quarta-feira, 21 de julho de 2021

Susan Sontag - Evangelhos Fotográficos (04)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS (04)


continuando...


A linguagem em que, em geral, se avaliam fotos é extremamente pobre. Às vezes, é parasitária em relação ao vocabulário da pintura: composição, luz etc. Mais frequentemente, consiste nos tipos mais vagos de julgamento, como quando se elogiam fotos por serem sutis, interessantes, fortes, complexas, simples, ou — uma das favoritas — enganosamente simples.

O motivo por que a linguagem é pobre não é acidental: trata-se da ausência de uma rica tradição de crítica fotográfica. Isso é algo inerente à fotografia, sempre que é vista como arte. A fotografia propõe um processo de imaginação e um apelo ao gosto totalmente distintos daqueles que a pintura propõe (ao menos como é concebida tradicionalmente). De fato, a diferença entre uma foto boa e uma ruim não é, em absoluto, igual à diferença entre uma pintura boa e uma ruim. As normas de avaliação estética elaboradas para a pintura dependem de critérios de autenticidade (e de falsidade), e de perícia técnica — critérios que, para a fotografia, são mais permissivos até ou inexistentes. E enquanto as tarefas de um especialista em pintura invariavelmente supõem a relação orgânica de um quadro com o corpo de uma obra individual, dotado de integridade própria, e com escolas e tradições iconográficas, na fotografia, o vasto corpo de uma obra individual não tem necessariamente uma coerência estilística interna, e a relação de um fotógrafo individual com escolas de fotografia é uma questão muito mais superficial.

Um critério de avaliação que a pintura e a fotografia de fato compartilham é a inovação; tanto pintores como fotógrafos são muitas vezes valorizados porque impõem novos esquemas formais ou mudanças na linguagem visual. Outro critério que podem compartilhar é a faculdade da presença, que Walter Benjamin considerava a característica decisiva da obra de arte. Benjamin pensava que uma foto, por ser um objeto mecanicamente reproduzido, não podia ter uma presença genuína. Contudo, pode-se argumentar que a própria situação que é agora determinante do gosto na fotografia, sua exposição em museus e galerias, revelou que as fotos têm, de fato, uma espécie de autenticidade. Além disso, embora nenhuma foto seja um original no sentido em que sempre é original uma pintura, existe uma grande diferença qualitativa entre o que poderia ser chamado de originais — cópias feitas do negativo original, na época (ou seja, no mesmo momento da evolução tecnológica da fotografia) em que foi tirada a foto — e gerações subsequentes da mesma foto. (O que a maioria das pessoas conhece das fotos famosas — em livros, jornais, revistas etc. — são fotos de fotos; os originais, que só será possível ver em museus ou galerias, proporcionam prazeres visuais que não são reproduzíveis.) O resultado da reprodução mecânica, diz Benjamin, é “pôr a cópia do original em situações fora do alcance do original propriamente dito”. Mas, na medida em que se pode dizer que, por exemplo, um Giotto tem uma aura em situação de exposição num museu, onde também foi deslocado de seu contexto original e, como a foto, “faz concessões ao espectador” (no sentido mais estrito da ideia de aura de Benjamin, não o faz), nessa mesma medida também se pode dizer que possui uma aura uma foto de Atget copiada por ele num papel que hoje não se pode mais obter.

A verdadeira diferença entre a aura que pode ter uma foto e a aura de uma pintura repousa na relação diferente com o tempo. A devastação do tempo tende a agir contra as pinturas. Mas parte do interesse incorporado às fotos, e uma fonte importante de seu valor estético, são precisamente as transformações que o tempo opera sobre elas, o modo como as fotos escapam das intenções de seus criadores. Após o tempo necessário, as fotos adquirem de fato uma aura. (A circunstância de as fotos coloridas não envelhecerem como as fotos em preto e branco pode explicar, em parte, o status marginal da cor até muito recentemente, no gosto fotográfico sério. A intimidade fria da cor parece imunizar a foto contra a pátina.) Pois, enquanto pinturas ou poemas não se tornam melhores, mais atraentes, apenas por envelhecer, todas as fotos são interessantes, além de comoventes, se forem velhas o bastante. Não está completamente errado dizer que não existem fotos ruins — apenas fotos menos interessantes, menos relevantes, menos misteriosas. A adoção da fotografia pelo museu só acelera um processo que o tempo trará, de um modo ou de outro: tornar toda obra valiosa.

Nunca é demais destacar o papel do museu na formação do gosto fotográfico contemporâneo. Mais do que arbitrar que fotos são boas e que fotos são ruins, os museus proporcionam condições novas para ver todas elas. Esse processo, que parece criar padrões de avaliação, a rigor abole tais padrões. Não se pode dizer que o museu criou um cânone seguro para a obra fotográfica do passado, como fez no caso da pintura. Mesmo quando parece patrocinar um tipo específico de gosto fotográfico, o museu solapa a própria ideia de gosto normativo. Seu papel consiste em mostrar que não existem padrões fixos de avaliação, que não existe tradição de obra canônica. Sob os cuidados do museu, a própria ideia de tradição canônica é desmascarada como redundante.

O que mantém a Grande Tradição da fotografia sempre em fluxo, em constante reordenação, não é o fato de ser a fotografia uma arte nova e, portanto, algo insegura — isso faz parte do que é o gosto fotográfico. Existe na fotografia uma sequência mais rápida de redescoberta do que em qualquer outra arte. Ilustrando aquela lei do gosto que recebeu de T. S. Eliot sua formulação definitiva, segundo a qual toda nova obra importante altera necessariamente nossa percepção da herança do passado, fotos novas modificam a maneira como vemos as fotos do passado. (Por exemplo, a obra de Arbus tornou mais fácil apreciar a grandeza da obra de Hine, outro fotógrafo dedicado a retratar a opaca dignidade das vítimas.) Mas as oscilações do gosto fotográfico contemporâneo não refletem apenas esses processos coerentes e sequenciais de reavaliação, em que o semelhante realça o semelhante. O que expressam, mais comumente, é o valor complementar e equivalente de estilos e temas antitéticos.

Durante várias décadas, a fotografia americana foi dominada por uma reação contra o “westonismo” — ou seja, contra a fotografia contemplativa, a fotografia considerada como uma independente exploração visual do mundo, sem nenhum apelo social flagrante. A perfeição técnica das fotos de Weston, as belezas calculadas de White e Siskind, as construções poéticas de Fredrick Sommer, as ironias presunçosas de Cartier-Bresson — tudo isso foi contestado pela fotografia que, ao menos em termos programáticos, é mais ingênua, mais direta; ou seja, hesitante e mesmo canhestra. Mas o gosto na fotografia não é tão linear assim. Sem qualquer enfraquecimento dos compromissos atuais com a fotografia informal e com a fotografia como documento social, ocorre agora uma perceptível recuperação de Weston — como se, após a passagem de um tempo suficiente, a obra de Weston não mais parecesse atemporal; como se, em virtude da definição bem mais ampla de ingenuidade com que opera o gosto fotográfico, a obra de Weston também parecesse ingênua.

Por fim, não existe razão para excluir nenhum fotógrafo do cânone. Neste exato momento, há minirrecuperações de pictóricos por muito tempo desprezados, de uma outra era, como Oscar Gustav Rejlander, Henry Peach Robinson e Robert Demachy. Uma vez que a fotografia toma o mundo inteiro como seu tema, existe espaço para todo tipo de gosto. O gosto literário exclui: o sucesso do movimento modernista na poesia elevou Donne e rebaixou Dryden. Na literatura, pode-se ser eclético até certo ponto, mas não se pode gostar de tudo. Na fotografia, o ecletismo não tem limite. As fotos corriqueiras tiradas na década de 1870 de crianças abandonadas acolhidas em uma instituição de caridade em Londres chamada Doctor Barnardo’s Home (tiradas como “registros”) são tão comoventes quanto os complexos retratos tirados por David Octavius Hill, de pessoas ilustres da Escócia na década de 1840 (tidos como “arte”). O olhar limpo do estilo moderno clássico de Weston não é refutado, digamos, pela recente e engenhosa recuperação do embaçamento pictórico por Benno Friedman.

Não se deve negar que cada espectador gosta da obra de certos fotógrafos mais que da obra de outros: por exemplo, a maioria dos espectadores experientes, hoje, prefere Atget a Weston. Na verdade, isso significa que, pela natureza da fotografia, a pessoa não é de fato obrigada a escolher; e que preferências desse tipo são, em sua maioria, meramente reativas. O gosto na fotografia tende a ser, talvez necessariamente, global, eclético, permissivo, o que significa que, no fim, deve negar a diferença entre bom gosto e mau gosto. É isso o que faz parecer ingênua ou ignorante toda tentativa dos polemistas da fotografia de erigir um cânone. Pois existe algo falso em todas as controvérsias fotográficas — e as atenções do museu desempenharam um papel crucial em tornar isso claro. O museu nivela por cima todas as escolas de fotografia. A rigor, faz pouco sentido até falar em escolas. Na história da pintura, os movimentos têm vida e função genuínas: os pintores, não raro, são muito mais bem compreendidos em termos da escola ou do movimento a que pertenceram. Mas os movimentos na história da fotografia são efêmeros, adventícios, por vezes meramente perfunctórios, e nenhum fotógrafo de primeira classe é mais bem compreendido como membro de um grupo. (Pensemos em Stieglitz e a Photo-Secession, Weston e a f64, Renger-Patzsch e a Nova Objetividade, Walker Evans e o projeto da Secretaria de Segurança no Trabalho Rural, Cartier-Bresson e a Magnum.) Agrupar fotógrafos em escolas ou em movimentos parece um tipo de mal-entendido, que (mais uma vez) tem por base a irreprimível, mas invariável, analogia enganosa entre fotografia e pintura.

O papel predominante hoje desempenhado pelos museus na formação e no esclarecimento da natureza do gosto fotográfico parece assinalar um novo estágio, do qual a fotografia não pode retornar. De par com seu respeito tendencioso pelo profundamente banal está a difusão de uma visão historicista gerada pelo museu, visão que promove inexoravelmente toda a história da fotografia. Não admira que os críticos fotográficos e os fotógrafos se mostrem preocupados. Subjacente a muitas defesas recentes da fotografia, encontra-se o temor de que ela já seja uma arte senil, desagregada em movimentos espúrios ou mortos; que as únicas tarefas que restam seja curadoria e historiografia. (Enquanto os preços de fotos velhas e novas chegam à estratosfera.) Não surpreende que essa desmoralização seja sentida no momento da máxima aceitação da fotografia, pois a verdadeira amplitude do triunfo da fotografia como arte, e de seu triunfo sobre a arte, não foi de fato compreendida.


continua página 81...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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