quarta-feira, 21 de março de 2018

histórias de avoinha: a inácia e as muié de barriga

mulheres descalças


a inácia e as muié de barriga
Ensaio 118B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


quando o siô filipi entrô no quarto pra sabê dos preparativo encontrô inácia sentada no cantinho mais escuro. ela tava com as mão cruzada à frente do corpo, tinha um paiêro acendido e fumegante na boca. o gole da cachaça de fumo descendo na goela. a preta num ria, mais tumbém num chorava, muntu menos resmungava, ela soltava silenciosa e serena os gole da fumaça de fumo qui ficava boiando pelo quarto. ele num sabia dizê se ela tumbém rezava, mais parecia encontrá consolo e respeito onde tava

oiô na sua volta, colocô uma das mão na calça e chamô a partêra mais nova quia inácia, uma preta mina com os pé descalço, saia de algodão, bata branca e surrada, lenço branco na cabeça. uma bela e elegante muié qui tava ali pra acompanhá dona felicidade perpétua naquela espera de dá furo pra vida. carregava abraçada no peito uma jarra de água e uma fila de sonho desmanchado qui pesava e salpicava com sangue o couro do peito, resistia uqui dava naquela vida de espera pela morte inté sentí dô nas costa e ficá parecendo marmelada mole. ele oiô pra muié e viu, ela sabia uqui carregava: a beleza qui aparenta qui ela é verdadeira, boa e bela. coitado dos feio deste mundo das aparência qui juramenta a beleza como invenção do céu e como nosso consolo da magia pra sempre, inté depois da vida; pelo menos, enquanto num ficá perdida a fé nas coisa bela e continuá o medo do abismo onde fica escondida as coisa feia e sem sentido

o siô filipi puruguntô se num era o causo de começá logo uqui já devia tê terminado, A mãinha Inácia, siô Filipi, começô respondê a mais nova, é a mãinha de umbigo de muntus pretu e preta, tumbém amparô na Villa o nascimento de munta criança dos branco. Ela tem as mão serena como as água doce, o instinto da proteção e a sabedoria das força da natureza. Reza, cuida e se curva pra acoiê a vida. Ela sabe escutá e falá com as muié de barriga, sabe usá das lembrança enquanto tinge as mão com o sangue qui se derrama das entranha do nascimento. É uma preta mágica. Num se preocupe, deixe ela quietinha naquele aconchego. Ela tá ouvindo tudo qui precisa escutá da lua, das nuvem, das história e das batida do tambô. A obrigação tá marcada, ela num vai faltá. É uma muié qui só luta pra vencê.

E ocê não sabe fazer o que todos dizem que ela sabe fazer?

Sei fazê nascê e dizê as palavra da mãe Inácia, mais gosto de ouví ela dizendo da vida uqui a vida é: mágica. Só ela sabe o meió jeito de dizê pra vida qui toda vida é bem-vinda. É bão demais sabê escutá quem sabe dizê as palavra do conforto e da benzedura, parô as palavras qui soltava no quarto pruqui lembrô dos abicu. num achô jeito pra anunciá os abicu nem ia dizê pru siô filipi das mágica dos num nascido, mais bem qui podia tê dito tumbém qui: A Inácia é a mãe de umbigo quius abicu num teve e num vai tê, mais num disse, teve no ponto de dizê, quase soltô as palavra da garganta, quase chorô, mais num disse dos abicu. ela num viu vontade de entendê no siô filipi, e muntu menos, viu vontade dele creditá. ele só tem crença nuqui vê pra se sentí garantido e seguro. precisa tê explicação pra tudo no mundo, mais esquece qui o meió jeito pra tê consideração e fiança da vida é sabê dizê obrigado

o siô filipi manda e num pede, já tinha ordenado qui os pedido da partêra mais nova fosse aprontado. ele num sabia mais uqui fazê nem uqui mandá, aquele causo de nascimento num prestava atenção nas razão dele. naquele quarto do nascimento era um hômi parecido com um útil inútil, parecia tê utilidade, mais tava abandonado; parecia tê podê, mais tava sem serventia pru nascimento pruqui num vê com atenção uqui precisa vê com delicadeza, carece qui alguém lhe assopre no ouvido as palavra da calmaria, mais ele só qué sabê das resposta pras prugunta dele, Tudo pronto?

Sim, tá tudo pronto, siô Filipi, respondeu a partêra mais nova

Vamos revisar, a voz do siô filipi parecia tá mofada, oiava nos óio da mais nova no meio da penumbra do quarto, mais num enxergava uqui os óio num mostrava, num sabia vê e num sabia dá sentido prus artefato dos espritu nem pru próprio destino dos pedaço da vida qui tinha pra usá na eternidade

Num carece, siô Filipi... tá tudo arrumadinho.

o siô filipi num respondeu logo, tragô de boca aberta o nevoêro de cachaça da inácia qui agora tava com os dois joêio escorado no chão do quarto pra mostrá consideração, humildade e bão senso entre o qui tá no alto e uqui tá embaixo

Por favor, moça... vamos revisar.

a voz num tinha quase força, parecia quase suplicá. ele queria sê de alguma ajuda, queria sabê fazê mais qui tomá e mandá e castigá. na verdade, uqui ele num conseguia dizê é qui queria manejá o destino da vida e já tê tudo resolvido com o fiu já nascido nos braço. oiô agradecido pra siá felicidade perpétua pelo esforço feito, a paciência pra aguardá e esperá a chegada da tatuzêra mais véia

a mais nova respondeu tremendo na voz e nas mão, anunciô os cuidado preparado pru nascimento, Já arranjei duas jarras com água, duas bacia de mão, uma bacia de banho, muntus pano, lençól e toalhas.

Só isso?

o siô filipi num podia creditá qui pru nascimento do seu fiu só era preciso aquela arrumação de pano e água. ele num era covarde, mais tava com medo. num sabia como podia sê feito o nascimento nem ia puruguntá como limpá a sujêra. nunca limpô a própria sujice e num ia começá agora limpá a porcaria dos otro. a mais nova apontô pra mais véia qui continuava no canto ajoêiada e com a testa tocava o chão, O resto qui vai tê uso a Inácia carrega na sacola, na cabeça, nas mão e no coração. Ela toma as decisão duqui precisa sê feito.

continuava parado no meio da penumbra, mais, desta veiz, o siô filipi oiô demorado pra inácia e depois pra siá perpétua, ele num creditava qui ela tava rezando; no seu modo de vê, ela tava durumindo, perdendo tempo precioso

E o quê a parteira carrega na sacola?

a mais nova num conseguiu abrí a boca com medo das palavra espatifá nas descida inté o chão, tava com as vista fincada nos pé descalço. as vontade acomodada com desgosto, o corpo todo apertado desde o tempo do desembarque do tumbêro, num podia esquecê e num sabia deslembrá

Isso num posso respondê, siô Filipi. Cada muié partêra tem as suas vontade de chá, erva e reza. As utilidade qui nóis usa pru trabáio do parto vem das coisa já vivida. O recheio é bão pra refiná o gosto, mais uqui faz a diferença é as mão qui sova o pão inté sabê o ponto de amassá e pará de sová.

o siô filipi qui num ficô gostoso da resposta nem se deu ao trabáio de retrucá

E na sua sacola? Ocê é parteira, certo? Já fez algum parto sozinha? O que ocê carrega na sua sacola de parteira?

Na sacola só carrego os chá e as erva pru gosto e atendimento qui a vida ensina pra cada socorro feito. Num é só do serviço de aparadêra o nosso compromisso com a vida, mais, no caso da siá felicidade perpétua, qui precisa da tatuzêra, é bão tê na sacola um limão, eucalipto, coerana, cipó-chumbo, juciri, marupa, beldroega, algodoeiro, jequitibá, salva-do-rio-grande-do-sul...

Chega, está bem. Está bem... só espero que ocês saibam escolher as ervas e o jeito certo de tirar o meu filho da barriga da mãe.

É pra tê lembrança do meió serviço qui precisa sê feito com simplicidade, desembaraço e zelo quia Inácia reza e cisma de lembrá com todo cuidado pra tudo sê bem-feito, pensado e previsto com cautela; sem esquecê a cortesia, a dedicação, o capricho e a consideração com todas vida das vida.

Mas... e ocê?

Uqui tem eu, siô Filipi?

Já fez algum serviço de parto sozinha?

Já, siô Filipi. Comecei muntu cedo imitá mãinha. Ficava na guarnição da ajuda qui reza e corre prum lado e otro com as bacia, as jarra d’água e os pano. Minha mãinha ganhô alforria depois de fazê uma parição as pressa, lá na fazenda Sepé, uma lonjura com muntas légua daqui. Tumbém foi uma muié de munta formosura e talento pra ajudá a vida nascê. No começo, eu num queria. Mais ela oiava pra mim quieta inté qui falava: Mifia, ocê é a mais corajosa das cria piquininina qui chegô no tumbêro. Veio carregada da mãinha finada no parto inté os braço dessa preta. Ocê precisa aprendê fazê parto. Num dá pra escoiê uqui é preciso fazê. É bão aprendê o serviço. Com o tempo ocê pega gosto de sê tatuzêra.

o siô filipi oiô pra siá felicidade perpétua, ela parecia cada hora qui passava mais desacomodada com as dô. a moça de barriga segurava com uma das mão as duas mão da mãinha do siô filipi, com a otra mão apertava a mão da inácia. deu pra vê qui o siô filipi assustô de num vê e num sabê como inácia saiu do cantinho e passô sem sê vista

Mas ocê carrega duas sacolas...

Sim, levo as duas pendurada atravessada no peito. Carrego água de canela, óleo de amêndoa doce, óleo de rícino, linhaça em pó, mostarda em pó, banha das dô, fôia de laranjêra, cigarro de páia com alecrim, alfazema e benjoim pra fumação do quarto do nascimento e afugentação dos mau espritu... e a tesôra...

Tesoura?

perdeu todo o jeito sereno de desdém, levô a mão inté a cabeça, coçô os cabelo enquanto a tatuzêra mais nova explicava o uso da tesôra

Pra cortá o cordão do umbigo, siô Filipi, as muié do quarto num conseguiu evitá o riso com o espanto daquele hômi tão dono de quase tudo

E dói?

e tão sem sabê de quase tudo das muié, sem sabê quase nada dele mesmo

É tanta dô pra sentí qui cortá num dói. E tem a reza qui ajuda, mais uqui conta é a vontade da moça sê mais forte qui a dô qui vem do nascimento. O siô precisa confiá. A tatuzêra sabe uqui tem qui fazê e a siá Felicidade Perpétua vai fazê uqui precisa fazê

Tá feito, a mais antiga puruguntô pra mais nova

Tá, mãinha, respondeu a mais nova e saiu do quarto

voltô com uma jarra, Aqui, mãinha: amornada e perfumada.

Me dê, e esperô a mais nova enchê a caneca, depois foi inté a moça de barriga, É bão vosmecê tomá dois ou trêis gole dessa bebida morna com arruda, trêis gole bem comprido. É bão pra criança qui já tá pra saí da barriga, assim já vem com escudo contra os mau-oiado.

siá felicidade perpétua aproximô a caneca pra sentí o aroma qui subia da bebida. oiô pra inácia como a fia oiá pra mãe: com confiança e esperança, Inácia... me dá a graça de ter um parto feliz, para o meu bebê nascer com saúde, forte e perfeito, depois do pedido feito tomô dois gole e num feiz careta nem cara de nojo

Isso, meu bem... mais otro. Agora, pega esse ramo e enrola trêis veiz nas mão, chêra e devolve.

oiô pra mais nova, mais num precisô puruguntá, Tá pronta, mãinha. A água tá saborosa com perfume da arruda e hortelã pru banho de chêro.

a mais véia foi pru seu cantinho pôco alumiado pela luz de fogo dos lampião e rezô




Fui buscar o meu Congá
Que deixei lá na Ruanda
Já chegou Caboclo Arruda
Pra vencer esta demanda...
As falanges do Arruda
Têm sempre boa vontade
Andam por toda parte
Espalhando a caridade
As falanges do Arruda
São de força e ação
Do nosso Pai Oxalá
Elas têm a proteção.



tudo dito tão piquininino qui só a mais nova conseguia entendê a língua dita pra renová as força dos espritu, como um amigo qui recebe otro amigo, agradecido pelo encontro gostoso do sopro da vida. assim, uqui tava sendo dito era dito pru chamamento dos encatado distraído, eles precisava tá na volta pra dá segurança, pra oferecê ajuda e recebê o novo espritu com a luz do respeito, coragem, saúde, fortuna e, sobretudo, com o amô da generosidade e da misericórdia. nem sempre dá pra vê o clarão da luz, mais ele existe rezumbindo a vida com dignidade

inácia voltô do cantinho com o oiá só pru siô filipi, parecia num sabê qui as muié tava tudo ali; sabê ela sabia, mais num tinha importância, só oiava e falava pru siô filipi. queria sabê se era o caso dele querê conhecê os aperto, as inquietude e as preocupação do nascimento

O siô Filipi é daqui do quarto. A hora qui tá chegando é de muntu conforto entre as muié qui tá na casa. E o siô tá convidado pra ficá, mais caso o siô num qué ficá, é justo, ninguém tem o mesmo querê, a mesma vontade de vê a vida nascê, mais o siô precisa decidí agora onde qué ficá... aqui ou fora daqui?

o dono daquela família oiava atento pra inácia, num sabia dizê uqui aquela muié tinha, nunca nehuma muié falô nem vai falá assim, só essa inácia, Dona Inácia faça com que o meu filho nasça, ela continuô oiando pra ele inté o siô filipi desviá as vista pra siá felicidade perpétua

ele se aproximô da siá moça, deu um beijo suave na testa e sentiu ela apertá sua mão, Nosso filho está nascendo, Filipi.

Então, é melhor eu sair agora. O que não vejo não existe.

inácia procurô lhe apressá

A vontade decidida é sua. Os espritu da sabedoria e da bondade vai acompanhá o siô Filipi.

Prefiro que isso tudo fique aqui, onde serão mais úteis.

Seja feita sua vontade, pensô inácia


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