéis, permaneceu invisível para os amigos, até os mais íntimos, esquecendo as rodas sociais, a poesia, o teatro, a música e seus hábitos mais queridos. Girodet,[35] certa manhã, forçou todas essas ordens que os artistas conhecem e sabem fraudar, conseguindo chegar junto a ele, e acordando-o com esta pergunta:

— Que vais expor no Salão?

O artista toma da mão do amigo, leva-o ao seu ateliê, descobre um pequeno quadro de cavalete e um retrato. Depois de lenta e ávida contemplação das duas obras-primas, Girodet salta ao pescoço do seu camarada e beija-o sem achar o que lhe dizer. Suas emoções não podiam ser expressas, a não ser como ele as sentia, de alma para alma.

— Estás apaixonado? — indagou Girodet.

Ambos sabiam que os mais belos retratos de Ticiano, de Rafael e de Leonardo da Vinci eram devidos a sentimentos exaltados, que, sob múltiplas condições, engendram, aliás, todas as obras-primas. Como única resposta, o jovem artista curvou a cabeça.

— Que sorte tens tu de poder estar apaixonado aqui, de volta da Itália! Não te aconselho a expor obras como essas no Salão — acrescentou o grande pintor. — Olha, esses dois quadros não seriam ali compreendidos. Essas cores verdadeiras, esse trabalho prodigioso ainda não podem ser apreciados; o público não está mais acostumado a tanta profundeza. Os quadros que nós pintamos, meu amigo, são painéis, são biombos. É preferível fazermos versos, traduzir os antigos! Há mais glória a esperar desse trabalho do que das nossas infelizes telas.

Não obstante esse caridoso conselho, as duas telas foram expostas. A cena do interior fez uma revolução na pintura. Deu origem a esses quadros de estilo, cuja prodigiosa abundância, levada a todas as nossas exposições, poderia fazer crer que são obtidos por processos puramente mecânicos. Quanto ao retrato, são poucos os artistas que não conservam a recordação dessa tela viva, à qual o público, algumas vezes justo em conjunto, atribuiu os louros com que o próprio Girodet a coroou. Os dois quadros viram-se cercados por uma multidão imensa. Esses espectadores, como dizem as mulheres, matavam-se para vê-los. Especuladores, grão-senhores, cobriram-nas de duplos napoleões, mas o artista recusou-se, obstinadamente, a vendê-las e também a fazer cópias.

Ofereceram-lhe uma quantia enorme para fazê-los gravar, mas os negociantes não foram mais felizes do que os amadores. Conquanto essa aventura fizesse ruído na sociedade, não era de molde a chegar ao fundo da pequena Tebaida[36] da rue Saint-Denis. Não obstante, ao vir fazer uma visita à sra. Guillaume, a mulher do notário falou na exposição diante de Augustina, a quem muito queria, e explicoulhe as suas finalidades. A tagarelice da sra. Roguin inspirou naturalmente a Augustina o desejo de ver os quadros e a temeridade de pedir secretamente à prima que a acompanhasse ao Louvre. A prima foi feliz nas negociações que entabulou junto à sra. Guillaume para obter a autorização de arrancar a priminha a seus tristes trabalhos por cerca de duas horas. A moça penetrou, pois, através da multidão, até o quadro coroado. Um frêmito fê-la estremecer, como uma folha de bétula, quando se reconheceu. Teve medo e olhou em volta para se reunir à sra. Roguin, da qual se vira separada por uma onda de gente. Em tal momento seus olhos cheios de susto toparam com o semblante inflamado do jovem pintor. Lembrou-se de súbito da fisionomia de um passeante que, curiosa, notara muitas vezes, julgando ser algum novo vizinho.

— Está vendo o que o amor me fez fazer? — sussurrou o artista ao ouvido da tímida criatura, que ficou apavorada com essas palavras.

Ela armou-se de uma coragem sobrenatural para fender a multidão e conseguir chegar junto à prima, que ainda se esforçava por atravessar a massa de povo que a impedia de chegar perto do quadro.

— A senhora ficaria asfixiada — exclamou Augustina. — Vamos embora.

Mas há no Salão certos momentos durante os quais duas mulheres nem sempre têm liberdade de se movimentar como querem nas galerias. A srta. Guillaume e sua prima foram empurradas até a alguns passos do segundo quadro, em consequência dos movimentos irregulares que a multidão lhes imprimia.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[25]Caracala: imperador romano (188-227). David: Pierre-Jean David d’Angers (1788-1856), escultor, autor, entre outras obras, de um busto de Balzac.

[26]Um nome odioso: “janela de guilhotina”.

[27]Humboldt: Alexander von Humboldt (1769-1850), sábio naturalista alemão, autor de Kosmos, ou descrição física do mundo. Gimnoto: peixe elétrico teleósteo, de água doce.

[28]Preboste dos mercadores: antigamente, o primeiro magistrado municipal de Paris, chefe dos comerciantes.

[29]Mercúrio: na mitologia antiga, deus do comércio.

[30]Maximum: tabelamento dos gêneros. Aqui o autor alude especialmente ao decreto de tabelamento publicado durante a Revolução Francesa. Sua publicação e revogação ocasionaram grandes desordens, em particular manifestações contra os industriais e os atacadistas.

[31]Os movimentos entrecortados de um aparelho telegráfico. Para compreender o trecho é preciso lembrar-se de que se trata do telégrafo Chappe, que durante cinquenta anos funcionou na França e foi adotado em outros países. Segundo amável informação de Antônio Gil (A. P. Carvalho), o aparelho constava de uma prancheta de 4 metros, firmada pelo centro na ponta de um mastro e tendo nas extremidades duas outras réguas de 1 metro. Todo o sistema era articulado, e por meio de cordas e polias, manejadas dentro da torre onde era fincado o mastro, tomavam as pranchetas várias posições, cada qual representando determinado sinal de um código. Tais pranchetas e seus movimentos, efetuados com grande rapidez pelo operador, eram vistos a grandes distâncias através de óculos de alcance. A mensagem expedida por um posto era imediatamente repetida no posto seguinte à medida que ia sendo articulada.

[32] Le Ragois: trata-se do abade Claude Le Ragois, diretor de consciência de mme. de Maintenon, autor da Introdução sobre a história da França e a história romana (1684), obra muitas vezes reeditada, apesar de medíocre.

[33] Romances sentimentais, respectivamente da sra. d’Aulnoy e da sra. de Tencin.

[34]A Trappe: abadia fundada em 1140, reformada pelo abade do Rancé em 1662, e cujos religiosos observavam um regulamento de extremo rigor.

[35]Girodet: Anne-Louis Girodet de Roussy (1767-1824), pessoa real, pintor famoso na época, autor, entre outros quadros, do Sonho de Endimião. O trecho dá um bom exemplo de como Balzac introduz pessoas reais entre suas criaturas de ficção.

[36]Tebaida: antigo nome do Alto Egito, para cujos desertos se retiraram os primeiros eremitas cristãos; eremitério.



Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (3)