terça-feira, 20 de julho de 2021

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(b) - No "Sossego"

O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





SEGUNDA PARTE


I - No "Sossego"
  
continuando...


Era de vê-lo, coberto com um chapéu de palha de coco, atracado a um grande enxadão de cabo nodoso, ele, muito pequeno, míope, a dar golpes sobre golpes para arrancar um teimoso pé de guaximba. A sua enxada mais parecia uma draga, um escavador, que um pequeno instrumento agrícola. Anastácio, junto ao patrão, olhava-o com piedade e espanto. Por gosto andar naquele sol a capinar sem saber?... Há cada cousa neste mundo!

E os dous iam continuando. O velho preto, ligeiro, rápido, raspando o mato rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a enxada resvalava sem obstáculo pelo solo, destruindo a erva má; Quaresma, furioso, a arrancar torrões de terra daqui, dali, demorando-se muito em cada arbusto e, às vezes, quando o golpe falhava e a lâmina do instrumento roçava a terra, a força era tanta que se erguia uma poeira infernal, fazendo supor que por aquelas paragens passara um pelotão de cavalaria. Anastácio, então, intervinha humildemente, mas em tom professoral:

- Não é assim, “seu majó”. Não se mete a enxada pela terra adentro. É de leve, assim.

E ensinava ao Cincinato inexperiente o jeito de servir-se do velho instrumento de trabalho.

Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa vontade usá-lo da maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma piada irônica: bem-te-vi! O major enfurecia-se, tentava outra vez, fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e houve várias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando ao chão, fê-lo perder o equilíbrio, cair, a beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um seixo.

O major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia à tarefa que se impusera; mas, tanto é em nossos músculos firme a memória ancestral desse sagrado trabalho de tirar o sustento de nossa vida, que não foi impossível a Quaresma acordar nos seus o jeito, a maneira de empregar a enxada vetusta.

Ao fim de um mês, ele capinava razoavelmente, não seguido, de sol a sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e falta de hábito requeriam.

Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores e punha nas cousas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que ele mesmo provocava.

Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero, entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua ideia. Não se agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.

Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a área já limpa.

- Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará nem mais uma touceira de mato.

A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo pelas cousas da roça.

Considerava-a silenciosa, e, se viera viver com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo.

Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira!

Seguira-o ao “Sossego” e, para entreter-se, criava galinhas, com grande alegria do irmão cultivador.

- Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as cousas do seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...

- Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.

Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.

Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações sobre a vida do galinheiro:

- Já nasceram os patos, Adelaide?

- Ainda não. Faltam oito dias ainda.

E logo a irmã acrescentava:

- Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?

- Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... mando um leitão e um peru.

- Ora, tu! Que presente!

- Que é que tem? É da tradição.

Justamente estavam nesse dia assim a conversar os dous irmãos na sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio avisar-lhe que se achava um cavalheiro na porteira.

Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo, esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho preto.

Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.

- Boas-tardes, major.

- Boas-tardes. Faça o favor de entrar.

O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que havia nele de estranho era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo que todo ele engordasse; porque, se as duas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis.

O visitante falou:

- Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...

- Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.

- Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem nenhuma exigência legal.

O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e continuou:

- Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir incomodá-lo... Não é cousa de importância... Creio que o major...

- Oh! Por Deus, tenente!

- Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.

- Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso, estou...

- Uma cousa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que devemos manter.

- É justo.

- O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, major...

- Não. Espere um pouco...

- Oh! major, não se incomode. Não é para já.

Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e acrescentou:

- Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, major?

- Muito bem.

- Pretende dedicar-se à agricultura?

- Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.

- Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma lindeza, major! Quanta fruta! Quanta farinha! As terras estão cansadas e...

- Qual cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é cultivada há milhares de anos, entretanto...

- Mas lá se trabalha.

- Por que não se há de trabalhar aqui também?

- Lá isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...

- Qual, meu caro tenente! Não há nada que não se vença.

- O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado por causa da questão da eleição de deputados... Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas pálpebras gordas um olhar pesquisador sobre a ingênua fisionomia de Quaresma.

- Que questão é? indagou Quaresma.

O tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:

- Então não sabe?

- Não.

- Eu lhe explico: o candidato do governo é o doutor Castrioto, moço honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de Câmaras Municipais do Distrito que se hão de sobrepor ao governo, só porque o Senador Guariba rompeu com o governador; e - zás - apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e nenhuma influência... Que pensa o senhor?

- Eu... Nada!

O serventuário do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem que, sabendo e morando no município de Curuzu, não se incomodasse com a briga do Senador Guariba com o governador do Estado! Não era possível! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse ele consigo, este malandro quer ficar bem com os dous, para depois arranjar-se sem dificuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquilo devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as asas daquele “estrangeiro”, que vinha não se sabe donde!

- O major é um filósofo, disse ele com malícia.

- Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.

Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão, mas, desanimado de penetrar nas tenções ocultas do major, apagou a fisionomia e disse em ar de despedida:

- Então o major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?

- Decerto.

Os dous se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vê-lo montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O escrivão afastou-se, desapareceu na estrada, e o major ficou a pensar no interesse estranho que essa gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer cousa de vital e importante. Não atinava por que uma rezinga entre dous figurões importantes vinha pôr desarmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fora da esfera daqueles. Não estava ali a terra boa para cultivar e criar? Não exigia ela uma árdua luta diária? Por que não se empregava o esforço que se punha naqueles barulhos de votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres, vidas - trabalho igual ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a pensar em governadores e guaribas, quando a nossa vida pede tudo à terra e ela quer carinho, luta, trabalho e amor...

O sufrágio universal pareceu-lhe um flagelo.

O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que nos põem em comunicações com o resto do mundo. Há uma mescla de medo e de alegria. Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se também más. A alternativa angustia...

O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mistério, e traz, além de notícias gerais, boas ou más, também o gesto, um sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe.

Quaresma esperou o trem. Ele chegou arfando e se estirando como um réptil pela estação afora à luz forte do sol poente. Não se demorou muito. Apitou de novo e saiu a levar notícias, amigos, riquezas, tristezas por outras estações além. O major pensou ainda um pouco como aquilo era bruto e feio, e como as invenções do nosso tempo se afastam tanto da linha imaginária da beleza que os nossos educadores de dous mil anos atrás nos legaram. Olhou a estrada que levava à estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa... Quem podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que caminhava com pressa... Quem era? Aquele chapéu dobrado, como um morrião... Aquele fraque comprido... Passo miúdo... Um violão! Era ele!

- Adelaide, está aí o Ricardo.


continua página 41...

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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