domingo, 18 de março de 2018

Gente Pobre - 25. o mais infeliz dos mortais! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


25.




4 de agosto



Bárbara Alexeievna, meu amor: 


São precisamente estes choques imprevistos que me desconcertam. Estas horríveis calamidades dão cabo de mim. Esses insulsos peralvilhos, esses velhotes desprezíveis acabarão por fazer-nos adoecer, não só a si, meu amor, com os desgostos que lhe causam, mas também a mim, a quem esses malandros darão o golpe mortal. São capazes de o fazer, asseguro-lhe, querida. Contudo, seria mais fácil eu deixar-me matar do que não lhe prestar o meu auxílio. Se não pudesse ajudá-la, morreria, querida Bárbara, isso seria a minha morte, a minha verdadeira morte! Mas logo que eu consiga socorrê-la, fuja de mim sem demora, como um pardal, pois só assim se verá livre dessa chusma de aves de rapina que lhe andam a rondar o ninho. Dou-lhe este conselho, apesar de ser isso o que mais me aflige. O que eu sofro por sua causa! Como é cruel, minha amiga! Afligem-na, ofendem.na, pobre passarinho, meu amor, fazem-na sofrer continuamente... E como se isso fosse pouco, preocupa-se ainda com outras coisas que me desgostam a mim também. Promete reembolsar-me do dinheiro à custa do seu trabalho! Quer dizer: fraca como está, vai pôr-se a trabalhar com afinco a fim de poder dar-me o dinheiro dentro do prazo marcado. Já pensou bem no que promete? Para que há de trabalhar, fatigar-se, torturar essa pobre cabecinha com preocupações, cansar esses lindos olhos e dar cibo da saúde? Ah, querida Bárbara, querida Bárbara!

Olhe, meu anjo, bem sei que nada valho, que não sirvo absolutamente para nada, mas vai ver que alguma coisa conseguirei. hei de vencer todas as dificuldades. Arranjarei trabalho extraordinário, farei cópias de manuscritos para escritores; irei ter com eles e pedir-lhes-ei serviço. verão que escrevo bem e hão de dar-me que fazer, pois sei que procuram bons copistas! Mas o que não consentirei é que dê cabo das suas forças pondo em prática os seus horríveis desígnios! Não, hei de evitá-lo, custe o que custar!

Vou pedir dinheiro emprestado e hei de arranjá-lo, esteja descansada, meu anjo. Se não o conseguisse, morreria. Recomenda-me que não me importe se os juros forem muito elevados; pode ficar certa de que assim farei, nada me deterá, já nada me mete medo! Para já, pedirei quarenta rublos. Talvez seja pouco, não lhe parece, querida Bárbara? E serão capazes de me emprestar quarenta rublos, sem outra garantia além da minha palavra? O que desejo saber, meu amor, é se me acha capaz de inspirar confiança a qualquer pessoa, à primeira vista. Com um simples olhar, isto é, pela expressão do meu rosto, poderão formar de mim um conceito favorável? Pense bem, minha querida, pense bem. Posso fazer boa impressão em quem me vê pela primeira vez? Que lhe parece? Serei homem para isso? Bem vejo as dificuldades que tenho a vencer e sinto uma angústia doentia, verdadeiramente doentia! Dos quarenta rublos, vinte e cinco serão para si, dois para a minha patroa, e o resto ficará para as minhas despesas.

Na verdade, devia dar um pouco mais à minha patroa; mas, se deitar conta às minhas prementes necessidades, verá que não me é possível dar-lhe maior quantia... Por isso, não vale a pena preocupar-se mais com o assunto, podendo dá-lo por solucionado. Por cinco rublos compro um par de botas; as que tenho encontram-se em tão lastimoso estado, que não me sinto com coragem de me apresentar outra vez com elas na repartição. Também precisava de uma gravata, pois esta já tem quase um ano de uso; como, porém, você me prometeu fazer, de um avental velho, um peitilho e uma gravata, para já não penso neste assunto. Tenho, portanto, botas e gravata. Faltam ainda botões, minha boa amiga. Deve concordar que são imprescindíveis; ao meu casaco da farda falta mais de metade. Até tremo ao pensar que qualquer dia sua excelência pode reparar em tal amostra de desleixo e dizer alguma coisa, e com muita razão. Eu não chegaria a ouvir mais do que uma palavra, porque cairia logo morto, subitamente, com vergonha; à simples ideia dessa desgraça, parece que a alma se me aparta do corpo. Sim, meu amor, não poderia sobreviver a tal opróbrio.

Depois de acudir às mais urgentes necessidades, restar-me-ão seguramente três rublos, para viver e para comprar uma onça de tabaco, pois não posso passar sem o tabaco e há já nove dias que não meto o cachimbo na boca. Confesso-lhe francamente que sou capaz de comprar tabaco sem lhe dizer nada, apesar da vergonha que sinto perante a minha consciência. Você é uma infeliz que se priva de tudo e eu hei de satisfazer os meus prazeres! Desde já a aviso do facto para evitar os remorsos da minha consciência.

Encontro-me presentemente numa situação deveras desesperada, é com sinceridade que lhe digo; nunca me vi em tais apuros. A minha patroa despreza-me; ninguém tem por mim qualquer consideração ou respeito. Por toda a parte, só faltas e dívidas. E na repartição, onde os meus companheiros nunca me trataram muito bem, nem é bom falar. Eu dissimulo tudo, procuro ocultar tudo e até ocultar-me a mim próprio; de manhã, quando entro, faço todo o possível por passar despercebido e meto-me no meio dos colegas quase sem ninguém dar fé. Só a si tenho coragem de contar francamente a minha situação... Mas e se me não emprestarem o dinheiro?

Não, querida Bárbara; é melhor não pensar em tal eventualidade e não me atormentar com semelhantes ideias, não vá desanimar antes do tempo. Digo-lhe estas coisas apenas para a prevenir e a pôr de sobreaviso, a fim de não pensar nisso e atormentar-se com outras ideias tristes! Não faça isso! Que seria da minha boa amiga, meu Deus! Decerto, se tal sucedesse, a Bárbara não poderia mudar de casa e continuaria minha vizinha. Eu, porém, não resistiria, sumir-me-ia, simplesmente, pela terra abaixo, desapareceria, sucumbiria!

Aqui tem outra longa carta. Em vez de escrevinhar tanto, faria melhor barbeando-me, pois um homem com a barba feita tem um aspecto mais distinto e respeitável, o que é de grande importância e representa um grande auxílio, muito apreciável para conseguirmos o que temos em mira. Será o que Deus quiser! Vou rezar e depois… mãos à obra.

M. Dievuchkin









5 de agosto




Meu querido Makar Alexeievitch:


Se o senhor ao menos não desesperasse! Nada de mais preocupações, que as que temos já chegam... Mando-lhe trinta kopeks, lamentando não dispor de mais. Compre com elas aquilo que mais necessitar, a fim de poder arranjar-se até amanhã. Nós ficamos quase sem nada e não sei o que há de ser de nós agora! Não sei. Que tristeza, Makar Alexeievitch! Mas não é caso para o senhor se afligir. Se não lhe arranjaram o dinheiro, que lhe havemos de fazer? Fédora diz que, afinal, não é assim tão desesperadora a nossa situação; podíamos continuar aqui por mais algum tempo e, segundo ela, pouco teríamos a lucrar com a mudança, pois os interessados não nos perderiam a pista. Apesar de tudo, porém, não me agrada muito continuar nesta casa. Se não receasse magoá-lo, dir-lhe-ia o motivo.

Que estranho feitio o seu, Makar Alexeievitch! Toma tudo muito a sério, sendo por isso o mais infeliz dos homens. Leio atentamente as suas cartas e por elas verifico que se preocupa e aflige mais por causa de mim do que propriamente pela sua pessoa. Sim, cada uma delas diz-me que o senhor possui bom coração; mas eu digo-lhe a si que o acho bom de mais. Por isso, permito-me dar-lhe um conselho amigo, Makar Alexeievitch. Estou-lhe muito reconhecida, mesmo muito, por tudo quanto tem feito por mim; agradeço-lhe do fundo do coração, creia. Pode fazer ideia do prazer que sinto por ver que apesar de todos esses maus bocados, de que fui causa involuntária, o senhor continua a viver só para mim e, de certo modo, eu sou a razão da sua existência, pois as minhas alegrias são as suas, os meus sofrimentos são os seus, os meus sentimentos têm para si mais valor do que propriamente os seus. O meu bom amigo encara de tal forma as dores alheias e é capaz de se preocupar tanto com aquilo que não lhe diz respeito, que se pode de fato chamar-lhe o mais infeliz dos mortais! Hoje, quando, de passagem para a repartição, entrou em minha casa, assustei-me ao vê-lo. Vinha tão pálido, tão aflito, tão abatido, tão preocupado e desesperado que, francamente, nem parecia o mesmo. E porquê? Simplesmente por recear desgostar-me e afligir-me confessando-me o seu fracasso. Quando, porém, viu que eu encarava as coisas com otimismo, respirou mais à vontade. Não se desespere assim, Makar Alexeievitch, nada de inquietações e seja razoável, peço-lhe, imploro-lhe! Verá que tudo se há de arranjar e correr à medida dos nossos desejos. Se continua a incomodar-se e a afligir-se tanto com as desgraças dos outros, a sua vida será cada vez mais triste, tornando-se um eterno suplício.

Adeus, meu amigo. Mais uma vez lhe peço que não se inquiete por minha causa!


B. D.






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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