Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa
XVI
O RELÓGIO
Os chineses veem as horas nos olhos dos gatos.
Um dia, um missionário passeando nos arredores de Nanquim, notou que esquecera o relógio e perguntou a um menino que horas eram.
O garoto do Celeste Império hesitou um pouco, mas depois, decidindo-se, respondeu: — Vou dizer-lhe.
Alguns instantes depois, tornou a aparecer, segurando nos braços um enorme gato.
E, fitando-o como se costuma dizer, na alva dos olhos, afirmou sem hesitar: — Ainda não é bem meio-dia, — o que era verdade.
Quanto a mim, se me inclino sobre a linda Felina, tão bem dotada que é ao mesmo tempo a honra do sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, à noite ou durante o dia, em plena luz ou na sombra opaca, vejo sempre distintamente as horas no fundo dos seus olhos adoráveis, sempre a mesma hora, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões de minutos nem de segundos, — hora imóvel que não está marcada nos relógios e é, no entanto, ligeira como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se viesse um importuno perturbar-me quando o meu olhar descansa sobre esse delicioso quadrante, se um gênio intolerante e desonesto, um demônio do contratempo viesse dizer-me: — Que vês com tanto interesse? Que procuras nos olhos desse ser? Vês as horas, oh mortal pródigo e indolente? Eu responderia sem hesitar: — Sim, vejo as horas; é a Eternidade! Não é certo, amada, que é esse um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático como você? Realmente, tanto prazer eu tive em bordar este precioso galanteio que não lhe pedirei nada em troca.
UM HEMISFÉRIO NUMA CABELEIRA
Deixa-me respirar bastante, bastante, o aroma dos teus cabelos, mergulhar neles o meu rosto todo, como um homem sedento na água de uma fonte, e agitá-los com a mão, como um lenço perfumado, para sacudir recordações no espaço.
Se pudesses saber tudo o que vejo! Tudo o que sinto! Tudo o que entendo nos teus cabelos! Minha alma viaja no perfume como a alma dos outros homens na música.
Teus cabelos encerram todo um sonho, cheio de velas e de mastros. Encerram grandes mares cujos ventos me levam para climas encantadores, nos quais o espaço é mais azul e mais profundo, e a atmosfera perfumada pelos frutos, pelas folhas e pela pele humana.
No oceano de tua cabeleira, diviso um porto repleto de canções melancólicas, de homens vigorosos de todos os países e de navios de todas as formas desenhando arquiteturas finas e complicadas num céu imenso em que se espalha o calor eterno.
Nas carícias de tua cabeleira, torno a encontrar os langores das longas horas passadas sobre um divã, no camarote de um belo navio, embaladas pelo balouçar imperceptível do porto, entre jarras de flores e moringas refrescantes.
No fogão ardente de tua cabeleira, eu respiro o odor do fumo misturado com ópio e açúcar. Na noite de tua cabeleira, eu vejo resplandecer o infinito do azul tropical. Nas orlas aveludadas de tua cabeleira, eu me embriago com os perfumes combinados do alcatrão, do musgo e do óleo de coco.
Deixa-me morder bastante as tuas pesadas e negras tranças. Quando me ponho a mordiscar os teus cabelos elásticos e revoltos, tenho a impressão de que estou comendo recordações.
XVIII
CONVITE PARA VIAGEM
Há um lugar soberbo, um país de Cocanha (14), dizem, que eu sonho visitar com uma velha amiga. Província singular, mergulhada nas brumas do nosso Norte, e que se poderia chamar Oriente do Ocidente, China da Europa, de tal maneira a cálida e caprichosa fantasia encontra ali plena liberdade, ilustrando-a firme e pacientemente com suas sábias e delicadas vegetações.
Verdadeiro país de Cocanha, onde tudo é belo, rico, tranquilo, honesto; onde o luxo se compraz em mirar-se na ordem; onde a vida é farta e doce de se respirar; onde a desordem, a turbulência e o imprevisto não existem; onde a felicidade se casa ao silêncio; onde a própria cozinha é poética, farta e excitante ao mesmo tempo; onde tudo se parece contigo, anjo querido.
Conheces essa doença febril que se apodera de nós nas menores coisas, essa nostalgia do lugar que se ignora, essa angústia da curiosidade? É uma região parecida contigo, na qual tudo é belo, rico, tranquilo e honesto; na qual a fantasia construiu e decorou uma China ocidental; na qual a vida é doce de se respirar; na qual a felicidade se casa ao silêncio. É lá que se deve ir viver, é lá que se deve ir morrer! Sim, é lá que é preciso ir respirar, sonhar e alongar as horas pelo infinito das sensações. Um músico escreveu o Convite para a valsa; que músico comporá um Convite para a viagem, que se possa oferecer à mulher amada, à irmã predileta? Sim, é nessa atmosfera que seria bom viver, lá longe, onde as horas mais lentas contêm mais pensamentos, onde os relógios soam a felicidade com mais profunda e significativa solenidade.
Sobre painéis luzentes, ou sobre couros dourados e de uma riqueza sombria, vivem discretamente pinturas beatas, calmas e profundas, como as almas dos artistas que as criaram. O sol poente, colorindo luxuosamente a sala de jantar ou a de visitas, é coado por belos estofos ou pelas altas janelas trabalhadas que o prumo divide em numerosos compartimentos. Os móveis são vastos, curiosos, bizarros, armados de fechaduras e segredos, como almas requintadas. Os espelhos, os metais, as almofadas, as joias e os vasos oferecem ao olhar uma sinfonia muda e misteriosa. De todas as coisas, de todos os cantos, das frestas das gavetas e das pregas das almofadas, escapa um perfume singular, uma recordação de Sumatra (15), que é como a alma do apartamento.
Verdadeiro país de Cocanha, afirmo-te, onde tudo é rico, limpo e luzidio, como uma bela consciência, como uma magnífica bateria de cozinha, como uma joalheria multicor! Para lá afluem tesouros do mundo, como para a casa de um homem laborioso e que bem mereceu do mundo inteiro. Província singular, superior às outras, como a Arte à Natureza, onde esta é reformada pelo sonho, corrigida, embelezada, refundida.
Procurem, procurem ainda, recuem sem cessar os limites de sua felicidade, esses alquimistas da horticultura! Proponham prêmios de sessenta e de cem mil florins (16) para quem resolver os problemas de sua ambição! Quanto a mim, já descobri minha tulipa negra e minha dália azul! Flor incomparável, tulipa recuperada, dália alegórica, não é lá, não é nessa província calma e sonhadora que se deve ir viver e prosperar? Não estarias enquadrada em tua analogia e não poderias mirar-te, para falar com os místicos, em tua própria correspondência? Sonhos! Sempre sonhos! E, quanto mais ambiciosa e delicada é a alma, mais os sonhos afastam-na do possível. Cada homem traz em si uma dose de ópio natural, incessantemente segregada e renovada. Do nascimento até à morte, quantas horas não contamos, cheias de gozo positivo, de ação resoluta e triunfante? Viveremos nós um dia, passaremos um dia nesse quadro pintado por meu espírito, nesse quadro parecido contigo? Esses tesouros, esses móveis, esse luxo, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas, tudo isso és tu. És tu ainda aqueles grandes rios e os canais tranquilos. Os enormes navios por eles carreados, abarrotados de riquezas, e de onde sobem as canções monótonas da maruja, são os meus pensamentos que dormem ou que rolam sobre o teu seio. Tu os conduzes docemente para o mar que é o Infinito, sempre refletindo as profundezas do céu na limpidez de tua bela alma. E quando, fatigados pela maré e fartos dos produtos do Oriente, tornarem a entrar no porto natal, serão ainda os meus pensamentos que do infinito regressarão a ti.
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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.
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Leia também:
Baudelaire: XVI - O Relógio
Baudelaire: XIX - O Brinquedo do Pobre
Baudelaire: XIX - O Brinquedo do Pobre
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NOTAS
(14) Do napolitano Cuccagna, palavra que significa fartura, abundância.
(15) Uma das ilhas de Sonda. Solo fértil, vegetação e fauna luxuriantes.
(16) Moeda de prata ou de ouro em vários países.
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