Diante da Dor dos Outros
Mais perturbadora é a oportunidade de olhar pessoas que sabem ter sido condenadas à morte: o arquivo de 6 mil fotos tiradas entre 1975 e 1979, numa prisão secreta em uma antiga escola secundária em Tuol Sleng, subúrbio de Pnhom Penh, o local de execução de mais de 14 mil cambojanos acusados de ser ou “intelectuais” ou “contrarrevolucionários” — e toda a documentação dessa atrocidade representa uma cortesia dos funcionários encarregados dos registros do Khmer Vermelho, que fizeram todos eles se sentar um instante para tirar uma foto antes de serem executados.(1) Uma seleção dessas fotos num livro intitulado Os campos de morte permite, décadas depois, olhar de frente para os rostos que olham para a câmera — portanto, que olham para nós. O soldado republicano espanhol acabou de morrer, se acreditarmos no que declara aquela foto, tirada por Capa a certa distância do seu tema: tudo o que vemos é uma figura granulada, um corpo e uma cabeça, uma energia, que dá uma guinada para longe da câmera na hora em que cai. Aqueles homens e mulheres cambojanos de todas as idades, entre os quais muitas crianças, fotografados a poucos centímetros de distância, em geral da cintura para cima, estão para sempre — como na pintura O esfolamento de Mársias, feita por Ticiano, na qual a faca de Apolo está eternamente prestes a descer — olhando para a morte, para sempre prestes a ser assassinados, para sempre injustiçados. E o espectador se encontra na mesma posição que o funcionário atrás da câmera; a experiência é de dar náuseas. Conhece-se o nome do fotógrafo da prisão — Nhem Ein — e ele pode ser citado. As pessoas que ele fotografou, com seus rostos aturdidos, com seus torsos macilentos e a etiqueta com o número de registro presa por um alfinete no alto da camisa, permanecem como uma massa: vítimas anônimas.
(1) Fotografar presos políticos e supostos contrarrevolucionários pouco antes de sua execução também foi uma rotina na União Soviética, durante as décadas de 1930 e 1940, como revelou uma pesquisa recente nos arquivos da nkvd na região do Báltico e na Ucrânia, bem como nos arquivos centrais da Lubianka.
E, mesmo quando têm um nome, é improvável que sejam conhecidas para “nós”. Quando Woolf observa que uma das fotos que recebeu mostra um cadáver de um homem ou de uma mulher, tão mutilado que poderia muito bem ser o cadáver de um porco, sua ideia é que a escala do morticínio na guerra destrói aquilo que identifica as pessoas como indivíduos, e mesmo como seres humanos. Isso, está claro, é como a guerra parece, quando vista à distância, como uma imagem.
Vítimas, parentes angustiados, consumidores de notícias — todos possuem sua própria proximidade ou distância da guerra. As representações mais francas da guerra, e de corpos feridos por calamidades, são de pessoas que aparentam ser mais estrangeiras e, por conseguinte, pessoas que têm menos possibilidade de ser conhecidas. Quando se trata de pessoas mais próximas da sua terra, cabe ao fotógrafo mostrar-se mais discreto.
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
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