domingo, 18 de março de 2018

O Brasil Nação - v1: § 47 – O Império brasileiro faccioso no Prata – Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 5
o acervo do império




§ 47 – O Império brasileiro faccioso no Prata



Sendo a nação mais pacífica da América, o Brasil parece, na vida do seu primeiro meio século, o mais guerreiro e mais irritante vizinho do Novo Mundo. Quase seguidamente, durante aqueles decênios, ele fez cinco guerras externas, todas elas, à parte a primeira, movidas explicitamente contra determinados chefes políticos, alimentadas, todas elas, em motivos perversamente facciosos, quando não eram, imediatamente, o interesse de um caudilho contra fações inimigas. Por isso, elas se designam ignominiosamente: guerra contra Artigas, guerra contra Oribe, guerra contra Rosas... Mesmo a última, tão ostensivamente e encarniçadamente se dirigia contra o ditador, que bem merece ser denominada guerra contra Solano Lopez... E, injustas, criminosas, a história delas deixa o coração brasileiro combalido, entre a vergonha dos motivos, a pena pela vítima e a tristeza por tantos sacrifícios inúteis para o patriotismo, apenas impostos à nação pelo capricho do soberano. Se fora possível caracterizar a política do segundo Império sem referências a essa campanha, assim o faríamos, pois que nem a confissão dos erros e crimes nos redime deles. Serão referências rápidas, o bastante, somente, para completar a demonstração que trazemos, sem insistir em misérias mortificantes.

Toda a história do Brasil, no Sul, é a expressão da política bragantina a embaraçar, turbar, viciar e prejudicar a nova pátria, desviando-a dos seus destinos americanos, cobrindo-a de vergonhas, bloqueando-a, na solidariedade continental, cercando-a de inimigos justificados e, por isso, irredutíveis. Três são as séries de incursões do Brasil nos vizinhos do Sul: a primeira em torno da Colônia do Sacramento; a segunda com D. João VI, e continuada no primeiro Império; a terceira com as campanhas de 1848-70. A primeira, ainda se justificaria, se bem planejada, aproveitando-se a patente energia de expansão dos paulistas. Tal não se fez, devido à provada incapacidade dos dirigentes portugueses, (171)  e dela só resultou, com o povoamento do Rio Grande, eclosão e atuação de formidáveis malquerenças dos platinos, e assimilação, por parte das populações rio-grandenses, dos costumes facciosos desses mesmos platinos. A segunda incursão no Prata, ligada à muito expressiva iniciativa de Carlota Joaquina, foi estúpido maquiavelismo de conquista, nos intuitos de um imperialismo a D. João VI, e que teve como resultados últimos: despertar e exaltar o patriotismo daqueles vizinhos, acentuando seculares prevenções, para indispor contra nós, definitivamente, os neoespanhóis dali, e terminar nas vergonhosas derrotas de Sarandi e Ituzaingo. Além desses efeitos imediatos, há o fato das centenas de milhares de brasileiros, rio-grandenses intrépidos, empreendedores, e que, dada a malfadada anexação, passaram-se para além da antiga fronteira, lá se estabeleceram, para ficarem por lá, quando a ação de Lavaleja veio reparar a infâmia do príncipe português. Foram, esses, os excelentes e abastados estancieiros do norte da Banda Oriental, e que ficaram perdidos para o Brasil, enquanto o castelhano vizinho por isso mesmo ganhava.


171 Brasil na História, § 74.


Tais aventuras são sempre fecundas para o mal: essa população, recentemente brasileira, largamente aparentada no Rio Grande, já contaminada pelos costumes de caudilhismo, forneceu os primeiros ensejos para o faciosismo do Império na Banda Oriental. Um governo previdente, realmente americano estaria atento – para evitar, por todos os meios legítimos, os inconvenientes e conflitos, que se pudessem originar desse parentesco através da fronteira. Em vez disto, o governo imperial explorou desumanamente, contra os interesses nacionais e contra a paz do continente, esse acúmulo de brasileiros, então definitivamente estabelecidos na terra uruguaia. Aproveitando insidiosamente esta circunstância, imiscuiu-se nas tristes lutas internas da nova República, e tomou parte ativa nas facções que agitavam a vida do Prata, suscitando-as, conduzindo-as ostensivamente, algumas vezes. Tal se mostra, em substância, a história das campanhas no Sul, de 1848 a 1870: estultice de planos, em maldade de processos, com efeitos criminosos, até o aniquilamento do Paraguai. No momento, procurava-se justificar a pérfida e provocante política exterior do Império, na América, com a necessidade de hegemonia no continente, e, para tanto, que o Brasil devia impedir que a Argentina reconstituísse o passado vice-reinado do Prata. (172)  Considerado quanto aos interesses humanos, nem se compreende que homens justos produzam tais alegações. Esqueçam-se, no entanto, humanitarismos: não há uma face, na constante política americana do Império, que não seja nefasta para o Brasil e contraproducente quanto aos fins colimados. Assim como a aventura da Colônia do Sacramento despertou o patriotismo dos platinos, para que defendessem eficazmente a embocadura do Prata, também as repetidas provocações do Império brasileiro acabariam (e assim foi) por patentear aos vizinhos dali a necessidade de coesão interna, para bem defenderem-se contra as agressões do estrangeiro. Longos e graves foram os dissídios dos portenhos com os arribenhos; mas, desde a campanha formal do Brasil contra Rosas, acharam os argentinos a fórmula de atender a esses mais graves conflitos de facções, ainda que tiveram de criar La Plata.


172 Só tinha de americana, a política externa do Império, o aplicar-se à América. No mais, foi sempre ostensivamente antiamericana, como a de quem armou o maior número de guerras na América do Sul, como a de quem foi o único país do continente a reconhecer o governo de usurpação, defendido por tropas estrangeiras de Maximiliano, no México.


Vice-reinado do Prata... motivo explícito da diplomacia brasileira na América... É muita estupidez na maldade... Por que impedir a realização de uma unidade natural, política e geograficamente necessária, como esta? A política federalista de Rosas teria chegado lá, talvez; o imperialismo brasileiro impediu a unidade dos platinos em torno de Buenos Aires: foi um bem? Refeita a grande nação platina, seria o equilíbrio da América do Sul, seria a ponderação, que teria impedido a lamentável guerra contra o Paraguai. Não pôde ser assim: o Império brasileiro pretendeu ditar leis na distribuição dos Estados platinos, para o resultado final, do aniquilamento do Paraguai, para o resultado efetivo de deixar a Argentina soberana no Prata. E como Paraguai e Uruguai de menos não poderiam deter o seu progresso e grandeza, temos, hoje, a República Platina como a nação mais adiantada e mais forte nesta metade da América; forte da verdadeira força – a que resulta de conquistas definitivas, em saber, em cultura, em organização social e em educação democrática.

Euclides, sem desaprovar a política do Império, reconhece que foi constante, na ação do governo brasileiro “contrariar o patriotismo argentino quanto ao caso do vice-reinado” (Da Independência à República). Por sua vez, Austricliano de Carvalho vai a ponto de afirmar que “o segundo Império quis implantar monarquia no Prata” (op. cit., 501). Para demonstração irrecusável de como foi a política propriamente imperial que determinou e preparou as guerras no Sul, temos a circunstância de que, não obstante o vivo da luta civil dos Farrapos, os governos regenciais não tiveram nem perspectivas de guerra com os povos platinos. Entronado Pedro II, imediatamente começaram os conchavos com os grupos facciosos dali. E, tanto, que o início da diplomacia do segundo Império no Prata foi aquela aliança esquerda de São Cristóvão com o governo argentino, que aceitaria, assim, o papel de combatente contra os republicanos rio-grandenses. O respectivo tratado, assinado no Rio de Janeiro, pelo representante de Rosas, e não retificado por esse, foi causa, com a correspondente vergonha, da política inamistosa de Pedro II para com o ditador argentino. E tudo se passa em recessos explicitamente sediciosos: Frutuoso, caudilho aviltado em servir mais de uma vez contra a sua pátria, era, no momento, favorável aos rebeldes de Piratini; por isso, levando este a guerra civil para fora das fronteiras, e procurando estrangeiros que o ajudassem, o governo imperial assentou de buscar a aliança de Rosas, que, porém, preferiu não concorrer para a submissão dos republicanos rio-grandenses; despeitado, o imperador, como desforra, entrou a organizar em guerra as facções contrárias ao ditador.

Não se trata de refazer uma histeria cediça, mas de mostrar, em ocorrências triviais e nunca desmentidas, o deslavado facciosismo do governo imperial. Rosas, puro argentino, legítimo governo dentro da sua pátria, talvez com fins à sonhada federação platina, aliara-se com Oribe, oriental de sangue, castelhano de tradições, genuíno uruguaio-platino, e, com isto, infenso à política imperial brasileira, que fora o anexionismo, e era, então, o intervencionismo acintoso. Em represália, o governo do imperador despacha Frutuoso, que estava detido no Rio de Janeiro, para que vá fazer a revolução contra o governo legal do Uruguai. Chegado ao Sul, o caudilho junta-se ao parceiro, o caudilho oriental-brasileiro Flores, e depõem o governo de Soares, o próprio que vinha sustentando o cerco de dez anos, auxiliado por Garibaldi. É transitório o triunfo dos colorados, amigos do Brasil imperial, e volta Oribe ao poder.

Chega-se, assim, ao fim do cerco de Montevidéu; outras potências, envolvidas na pendência, afastam-se, e temos o Prata – teatro do facciosismo imperial dentro do Uruguai, Argentina e Paraguai. Agora, por intermédio do seu muito do coração Pimenta Bueno, o imperador estimula o caudilho rio-grandense Chico Pedro (Barão de Jacuípe), a fazer incursões na Banda Oriental, com quem o Império está oficialmente em paz. Repete-se a comédia de um século antes, quando o governo de Lisboa, em paz com Castela, fomenta sorrateiramente as incursões no território em litígio. Mas Oribe, como bem sabia quem estava atrás de Chico Pedro, não se dá por achado, até que Rosas o sustenta abertamente. Então, o gabinete de São Cristóvão, em represália, alia-se ao antigo general de Rosas, Urquiza, que se rebela abertamente. Agora, a luta de facções é ali: Rosas-Oribe X Urquiza-Império do Brasil, seguido pelos colorados... E aqui está o essencial da história: manda-se ao Prata o já vedeta da política imperial, Saraiva, firmado em poderosas forças de terra e mar, sob o comando expressivo de Caxias-Tamandaré. A ação diplomática do famoso liberal começa pelo acordo secreto – que ministra à facção antiOribe a prestação mensal de 18. 000 pesos fortes, logo substituídos por 60. 000 patações. Vêm, depois, cinco tratados: limites, prestação de socorros pecuniários, comércio e navegação, aliança defensiva e ofensiva, e, finalmente, entrega de desertores e escravos... Nada mais significativo do regime... Nesse momento, era governo uruguaio, oficial e universalmente reconhecido o Presidente Oribe. Todo esse período – de julho de 1850, data do acordo secreto com Flores, até meados de 1851, é o de ação subversiva do governo imperial, a organizar a guerra contra Oribe-Rosa, com quem, aliás, estava o Brasil oficialmente em paz. Mas, como as manobras já não se escondem, em fins de 1850, o representante da Argentina, que tinha poderes especializados do governo do Uruguai, reclamou contra os manejos do Brasil na fronteira da Banda Oriental. O governo imperial respondeu que não reconhecia o diplomata argentino como representante do Uruguai, nem tinha Oribe como presidente legal daquela República. Aliado a uma facção, o governo de sua majestade declara ilegal o chefe de urna nação estrangeira – porque era da facção oposta. O diplomata argentino, procedendo como devia, pediu os seus passaportes: era a guerra, como a armara a insídia do governo imperial, e que, por isso mesmo, já tinha tudo disposto para a campanha. Bem antes da declaração oficial, assigna-se um tratado de aliança defensiva com o Paraguai, é substituído o presidente civil do Rio Grande, nomeia-se Creefeld comandante da esquadra brasileira no Prata, e este se apresenta à frente de Montevidéu com 16 vasos de guerra. Logo depois, manifesta-se Urquiza ostensivamente; mas, tanto influi o Brasil na sua ação, que no tratado de aliança das três facções – governo imperial, Urquiza e Flores, está declarado que só se faria guerra a Rosas, se essa apoiasse Oribe pelas armas. Marcham as forças do caudilho argentino contra o governo do Uruguai, ao mesmo tempo em que Caxias, já presidente do Rio Grande e comandante do exército, invade a mesma República pelo norte. Rosas cumpre o seu dever de aliado de Oribe, e faz a guerra na Argentina, guerra que é, explicitamente de facção – Urquiza contra Rosas. Aquele, senhor dos Estados de Corrientes e Entre Rios, dava-se ares de chefe de Estado, e, se bem que fosse simples chefe de facção, assinava tratados com o Brasil e os prepostos deste no Uruguai. O Governo imperial forneceu a Urquiza 400.000 patacões, um exército de 4.000 baionetas, e uma esquadra de 17 navios, montando 203 bocas de fogo. Agora, o plenipotenciário pela facção do Brasil era o eminentíssimo Paraná, aproveitando-se a precocidade de Paranhos, que será, de hora em diante, um dos línguas na política imperial. Urquiza, verdadeiramente generalíssimo dos exércitos contra Rosas, recambia para Corrientes e Entre Rios as tropas orientais e argentinas, e, levando consigo os 4.000 soldados brasileiros de Marquês de Souza avança para o ataque final ao ditador. Em fins janeiro de 1852, com seis meses de campanha, estão liquidados os chefes das duas facções a quem o governo imperial guerreava; Caxias continuava comandante honorário da guerra, e um historiador desprevenido fecha o capítulo desta história com singela nota: “Reunido, em Montevidéu o exército imperial, em princípios de março, deu Caxias por terminada a sua missão” (Padre Galante).

Foi deposto Oribe, está liquidado o caso Rosas, mas como a política imperial é de facção, continuam as suas irritantes intromissões nos negócios orientais. Em seguida à aventura Oribe, foi eleito, normalmente, o Presidente Giró, do partido blanco, quer dizer guerreado pelo governo imperial, pelo que Flores foi estimulado a agitar-se de novo, e conseguiu apoderar-se do poder. Note-se: nesse tempo, como antigo aliado dos antirrosistas, Flores tinha auxílios do lado da Argentina, tanto mais quanto era ali que ele se abrigava no intervalo das suas aventuras caudilhescas. Mas, sucedendo revolucionariamente a Giró, a sua situação foi tão precária, que o governo do Brasil mandou 4.000 soldados brasileiros para garanti-lo. De nada valeu, a maioria da nação uruguaia estava com os blancos; a própria facção colorada se cindiu, e Flores teve de abandonar a capital e aceitar acordos. Foi quando reapareceu Oribe, e combina-se fazer nova eleição, cujo resultado foi a escolha de Gabriel Pereira, blanco, pelo que, desanimado, retirou-se Venâncio Flores para o seu refúgio em Buenos Aires...

Apesar de sua condição – político em orgasmo de ambição, Paranhos o disse desde logo: “Ainda que o governo imperial não o queira, a sua ação a favor da revolução de Flores, trará a guerra”. E isso justifica plenamente Jourdan quando acentua: “O corpo diplomático de Montevidéu vendo os fatos praticados (pelos representantes do Brasil) considerou a guerra inevitável”. Tavares Bastos, rara visão de estadista naquele charco, desenha em dura verdade a situação: “O perigo de uma guerra próxima, diante da antipatia dos povos americanos, continua o desprestígio continental do Império dos escravos”. O Sr. Alberto de Faria, historiando Mauá, exalta a sua ação no Sul, mas timbra em ter como boa a política imperial no Prata. Defende e aprova a respectiva diplomacia, sem poder esconder que a atitude do Império era a de arma ao ombro, em discreta vigilância nos negócios internos dos nossos vizinhos (Mauá, 294). E se chegasse a uma conclusão rápida seria para afirmar: O Uruguai necessitou da tutela do imperialismo brasileiro, e, daí, a guerra da qual saiu, logicamente, a guerra ao Paraguai. Como não ser assim? O Império, pela voz e a ação de Tamandaré, alia-se ostensivamente à facção de Flores (Jourdan, 44). Quando vai, do Rio de Janeiro, a missão Saraiva é explicitamente para depor Aguirre. Alarmado, Mauá publica um artigo condenando tal política (Mauá, 358), e afirma: “A vitória de Flores contra o governo legal do Uruguai é impossível sem o auxílio das armas do Império” (318). E ressoa, em eco inconfundível, o conceito de Alberto de Faria: “Empossamos Flores no governo...” Se, com isto, advém a longa e triste campanha para o extermínio de um povo, o historiador acha conforto em que essa guerra “fortaleceu o Brasil”...




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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