domingo, 20 de abril de 2025

crônica - uma história de descartes

um homem estúpido

baitasar

o que vale o esforço isolado, individual, a pureza dos ideias, a vontade de sacrificar toda uma vida ao mais nobre dos ideais, se esse esforço é feito sozinho, solitário, em alguma sala de aula ou em alguma comunidade sem as mínimas condições sociais que nos permitiriam avançar?

a biblioteca fechada, paredes, livros, sombras, nada se move, até o ar circula com comedimento, nada se atreve azedar a autoridade suprema com suas mãos manchadas do sangue dos descartes

hoje, na reunião, foi discutido os descartes necessários, e fui alvo da discórdia neste sarau, um queria me descartar, seu argumento principal: meu pouco uso e conteúdo desnecessário, Isso não acontecerá, novamente. É preciso espaço para as novidades; outra sentia pena, não queria me perder; e claro, tinha quem não conseguia se decidir

por agora, terminada a reunião, não vou para o desmanche, mas sei, sinto em minhas entranhas, haverão de pegar e dar um fim em mim, mais dia menos dia, estou incomodando

retorno ao meu lugar, sou colocado deitado, estou ao destino do acaso, as luzes se apagam, horário de recolher

a fechadura se move, estou trancado, tenho vontade de pedir ajuda enquanto os passos arrastados vão embora, está frio, desisto, acomodo-me, tento dormir, a escuridade está de volta, sempre volta

o silêncio, a escuridão e o tempo se passando são ameaçadores, fecho meus olhos, recolho meus pensamentos e deixo-me envolver pela cegueira na falta de luz, abraço-me à escuridão, tento esquecer o provisório inútil da minha existência

preciso vencer mais uma noite

amanhece

esse ar polar gelado trazendo mais frio que chuvas anuncia o inverno, temperaturas abaixo da normalidade podem ser esperadas, suspiro por chuvas mais moderadas, sem áreas alagadas

janelas fechadas, cortinas sem movimentos, totalmente amarelas e abertas, como braços estendidos para os lados, nenhuma estampa, nenhum anúncio de humanidade, nenhum humor, silenciosas, estão ali, nas janelas, em pé, prisioneiras das pequenas roldanas nos trilhos de alumínio

a luz do amanhecer surgindo sem vigor, o cheiro do mofo e o bolor do cotidiano enchendo corredores e prateleiras

passos metódicos e insistentes se aproximam quebrando a solidão confortável do silêncio

parecem cansados

desmontados

esqueletos esquecidos em tantas covas comuns

talvez, quem sabe, venham para me dar um fim, chegou minha vez, tenho muitos desafetos

sei do que são feitos, me detestam, não lembro de nenhum contato mais íntimo que o da rejeição

reconheço as vozes daqueles passos, queria sentir o toque amoroso das mãos com as vontades de vir, queria estar enganado, estou com medo

prendo a respiração

a chave entra no fecha portas e gira com esforço, tento erguer-me em vão, permaneço deitado de costas, fechado e inútil, Bom dia, meus queridos livros!

somente consigo espiar com olhos de canto, sinto inveja dos demais, todos apoiados solidariamente uns aos outros, pareço jogado com pressa em qualquer lugar, sem serventia, estacionado pela desatenção e desprezo

as luzes são acessas

as cortinas quase nunca permitem a luz do dia, dizem que os raios solares nos amarelam, então, nada de banhos diários de sol

os ventiladores de teto começam a girar, sinto cócegas, a poeira circula, Poderia fazer a gentileza de parar essa ventania, nada acontece, continuo sendo ignorado

as cortinas se mexem, sinto a cobiça por tanta liberdade

os passos saem da cadeira confortável e caminham entre as estantes, o desfile matinal segue ao acaso das mãos e olhos

vigio com o canto dos olhos, não desisti de tentar erguer-me, ficar em pé

a marcha está pelo corredor dos portugueses, se põe a bisbilhotar Camões, Fernando Pessoa, Saramago, Lobo Antunes, Florbela Espanca, Lídia Jorge, reconheço que começa bem o dia, segue pela ala das Américas espanholas, encontra Borges, Garcia Márquez, Vargas Llosa, Benedetti, Arturo Uslar, Neruda, Amado Nervo, Sor Juana Inés de la Cruz, Gabriela Mistral, José Martí , Alfonsina Storni, para e se desvia para os colegas didáticos, dou um profundo suspiro

desiste, parece ter lembrado de algo

dirige seus passos para o mundo da literatura brasileira, Estou aqui! Estou aqui, tenho a fantasia de gritar, bobagem, minha voz não soa, está impressa, mesmo assim, sinto sua aproximação, se avizinha de Jorge Amado, Bilac, Iracema, encontra os olhares da Capitu, as desconfianças do Bentinho, passos são indecisos se chegam perto, agarra em suas mãos Clarice Lispector, acaricia Maria Firmina, sorri para Cecília Meireles, Cora Coralina, mais um passo e me pega sem hesitação

folheia minhas páginas, sou alvo do seu exame, olho em seus olhos, Esse não pode ser descartado, me larga suavemente, em pé, junto aos meus colegas, apoiado ombro a ombro

olha para mim mais uma vez e decreta, Esse livro fica! Brasil: Nunca Mais, Dom Paulo Evaristo Arns.

é o que eu queria dizer, manter-me na biblioteca é um ato político revolucionário, que possamos nos lembrar sempre de que, se a verdade for negada, o futuro estará igualmente ameaçado sem os caminhos da memória e da justiça

você poderá me ler em alguma manhã nublada ou ensolarada, quem sabe, em alguma esquina exalando os aromas do café, em uma pequena mesa, sozinha ou em algum grupo de amigos, volte os olhos sobre o que aconteceu, esquecer ou ignorar é perigoso, a revolução da memória precisa ser contínua

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