sábado, 19 de março de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.2) - ... Os únicos parentes que souberam

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(4.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío






continuando...


Os únicos parentes que souberam foram José Arcadio e Rebeca, com quem Arcadio mantinha então relações íntimas, baseadas não tanto no parentesco quanto na cumplicidade. José Arcadio tinha dobrado a cerviz ao jugo matrimonial. O temperamento firme de Rebeca, a voracidade do seu ventre, a sua tenaz ambição absorveram a descomunal energia do marido, que de vagabundo e mulherengo se converteu num enorme animal de trabalho. Tinham uma casa limpa e sempre em ordem. Rebeca a abria de par em par ao amanhecer e o vento das tumbas entrava pelas janelas e saía pelas portas do quintal e deixava as paredes caiadas e os móveis curtidos pelo salitre dos mortos. A fome de terra, o cloc cloc dos ossos de seus pais, a impaciência do seu sangue diante da passividade de Pietro Crespi, estavam relegados ao vão da memória. O dia inteiro bordava junto à janela, alheia ao desastre da guerra, até que os potes de cerâmica começavam a vibrar no aparador e ela se levantava para esquentar a comida, muito antes de que aparecessem os esquálidos cães de caça e depois o colosso de polainas e esporas, com a espingarda de dois canos, que às vezes trazia um veado ao ombro e quase sempre uma fileira de coelhos ou de patos selvagens. Uma tarde, no princípio do seu governo, Arcadio foi visitá-los de um modo intempestivo. Não o viam desde que abandonaram a casa, mas se mostrou tão carinhoso e familiar que o convidaram a compartilhar do ensopado. Só quando tomavam o café foi que Arcadio revelou o motivo da sua visita: tinha recebido uma denúncia contra José Arcadio. Dizia-se que começara arando o seu quintal e tinha continuado direto pelas terras contíguas, derrubando cercas e arrasando ranchos com os seus bois, até se apoderar pela força das melhores propriedades das redondezas. Aos camponeses que não tinha espoliado, porque as suas terras não lhe interessavam, impôs uma contribuição que cobrava todos os sábados com os buldogues e a espingarda de dois canos. Não negou. Fundamentava o seu direito no fato de que as terras usurpadas tinham sido distribuídas por José Arcadio Buendía nos tempos da fundação, e acreditava possível provar que seu pai já estava louco nesta época, uma vez que dispôs de um patrimônio que na realidade pertencia à família. Era uma alegação desnecessária, porque Arcadio não tinha ido lá para fazer justiça. Ofereceu-se simplesmente para criar um escritório de registros de propriedade para que José Arcadio legalizasse os títulos da terra usurpada, com a condição de que delegasse ao governo local o direito de cobrar as contribuições. Puseram-se de acordo. Anos depois, quando o Coronel Aureliano Buendía examinou os títulos de propriedade, observou que estavam registradas em nome de seu irmão todas as terras que se divisavam desde a colina do seu quintal até o horizonte, inclusive o cemitério, e que, nos onze meses do seu mandato, Arcadio tinha carregado não só com o dinheiro das contribuições, mas também com o que cobrava do povo pelo direito de enterrar os mortos na propriedade de José Arcadio.

Úrsula demorou vários meses para saber o que já era do domínio público, porque as pessoas lhe ocultavam o fato, para não aumentar o seu sofrimento. Começou a suspeitar. “Arcadio está construindo uma casa”, confiou com fingido orgulho ao seu marido, enquanto tentava meter-lhe na boca uma colherada de xarope de flor de cuité. Entretanto, suspirou involuntariamente: “Não sei por que, mas isso me cheira mal.”

Mais tarde, quando soube que Arcadio não só já havia terminado a casa, como também tinha encomendado uma mobília vienense, confirmou a suspeita de que estava dispondo dos fundos públicos. “Você é a vergonha da família”, gritou-lhe um domingo depois da missa, quando o viu na casa nova, jogando baralho com os seus oficiais. Arcadio não prestou a mínima atenção. Só então foi que Úrsula soube que tinha uma filha de seis meses, e que Santa Sofía de la Piedad, com quem vivia sem se casar, estava outra vez grávida. Resolveu escrever ao Coronel Aureliano Buendía, em qualquer lugar onde se encontrasse, para pô-lo a par da situação. Mas os acontecimentos que se precipitaram naqueles dias não só impediram os seus propósitos como também fizeram com que se arrependesse de havê-los concebido. A guerra, que até então não tinha sido mais que uma palavra para designar uma circunstância vaga e remota, concretizou-se numa realidade dramática. No fim de fevereiro, chegou a Macondo uma anciã de aspecto cinzento, montada num burro carregado de vassouras. Parecia tão inofensiva que as patrulhas de vigilância deixaram-na passar sem perguntas, como mais um dos vendedores que frequentemente chegavam dos povoados do pantanal. Foi diretamente ao quartel. Arcadio a recebeu no local onde antes esteve a sala de aula, e que então estava transformada numa espécie de acampamento de retaguarda, com redes enroladas e penduradas nas argolas e esteiras amontoadas nos cantos, e fuzis e carabinas e até espingardas de caça jogados pelo chão. A anciã se endireitou numa saudação militar antes de se identificar:

— Sou o Coronel Gregorio Stevenson.

Trazia más notícias. Os últimos focos da resistência liberal, conforme disse, estavam sendo exterminados. O Coronel Aureliano Buendía, a quem tinha deixado batendo em retirada pelos lados de Riohacha, encarregara-o da missão de falar com Arcadio. Deveria entregar a praça sem resistência, impondo como condição que se respeitasse sob palavra de honra a vida e as propriedades dos liberais. Arcadio examinou com um olhar de comiseração aquele estranho mensageiro que se poderia confundir com uma vovó fugitiva.

— O senhor, evidentemente, traz algum papel escrito — disse.

— Evidentemente — respondeu o emissário — não trago. É fácil entender que, nas atuais circunstâncias, ninguém vai carregar nada de comprometedor. Enquanto falava, tirou a combinação e pôs na mesa um peixinho de ouro. “Acho que isto é suficiente”, disse. Arcadio comprovou que realmente era um dos peixinhos feitos pelo Coronel Aureliano Buendía. Mas alguém podia tê-lo comprado antes da guerra, ou tê-lo roubado, e não tinha portanto nenhum mérito como salvo-conduto. O mensageiro chegou ao extremo de violar um segredo de guerra para fazê-lo crer na sua identidade. Revelou que ia em missão para Curaçao, onde esperava recrutar exilados de todo o Caribe e adquirir armas e petrechos suficientes para tentar um desembarque no fim do ano. Confiando nesse plano, o Coronel Aureliano Buendía não era partidário de que naquele momento se fizessem sacrifícios inúteis. Mas Arcadio foi inflexível. Fez encarcerar o mensageiro, enquanto comprovava a sua identidade, e resolveu defender a praça até a morte.

Não precisou esperar muito tempo. As notícias do fracasso liberal eram cada vez mais concretas. No fim de março, numa madrugada de chuvas prematuras, a calma tensa das semanas anteriores resolveu-se abruptamente com um desesperado toque de cometa, seguido de um tiro de canhão que destruiu a torre do templo. Realmente, a determinação de resistência de Arcadio era uma loucura. Não dispunha de mais de cinquenta homens mal armados, com uma munição máxima de vinte cartuchos cada um. Mas entre eles, os seus antigos alunos, inflamados por proclamações altissonantes, estavam decididos a sacrificar a pele por uma causa perdida. No meio do tropel de botas, de ordens contraditórias, de tiros de canhão que faziam tremer a terra, de disparos a esmo e de toques de cometa sem sentido, o suposto Coronel Stevenson conseguiu falar com Arcadio. “Poupe-me a indignidade de morrer no tronco com estes trapos de mulher”, disse. “Se eu tenho de morrer, que seja lutando.” Conseguiu convencê-lo. Arcadio ordenou que lhe entregassem uma arma com vinte cartuchos, e o deixaram com cinco homens defendendo o quartel, enquanto ele ia, com o seu estado-maior, colocar-se à frente da resistência. Não chegou a alcançar a estrada do pantanal. As barricadas tinham sido espedaçadas e os defensores se batiam a descoberto nas ruas, primeiro até onde lhes chegava a munição dos fuzis, e depois com pistolas contra fuzis e por último, no corpo-a-corpo. Diante da iminência da derrota, algumas mulheres se atiraram à rua armadas de paus e facas de cozinha. Naquela confusão, Arcadio encontrou Amaranta, que o andava procurando como uma louca, de camisola, com duas velhas pistolas de José Arcadio Buendía. Entregou o seu fuzil a um oficial que tinha sido desarmado na refrega, e fugiu com Amaranta por uma rua transversal, para levá-la em casa. Úrsula estava na porta, esperando, indiferente às descargas que tinham aberto um buraco na fachada da casa vizinha. A chuva cedia, mas as ruas estavam escorregadias e moles como sabão derretido, e as pessoas tinham que adivinhar as distâncias no escuro. Arcadio largou Amaranta com Úrsula e tentou enfrentar dois soldados que soltaram uma descarga cega da esquina. As velhas pistolas guardadas muitos anos no armário não funcionaram. Protegendo Arcadio com o corpo, Úrsula tentou arrastá-lo até em casa.

— Venha, pelo amor de Deus — gritava. — Chega de maluquice!

Os soldados apontaram para eles.

— Solte esse homem, senhora — gritou um deles — ou não nos responsabilizamos!

Arcadio empurrou Úrsula para dentro de casa e se entregou. Pouco depois cessaram os disparos e começaram a repicar os sinos. A resistência tinha sido aniquilada em menos de meia hora. Nem um só dos homens de Arcadio sobreviveu ao assalto, mas antes de morrer levaram com eles trezentos soldados. O último baluarte foi o quartel. Antes de ser atacado, o suposto Coronel Gregorio Stevenson pôs em liberdade os presos e ordenou aos seus homens que saíssem para brigar na rua. A extraordinária mobilidade e a pontaria certeira com que disparou os seus vinte cartuchos pelas diferentes janelas deram a impressão de que o quartel estava bem defendido e os atacantes o espedaçaram a tiros de canhão. O capitão que dirigiu a operação se assombrou ao encontrar os escombros desertos e apenas um homem de cuecas, morto, com o fuzil descarregado, ainda agarrado por um braço que tinha sido arrancado do ombro. Tinha uma frondosa cabeleira de mulher enrolada na nuca com um pente, e no pescoço um escapulário com um peixinho de ouro. Ao virá-lo com a ponta da bota para iluminar-lhe a cara, o capitão ficou perplexo. “Merda”, exclamou. Outros oficiais se aproximaram.

— Vejam onde veio aparecer este sujeito — disse-lhes o capitão. — É Gregorio Stevenson.

Ao amanhecer, depois de um conselho de guerra sumário, Arcadio foi fuzilado contra o muro do cemitério. Nas duas últimas horas da sua vida, não conseguiu compreender por que havia desaparecido o medo que o atormentara desde a infância. Impassível, sem se preocupar sequer em demonstrar a sua recente coragem, escutou as intermináveis culpas da acusação. Pensava em Úrsula, que a essa hora devia estar debaixo do castanheiro tomando café com José Arcadio Buendía. Pensava na sua filha de oito meses, que ainda não tinha nome, e no que ia nascer em agosto. Pensava em Santa Sofía de la Piedad, a quem na noite anterior deixara salgando um veado para o almoço de sábado, e sentiu saudade do seu cabelo caído nos ombros e das suas pestanas que pareciam artificiais. Pensava na sua gente, sem sentimentalismos, num severo ajuste de contas com a vida, começando a compreender quanto amava na realidade as pessoas que mais odiara. O presidente do Conselho de Guerra iniciou o seu discurso final, antes que Arcadio se desse conta de que haviam transcorrido duas horas. “Ainda que as culpas comprovadas não apresentassem méritos mais que suficientes”, dizia o presidente, “a temeridade irresponsável e criminosa com que o acusado empurrou os seus subordinados para uma morte inútil bastaria para fazê-lo merecer a pena máxima.” Na escola arrebentada onde experimentou pela primeira vez a segurança do poder, a poucos metros do quarto onde conheceu a incerteza do amor, Arcadio achou ridículo o formalismo da morte. Realmente não se importava com a morte, e sim com a vida, por isso a sensação que experimentou quando pronunciaram a sentença não foi uma sensação de medo, mas de nostalgia. Não falou enquanto não lhe perguntaram qual era a sua última vontade.

— Digam à minha mulher — respondeu com voz bem timbrada — que ponha na menina o nome de Úrsula. — Fez uma pausa e confirmou: — Úrsula, como a avó. E digam-lhe também que se o outro nascer homem, que lhe ponham o nome de José Arcadio, mas não pelo tio, e sim pelo avô.

Antes que o levassem ao paredão, o Padre Nicanor tentou assisti-lo. “Não tenho nada de que me arrepender”, disse Arcadio, e se pôs às ordens do pelotão depois de tomar uma xícara de café preto. O chefe do pelotão, especialista em execuções sumárias, tinha um nome que era muito mais do que uma coincidência: Capitão Roque Carnicero. A caminho do cemitério, sob uma chuvinha insistente, Arcadio observou que no horizonte despontava uma quarta-feira radiante. A tristeza se esvanecia com a névoa e deixava no seu lugar uma imensa curiosidade. Só quando lhe ordenaram ficar de costas para o muro foi que Arcadio viu Rebeca, com o cabelo molhado e um vestido de flores rosadas, abrindo a casa de par em par.

Fez um esforço para que o reconhecesse. Com efeito, Rebeca olhou casualmente para o muro e ficou paralisada de susto, só podendo reagir para fazer a Arcadio um sinal de adeus com a mão. Arcadio respondeu da mesma forma. Nesse instante, apontaram para ele as bocas fumegantes dos fuzis, e ele ouviu letra por letra as encíclicas cantadas de Melquíades, e sentiu os passos perdidos de Santa Sofía de la Piedad, virgem, na sala de aula, e experimentou no nariz a mesma dureza de gelo que lhe havia chamado a atenção nas fossas nasais do cadáver de Remedios. “Ah, caralho!”, chegou a pensar, “me esqueci de dizer que se nascesse mulher pusessem Remedios.”

Então, numa só pontada dilacerante, voltou a sentir todo o terror que o atormentara na vida. O capitão deu a ordem de fogo. Arcadio mal teve tempo de estufar o peito e levantar a cabeça, sem entender de onde fluía o líquido ardente que lhe queimava as coxas.

— Cornos! — gritou. — Viva o Partido Liberal!


continua página 73...


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