Capítulo 4
continuando...
Ninguém manifestou a menor suspeita de que Orlando não fosse o Orlando que tinham conhecido. Se houvesse alguma dúvida na mente humana, a atitude dos veados e dos cachorros seria suficiente para dissipá-la, pois, como se sabe, os animais são melhores juízes de identidade e caráter do que nós. Além disso — disse a sra. Grimsditch ao sr. Dupper aquela noite, diante de sua xícara de chá —, se seu senhor era agora uma senhora, ela nunca via uma tão encantadora e não havia como escolher entre eles; um era tão favorecido quanto a outra; eram tão semelhantes como dois pêssegos em um galho; e quanto a si — disse a sra. Grimsditch tornando-se confidencial — sempre tivera suas suspeitas (aqui balançou a cabeça misteriosamente), e não era surpresa para ela (aqui balançou a cabeça astutamente) e de sua parte isso era um grande alívio; pois, com as toalhas precisando remendar e as cortinas da sala do capelão comidas por traças nas franjas, era tempo de terem uma senhora entre eles.
“E que alguns pequenos senhores e senhoras a sucedam”, acrescentou o sr. Dupper, cuja sagrada missão lhe conferia o privilégio de dar opinião em assunto delicados como esses.
Assim, enquanto os velhos criados mexericavam na sua sala, Orlando pegou um castiçal de prata e vagou mais uma vez através dos salões, galerias, pátios, quartos; viu inclinar-se diante dela, de novo, a face escura deste Lorde chanceler, daquele camareiro-mor, dentre seus antepassados; ora sentava-se naquele trono, ora reclinava-se naquele delicioso dossel; observava as tapeçarias, e como balançavam; olhava os caçadores cavalgando e Dafne voando; banhava a mão, como gostava de fazer em criança, na poça de luz amarela que o luar fazia atravessando o leopardo heráldico da janela; deslizava ao longo das tábuas polidas da galeria, que do outro lado eram madeira áspera; tocava esta seda, aquele cetim; imaginava que os golfinhos esculpidos nadavam; escovava o cabelo com a escova de prata do rei Jaime; mergulhava o rosto no pot-pourri, [1] como o Conquistador havia ensinado muitos séculos antes, e que era feito das mesmas rosas; olhava para o jardim e imaginava os açafrões dormindo e as dálias entorpecidas; via as frágeis ninfas brilhando brancas na neve, e, atrás delas, negras e espessas como uma casa, as grandes cercas de teixos; via os laranjais e as nespereiras gigantes; — tudo isso viu, e cada visão ou som, apesar da rudeza com que descrevemos, enchia o seu coração com tal prazer e com um tal bálsamo de alegria que finalmente, exausta, entrou na capela e afundou na velha poltrona vermelha onde seus antepassados costumavam acompanhar o ofício religioso. Lá acendeu um charuto (era um hábito que trouxera do Oriente) e abriu o Livro de Orações.
[1] Em francês no original: mistura, miscelânea. (N.E.)
Era um livrinho encadernado em veludo, costurado com fio de ouro, que Maria rainha da Escócia segurara no cadafalso, e o olho piedoso podia detectar uma mancha pardacenta que se dizia ter sido feita por uma gota do sangue real. Mas quem ousaria dizer que piedosos pensamentos isso despertou em Orlando, que paixões malévolas adormeceu, visto que, de todas as comunhões, a mais inescrutável é com a divindade? Novelista, poeta, historiador, todos vacilam ao tocar nessa porta; nem o próprio crente nos esclarece, pois estará ele mais preparado para morrer do que as outras pessoas, ou mais ansioso em partilhar seus bens? Ele não mantém tantas empregadas e parelhas de cavalos, como o resto? E, com tudo isso, sustenta uma fé — diz ele — que torna os bens vaidade e a morte desejável. No livro de orações da rainha, juntamente com a mancha de sangue, havia uma mecha de cabelos e uma migalha; Orlando agora acrescentava a essas relíquias uma lasca de tabaco, e assim, lendo e fumando, foi levada pela mistura humana de tudo isso — cabelo, migalha, mancha de sangue e tabaco — a uma tal forma de contemplação que lhe deu um ar reverente, adequado às circunstâncias, embora se dissesse que ela não tinha trânsito com o Deus habitual. Nada, porém, pode ser mais arrogante, embora mais comum, do que assumir que de Deuses só existe um, e de religiões nenhuma além da de quem fala. Orlando, parece, tinha uma fé própria. Com todo o ardor religioso do mundo, agora refletia sobre seus pecados e imperfeições, que tinham se insinuado em seu estado de espírito. A letra S, refletiu, é a serpente do Éden do poeta. Fizesse o que quisesse, ainda havia muitos desses répteis pecaminosos nas primeiras estrofes de “O Carvalho”. Mas o “S” não era nada, em sua opinião, se comparado com a terminação “ndo”. O particípio presente é o próprio demônio, pensou (agora que estamos num lugar para crer em demônios). Evitar tais tentações é o primeiro dever do poeta, concluiu, pois, como o ouvido é a antecâmara da alma, a poesia pode adulterar e destruir com mais segurança do que a luxúria ou a pólvora. O ofício do poeta é, então, o mais elevado de todos — continuou. Suas palavras alcançam onde os outros falham. Uma simples canção de Shakespeare tem feito mais pelos pobres e pelos desgraçados do que todos os pregadores e filantropos do mundo. Nem tempo nem devoção podem ser tão grandes, portanto, para tornar o veículo de nossa mensagem menos distorcido. Devemos modelar nossas palavras até que sejam o mais fino invólucro de nossos pensamentos. Os pensamentos são divinos etc. Assim, é óbvio que ela estava de volta aos limites de sua própria religião, que o tempo tinha fortalecido em sua ausência, e ia adquirindo rapidamente a intolerância da crença.
“Estou crescendo”, pensou, pegando finalmente a vela. “Estou perdendo algumas ilusões”, disse, fechando o livro da rainha Maria, “talvez para adquirir outras”, e desceu por entre as tumbas onde jaziam os ossos de seus antepassados.
Mas, mesmo os ossos de seus antepassados, Sir Miles, Sir Gervase e os outros, tinham perdido algo de sua santidade desde que Rustum el Sadi abanara a mão, naquela noite, nas montanhas da Ásia. De alguma forma encheu-a de remorso o fato de que havia apenas três ou quatro séculos esses esqueletos tivessem sido homens, com o seu caminho a percorrer no mundo, como qualquer arrivista moderno, e que tivessem feito isso adquirindo casas e cargos, jarreteiras e condecorações, como qualquer outro arrivista faz, enquanto poetas, talvez, e homens de grande talento e educação tivessem preferido a quietude do campo e por essa escolha tivesse pago a pena de uma extrema pobreza e agora apregoassem boletins no Strand, ou pastoreassem carneiros nos campos. Enquanto permaneceu de pé, na cripta, pensou nas pirâmides do Egito e nos ossos que jazem debaixo delas; e as vastas e desertas colinas que dominam o meio de Mármara pareceram-lhe, naquele momento, uma habitação mais bela do que essa mansão de muitos quartos, na qual não faltava colcha a nenhuma cama nem tampa de prata a nenhuma terrina de prata.
“Estou crescendo”, pensou, pegando a sua vela. “Estou perdendo minhas ilusões, talvez para adquirir outra novas”, e foi caminhando pela longa galeria para o seu quarto. Era um processo desagradável e incômodo. Mas surpreendentemente interessante, pensou, esticando as pernas para a lareira (pois não havia nenhum marinheiro presente), e reviu, como se fosse uma avenida de grandes edifícios, o progresso do seu eu, ao longo de seu próprio passado.
Como amara o som quando menino e como pensara que a torrente de sílabas tumultuosas vindas dos lábios fosse a mais bela de toda a poesia. Depois — talvez por efeito de Sasha e de sua desilusão — deixou cair nesse grande frenesi uma gota negra, que transformou em morosidade a sua rapsódia. Lentamente abria-se dentro dela alguma coisa intrincada e de muitos compartimentos, que se precisa ter uma tocha para explorar, em prosa e não em verso; e recordou quão apaixonadamente estudara aquele doutor Browne, de Norwich, cujo livro estava ali ao seu alcance. Construíra aqui, em solidão, depois de seu caso com Greene, ou tentara construir — pois Deus sabe como essas construções são demoradas — um espírito capaz de resistência. “Escreverei”, disse, “o que eu gostar de escrever”; e então rascunhou 26 volumes. Mesmo assim, apesar de todas as suas viagens e aventuras, suas profundas meditações e suas voltas para um lado e para outro, estava apenas no processo de criar. O que o futuro traria, somente os céus sabiam. A mudança era incessante, a mudança talvez não cessasse nunca. Altas muralhas de pensamentos, hábitos que tinham parecido duráveis como pedra, caíam como sombras ao toque de um outro espírito e deixavam o céu desnudo, com estrelas brilhando. Aqui dirigiu-se à janela e, apesar do frio, não pôde deixar de abri- la. Inclinou-se no ar úmido da noite. Ouviu uma raposa uivar no bosque e o ruído de um faisão passando por entre os ramos. Ouviu a neve escorregar e cair do telhado ao chão. “Por minha vida”, exclamou, “isto é mil vezes melhor do que a Turquia. Rustum”, gritou, como se estivesse discutindo com o cigano (e, com este novo poder de criar e manter uma discussão com alguém que não estava ali para contradizê-la, mostrava novamente o desenvolvimento de seu espírito), “estavas enganado. Isto é melhor do que a Turquia. Cabelo, migalha, tabaco — e toda a miscelânea de que somos compostos”, disse (pensando no livro de orações da rainha Maria). “Que fantasmagoria é o espírito, e que ponto de encontro de dessemelhanças! Em dado momento deploramos nosso berço e nossa riqueza e aspiramos a uma exaltação ascética; no seguinte somos dominados pelo cheiro de alguma alameda de um velho jardim e choramos ao ouvir o canto dos tordos.” E assim, perplexa como de costume pela multiplicidade de coisas que exigem explicação e que imprimem sua mensagem sem deixar qualquer indício do significado, atirou o charuto pela janela e foi para a cama.
Na manhã seguinte, em consequência desses pensamentos, pegou pena e papel e recomeçou “O Carvalho”, pois ter tinta e papel em quantidade, quando se teve que recorrer a sementes e margens, é um prazer inimaginável. Assim, estava agora esboçando uma frase nas profundezas do desespero, escrevendo outra nos cumes do êxtase, quando uma sombra escureceu a página. Apressadamente escondeu o manuscrito.
Como sua janela dava para a parte mais central dos pátios, e como dera ordens que não queria ver ninguém, como sabia que não conhecia ninguém e era legalmente desconhecida, ficou primeiro surpresa com a sombra, depois indignada com ela. Então (quando olhou para cima e viu o que a causava) foi dominada pela alegria, pois era uma sombra familiar, uma sombra grotesca, a sombra de nada menos que a arquiduquesa Harriet Griselda de Finster- Aarhorn e Scand-op-Boom, do território romeno. Ela atravessava o pátio, como antes, com o seu velho traje negro de montaria e sua capa. Nenhum cabelo de sua cabeça havia mudado. Esta, então, era a mulher que a expulsara da Inglaterra! Este era o ninho daquele abutre obsceno — este era o próprio pássaro fatal! Ao pensar que fugira para a Turquia para evitar sua sedução (que agora tinha se tornado excessivamente insípida), Orlando riu alto. Havia algo inexprimivelmente cômico naquela visão. Ela parecia — como Orlando pensara antes — nada mais do que uma lebre monstruosa. Tinha os olhos arregalados, as bochechas flácidas, o topete alto daquele animal. Parara agora, com uma lebre, sentada ereta no trigo, julgando não ser observada, e fitou Orlando, que por sua vez fitou-a da janela. Depois de terem se fitado dessa forma por algum tempo, não havia outra coisa a fazer senão convidá-la a entrar, e logo as duas damas estavam trocando cumprimentos, enquanto a arquiduquesa sacudia a neve de sua capa.
“O diabo carregue as mulheres!”, disse Orlando para si mesma, indo até o armário pegar um copo de vinho, “nunca deixam a ninguém um momento de paz. Não existe gente mais bisbilhoteira, curiosa e intrometida do que elas. Foi para fugir deste mastro enfeitado que eu parti da Inglaterra, e agora” — aqui virou-se para oferecer a bandeja à arquiduquesa e espantou-se: em seu lugar surgiu um cavalheiro alto, de negro. Um monte de roupas jazia no guarda-fogo. Ela estava sozinha com um homem.
Chamada bruscamente à consciência de seu sexo — que ela esquecera completamente — e à dele, que era agora bastante remota para ser igualmente inquietante, Orlando sentiu que ia desmaiar.
“Ah!”, gritou, pondo a mão no quadril, “que susto!”
“Gentil criatura”, exclamou a arquiduquesa, caindo de joelhos e ao mesmo tempo aproximando dos lábios de Orlando um licor cordial, “perdoe-me a peça que lhe preguei!”
Orlando sorveu o vinho, e o arquiduque ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.
Em suma, eles representaram papéis de homem e mulher por dez minutos, com grande vigor, e depois retornaram às maneiras habituais. A arquiduquesa (mas que de agora em diante deve ser conhecida como o arquiduque) contou sua história — que era um homem, e sempre tinha sido; que vira um retrato de Orlando e se apaixonara por ele desesperadamente; que para atingir seus fins se vestira como mulher e se hospedara na casa do padeiro; que ficara desconsolado quando ele fugira para a Turquia; que soubera de sua transformação e se apressara a oferecer seus préstimos (aqui representava, de um modo intolerável). Pois para ele, disse o arquiduque Harry, ela era e sempre fora o Pináculo, a Pérola, a Perfeição do seu sexo. Os três “P” teriam sido mais convincentes se não tivessem sido entremeados com muxoxos e exclamações das mais estranhas. “Se isto é amor”, disse Orlando para si mesma, olhando para o arquiduque do outro lado do guarda-fogo, e agora do ponto de vista feminino, “há nele alguma coisa profundamente ridícula.”
Caindo de joelhos, o arquiduque Harry fez-lhe a mais apaixonada das declarações. Disse-lhe que tinha cerca de vinte milhões de ducados num cofre-forte em seu castelo. Possuía mais acres do que qualquer nobre na Inglaterra. A caça era excelente: podia prometer-lhe uma bolsa sortida de lagópodes e de galos silvestres, como nenhum pântano inglês ou escocês poderia oferecer. Na verdade, os faisões tinham sido atacados de gosma durante sua ausência e os antílopes perdido suas crias, mas isso poderia ser remediado e seria, com a sua ajuda, quando vivessem juntos na Romênia.
Enquanto falava, lágrimas enormes formavam-se nos olhos bastante proeminentes e escorriam pelos sulcos arenosos de suas longas e flácidas bochechas.
Que os homens choram tão frequentemente e tão sem razão quanto as mulheres, Orlando sabia por experiência própria como homem; mas estava começando a perceber que as mulheres devem ficar chocadas quando os homens demonstram emoção diante delas, e assim ficou chocada.
O arquiduque desculpou-se. Controlou-se o suficiente para dizer-lhe que a deixaria agora, mas voltaria no dia seguinte para saber a sua resposta.
Era terça-feira. Ele veio na quarta; veio na quinta; veio na sexta; veio no sábado. É certo que cada visita começava, continuava ou concluía com uma declaração de amor, mas nos intervalos havia bastante espaço para o silêncio. Sentavam-se um de cada lado da lareira, e às vezes o arquiduque derrubava as tenazes e Orlando arrumava-as de novo. Então o arquiduque lembrava que caçara um alce na Suécia e Orlando lhe perguntava se era um alce muito grande, o arquiduque dizia que não era tão grande quanto a rena que caçara na Noruega; Orlando lhe perguntava se alguma vez tinha caçado um tigre, o arquiduque dizia que caçara um albatroz, e Orlando perguntava (meio escondendo um bocejo) se um albatroz era tão grande quanto um elefante e o arquiduque respondia algo bastante sensato, sem dúvida, mas Orlando não escutava, pois estava olhando para sua escrivaninha, ou pela janela, ou para a porta. Depois disso, o arquiduque dizia: “Adoro-a!”, ao mesmo tempo que Orlando dizia: “Olhe, está começando a chover”, e ficavam ambos muito embaraçados e coravam, e nenhum deles sabia o que dizer depois. Na verdade, Orlando estava no limite de seu conhecimento sobre o que conversar e, se não tivesse se lembrado de um jogo chamado fly loo — no qual se pode perder grandes somas de dinheiro com pouco dispêndio de espírito —, teria tido que casar, supunha, pois não sabia como se livrar dele. Mas com este artifício, aliás bem simples — e que precisava apenas de três torrões de açúcar e de um número suficiente de moscas —, o embaraço da conversa era vencido e a necessidade de casamento evitada. Pois agora o arquiduque queria apostar com ela quinhentas libras que uma mosca pousaria neste torrão e não naquele. Assim, tinham ocupação para a manhã inteira, observando as moscas (que estavam naturalmente vagarosas naquelas estação e quase sempre levavam uma hora ou mais rodando pelo teto) até que alguma varejeira azul fazia a sua escolha e o jogo estava ganho. Muitas centenas de libras passaram das mãos de um para outro durante esse jogo, o qual o arquiduque — que se dizia um jogador nato — declarava ser tão bom quanto corrida de cavalos e jurava que poderia jogar a vida inteira. Mas Orlando logo começou a se cansar.
“Que vale ser uma linda mulher, na flor da idade”, perguntava, “se tenho que passar todas as minhas manhãs observando varejeiras azuis com um arquiduque?”
Começou a detestar o aspecto do açúcar; as moscas deixavam-na tonta. Devia haver alguma saída da dificuldade, supunha, mas ela era ainda inábil nas artes do seu sexo e, como já não podia dar uma pancada na cabeça de um homem nem atravessar-lhe o corpo com um florete, não pôde pensar em melhor método do que este: apanhou uma varejeira azul, amassou-a delicadamente até que morresse (já estava meio morta, do contrário sua bondade com os animais não lhe teria permitido isso) e colou-a com uma gota de goma arábica num torrão de açúcar. Enquanto o arquiduque olhava para o teto, ela habilidosamente substituía este torrão por aquele onde pusera o dinheiro e gritava “Ganhei! Ganhei!’’ e declarava que tinha vencido a aposta. Seu cálculo era que o arquiduque, com todo o seu conhecimento de esportes e corridas de cavalos, detectaria a fraude e, como trapacear no jogo da mosca é o mais infame dos crimes — e por causa disso homens têm sido banidos definitivamente da sociedade humana para a dos macacos nos trópicos —, imaginou que ele seria homem bastante para recusar-se daí em diante a ter algum interesse por ela. Mas julgou mal a simplicidade desse amável nobre. Ele não era um bom juiz de moscas. Uma mosca morta parecia-lhe o mesmo que uma viva. Ela fez trapaça vinte vezes e ele pagou mais de 17.250 libras (o que equivale a cerca de 40.885 libras, seis xelins e oito pence em nossa moeda), até que Orlando enganou tão grosseiramente que nem mesmo ele podia ser logrado por mais tempo. Quando afinal percebeu a verdade, aconteceu uma cena penosa. O arquiduque pôs-se de pé. Ficou escarlate. Lágrimas lhe rolavam pela face, uma por uma. Que tivesse ganhado uma fortuna à sua custa não era nada, de bom grado aceitava; que ela o tivesse enganado era alguma coisa — feria-o pensar que ela fosse capaz disso; mas que tivesse feito trapaça no jogo da mosca era tudo. Era impossível amar uma mulher que trapaceava no jogo, dizia. Aí, rompeu em definitivo. Felizmente, dizia, recuperando-se um pouco — não havia testemunhas. Afinal de contas, dizia, ela era apenas uma mulher. Em resumo, estava se preparando para perdoá-la, com a nobreza de seu coração, e se inclinava para pedir-lhe perdão pela violência de sua linguagem, quando ela abreviou o assunto, pondo-lhe um sapinho entre a pele e a camisa, no momento em que ele inclinava a orgulhosa cabeça.
continua pag 75...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.
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