quinta-feira, 1 de julho de 2021

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (e)

  Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica



A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR
PARA MANTER A OPRESSÃO, A
MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL


DIVIDIR PARA MANTER A OPRESSÃO



Esta é outra dimensão fundamental da teoria da açÃo opressora, tão velha quanto a opressão mesma. Na medida em que as minorias, submetendo as maiorias a seu domínio, as oprimem, dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável à continuidade de seu poder. Não se podem dar ao luxo de consentir na unificação das massas populares, que significaria, indiscutivelmente, uma séria ameaça à sua hegemonia.

Daí que toda ação que possa, mesmo incipientemente, proporcionar as classes oprimidas o despertar para que se unam é imediatamente freada pelos opressores através de métodos, inclusive, fisicamente violentos.

Conceitos como os de união, de organização, de luta, são timbrados, sem demora, como perigosos. E realmente o são, mas, para os opressores. É que a praticização destes conceitos é indispensável à ação libertadora.

O que interessa ao poder opressor é enfraquecer as oprimidos mais do que já estão, ilhando-os, criando e aprofundando cisões entre eles, através de uma gama variada de métodos e processos. Desde os métodos repressivos da burocracia estatal, à sua disposição, até as formas de ação cultural por meio das quais manejam as massas populares, dando-lhes a impressão de que as ajudam.

Uma das características destas formas de ação, quase nunca percebida por profissionais sérios, mas ingênuos, que se deixam envolver, é a ênfase da visão focalista dos problemas e não na visão deles como dimensões de uma totalidade.

Quanto mais se pulverize a totalidade de uma área em “comunidades locais”, nos trabalhos de “desenvolvimento de comunidade”, sem que estas comunidades sejam estudadas como totalidades em si, que são parcialidades de outra totalidade (área, região, etc.) que, por sua vez, é parcialidade de uma totalidade maior (o país, como parcialidade da totalidade continental) tanto mais se intensifica a alienação. E, quanto mais alienados, mais fácil dividi-los e mantê-los divididos.

Estas formas focalistas de ação, intensificando o modo focalista de existência das massas oprimidas, sobretudo rurais, dificultam sua percepção critica da realidade e as mantém ilhadas da problemática dos homens oprimidos de outras áreas em relação dialética com a sua [1].


[1] É desnecessário dizer que esta critica não atinge os esforços neste setor que, numa perspectiva dialética, orientam no sentido da ação que se funda na compreensão da comunidade local como totalidade em si e parcialidade de uma totalidade maior. Atinge aqueles que não levam em conta que o desenvolvimento da comunidade local não se pode dar a não ser dentro do contexto total de que faz parte, em interação com outras parcialidades, o que implica na consciência da unidade na diversificação, da organização que canalize as forças dispersas e na consciência clara da necessidade de transformação da realidade. Tudo isto é que assusta, razoavelmente, aos opressores. Daí que estimulem todo tipo de ação em que além da visão focalista, os homens sejam “assistencializados”.

O mesmo se verifica nos chamados “treinamentos de líderes” que, embora quando realizados sem esta intenção por muitos dos que os praticam, servem, no fundo, à alienação.

O básico pressuposto desta ação já é, em si, ingênuo. Fundamenta-se pretensão de “promover” a comunidade por meio da capacitação dos líderes, como se fossem as partes que promovem o todo e não este que, promovido, promove as partes.

Na verdade, os que são considerados em nível de liderança nas comunidades, para que assim sejam tomados, necessariamente, refletem e expressam as aspirações dos indivíduos da sua comunidade.

Estão em correspondência com a forma de ser e de pensar a realidade de seus companheiros, mesmo que revelando habilidades especiais que lhes dão o status de líderes.

No momento em que, depois de retirados da comunidade, a ela voltam, com um instrumental que antes não tinham, ou usam este para melhor conduzir as consciências dominadas e imersas, ou se tornam estranhos à comunidade, ameaçando, assim, sua liderança.

Sua tendência provavelmente será, para não perderem a liderança, continuar, agora, com mais eficiência, no manejo da comunidade.

Isto não ocorre quando a ação cultural, como processo totalizado e totalizador, abarca a comunidade e não seus lideres apenas. Quando se faz através dos indivíduos como sujeitos do processo.

Neste tipo de aço se verifica o contrário. A liderança anterior ou cresce também ao nível do crescimento do todo ou é substituída pelos novos líderes que emergem, à altura da nova percepção social que se constitui.

Daí, também, que aos opressores não interesse esta forma de ação, mas a primeira, enquanto ela, mantendo a alienação, obstaculiza a emersão das consciências e a sua inserção crítica na realidade como totalidade. E, sem esta, é sempre difícil a unidade dos oprimidos como classe.

Este é outro conceito que aos opressores faz mal, ainda que, a si mesmos, se considerem como classe, não opressora, obviamente, mas “produtora”.

Não podendo negar, mesmo que o tentem, a existência das classes sociais, em relação dialética umas com as outras, em seus conflitos, falam na necessidade de compreensão, de harmonia, entre os que compram e os que são abrigados a vender o seu trabalho. [2]


[2] “Se os operários não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de seu trabalho (diz o bispo Franic Split), todas as reformas nas estruturas serão ineficazes. Inclusive, se os operários às vezes recebem um salário mais alto em algum sistema econômico, não se contentam com estes aumentos. Querem ser proprietários e não vendedores de seu trabalho. Atualmente, (continua Dom Franic), os trabalhadores estão cada vez mais conscientes de que o trabalho constitui uma parte da pessoa humana. A pessoa humana, porém, não pode ser vendida nem vender-se. Toda compra ou venda do trabalho é uma espécie de escravidão. A evolução da sociedade humana progride neste sentido e, com segurança, dentro deste sistema do qual se afirma não ser tão sensível quanto nós à, dignidade da pessoa humana, isto é, o marxismo.” “15 Obispos hablan en prol del Tercer Mundo”. CIDOC Informa, México, Doc. 67/35, 1967, págs. 1 a 11.

Harmonia, no fundo, impossível pelo antagonismo indisfarçvel que há entre uma classe e outra. [3]

[3] A propósito das classes sociais e da luta entre elas, de que tanto se acusa Marx como uma espécie de “inventor” desta luta, ver ¿, carta que escreve a J. Weydemeyer, a 1 de março de 1852, em que declara não lhe caber “o mérito de haver descoberto a existência das classes da sociedade moderna nem a luta entre elas. Muito antes que eu (comenta Marx) alguns historiadores burgueses haviam já exposto o desenvolvimento histórico desta luta de classes e alguns economistas burgueses a anatomia destas. O que acrescentei (diz ele) foi demonstrar: 1) que a existência das classes vai unida a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura não é, por si, mais que o trânsito até a abolição de todas as classes, para uma sociedade sem classes.” Marx e Enge ls – Obras Escogidas, Moscou, Editorial Progresso, 1966, vol. II, p. 456.

Pregam a harmonia de classes como se estas fossem aglomerados fortuitos de indivíduos que olhassem curiosos, uma vitrina numa tarde de domingo.

A harmonia viável e constatada só pode ser a dos opressores entre si. Estes, mesmo divergentes e, até em certas ocasiões, em luta por interesses de grupos, se unificam, imediatamente, ante uma ameaça à classe.

Da mesma maneira, harmonia do outro polo só é possível entre seus membros na busca de sua libertação. Só em casos excepcionais, não só é possível, mas até necessária, a harmonia de ambos para, passada a emergência que os uniu, voltarem à contradição que os delimita e que jamais desapareceu na emergência desta união.

A necessidade de dividir para facilitar a manutenção do estado opressor se manifesta em todas as ações da classe dominadora. Sua interferência nos sindicatos, favorecendo a certos “representantes” da classe dominada que, no fundo, são seus representantes, e não de seus companheiros; a “promoção” de indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam significa ameaça e que, “promovidos”, se tornam “amaciados"; a distribuição de benesses para uns e de dureza para outros, tudo são formas de dividir para manter a "ordem” que lhes interessa.

Formas de ação que incidem, direta ou indiretamente, sobre um dos pontos débeis dos oprimidos: a sua insegurança vital que, por sua vez, já é fruto da realidade opressora em que se constituem.

Inseguros na sua dualidade de seres “hospedeiros” do opressor, de um lado, rechaçando-o; de outro, atraídos por ele, em certo momento da confrontação entre ambos, é fácil àquele obter resultados positivos de sua aço divisória.

Mesmo porque os oprimidos sabem, por experiência, o quanto lhes custa não aceitarem o “convite” que recebem para evitar que se unam entre si. A perda do emprego e o seu nome numa “lista negra”, que significa portas que se fecham a eles para novos empregos é o mínimo que lhes pode suceder.

A sua insegurança vital, por isto mesmo, se encontra diretamente ligada à escravização de seu trabalho que implica, realmente, na escravização de sua pessoa, como sublinhou o bispo Split, anteriormente citado.

É que, somente na medida em que os homens criam o seu mundo, que é mundo humano, e o criam com seu trabalho transformador – se realizam. A realização dos homens, enquanto homens, está, pois, na realização deste mundo. Desta maneira, se seu estar no mundo do trabalho é um estar em dependência total, em insegurança, em ameaça permanente, enquanto seu trabalho não lhe pertence, não podem realizar-se. O trabalho não livre deixa de ser um quefazer realizador de sua pessoa, para ser um meio eficaz de sua “reificação”.

Toda união dos oprimidos entre si, que já, sendo ação, aponta outras ações, implica, cedo ou tarde, em que percebendo eles o seu estado de despersonalização, descubram que, divididos, serão sempre presas fáceis do dirigismo e da dominação.

Unificados e organizados [4], porém, farão de sua debilidade força transformadora, com que poderão re-criar o mundo, tornando-o mais humano.

[4] Aos camponeses, por isto mesmo, é indispensável mantê-los ilhados dos operários urbanos, como estes e aqueles dos estudantes que, não chegando a constituir, sociologicamente, uma classe se fazem, ao aderirem ao povo, um perigo pelo seu testemunho de rebeldia. É preciso, então, fazer ver às classes populares que os estudantes são irresponsáveis e perturbadores da "ordem". Que o seu testemunho é falso, pelo fato mesmo de que, como estudantes, deviam estudar, como cabe aos operários das fábricas e aos camponeses trabalhar para o “progresso da nação".

O mundo mais humano de suas justas aspirações, contudo, é a contradição antagônica do “mundo humano” dos opressores – mundo que possuem com direito exclusivo – e em que pretendem a impossível harmonia entre eles, que “coisificam,” e os oprimidos, que são “coisificados”.

Como antagônicos, o que serve a uns, necessariamente des-serve aos outros.

Dividir para manter o status quo se impõe, pois, como fundamental objetivo da teoria da aço dominadora, antidialógico.

Como auxiliar desta aço divisória, encontramos nela uma certa conotação messiânica, através da qual os dominadores pretendem aparecer como salvadores dos homens a quem desumanizam.

No fundo, porém, o messianismo contido na sua ação não pode esconder o seu intento. O que eles querem é salvar-se a si mesmos. É salvar sua riqueza, seu poder, seu estilo de vida, com que esmagam aos demais.

O seu equivoco está em que ninguém se salva sozinho – qualquer que seja o plano em que se encare a salvação – ou como classe que oprime, mas com os oprimidos, pois estar contra eles é o próprio da opressão.

Numa psicanálise da ação opressora talvez se pudesse descobrir, no que chamamos, no primeiro capítulo, de falsa generosidade do opressor, uma das dimensões de seu sentimento de culpa. Com esta generosidade falsa, além de estar pretendendo a manutenção de uma ordem injusta e necrófila, estará querendo "comprar” a sua paz. Acontece que paz não se compra, se vive no ato realmente solidário, amoroso, e este não pode ser assumido, encarnada, na opressão.

Por isto mesmo é que este messianismo existente na ação antidialógica vai reforçar a primeira característica desta ação – o sentido da conquista.

Na medida em que a divisão das massas oprimidas é necessária à manutenção do status quo, portanto à preservação do poder dos dominadores, urge que os oprimidos não percebam claramente este jogo.

Neste sentido, mais uma vez é imperiosa a conquista para que os oprimidos realmente se convençam de que estão sendo defendidos. Defendidos contra a ação demoníaca de “marginais desordeiros”, “inimigos de Deus”, pois que assim são chamados os homens que viveram e vivem, arriscadamente, a busca valente da libertação dos homens.

Desta maneira, para dividir, os necrófilos se nomeiam a si mesmos biófilos e aos biófilos, de necrófilos. A história, contudo, se encarrega sempre de refazer estas “nomeações”.

Hoje, apesar de a alienação brasileira continuar chamando o Tiradentes de inconfidente e ao movimento libertador que encarnou, de Inconfidência, o herói nacional não é o que o chamou de bandido e o mandou enforcar e esquartejar, e espalhar pedaços de seu corpo sangrando pelas vilas assustadas, como exemplo. O herói é ele. A história rasgou o “título” que lhe deram e reconheceu o seu gesto.

Os heróis são exatamente os que ontem buscavam a união para a libertação e não os que, como seu poder, pretendiam dividir para reinar.



continua página 083...



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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
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Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
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Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


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