segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Histórias de avoinha: Vigiar e prender é a minha tarefa, a sua é vigiar e rezar

Ensaio 62B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar



Pensavento, aquela voz do canalha não me sai da memória, o governador presidente parou as palavras que saiam da sua boca enfurecida na minha direção. Sabia que tomar a decisão que fosse enfezado como estava só iria causar mais aborrecimento que arrumação. Olhou para lugar nenhum, gostava de fazer esse olhar que o tornava distante. Impenetrável. Difícil. Esquivo. Depois retornava ao convívio de todos. Perdido do sono. Quando perdemos o sono, onde será que ele fica perdido? E o cachorrinho vai latir em minha janela? E a janela? O que faço com ela? Estava ali. Fácil. Descomplicado. Tratável. Aproveitava para mostrar suas imitações teatrais baratas dos afetos ou desafetos. Levou a mão ao peito e principiou seu enredo teatral, Em nome do Pai Filho Espírito Santo e Amém, os braços abertos em cruz, o olhar piedoso, depois imitando um bode, O sinhô Padre desconfia de algo, fez a pergunta e bocejou, Não é desconfiança, sinhô Conde, a imitação do padre continuava perfeita, Então, é o quê?

a paródia do bode não estava tão boa. A falsificação do padre lhe dava mais prazer, É assombroso, meu filho.

a assembléia ficou em silêncio depois da pergunta feita e o padre arrependido do falado, tem vez que fazer que não é o que é ou o que é fazer que não é, não custa mais que uma outra encenação. Uma desconversa que nunca chega a responder o que se pensa, resposta que se responde sem pensar na pergunta. A resposta sempre esteve na ponta da língua. E a faca na mão. O chefe da polícia ainda com o sangue do bode secando, a mancha do enuviamento fino e duro da casca vermelha, não parecia dar importância para as marcas da degola. Ele preferiu interrogar o padre sem lavar as mãos, o cheiro do sangue era percebível, se gostava ou não, não dava para saber, O que é que lhe assombra, sinhô Padre?

A hipocrisia, foi a sua primeira resposta, não precisou respirar nem fazer o sinal da cruz, a hipocrisia a serviço da roubalheira. A Villa precisa saber que são anunciadas doações demais e feitas doações de bem menos do que foi alardeado. Os roubos estão cada vez maiores. Isso é a corrupção do declarado que jamais foi dado, fez outra travagem das suas denúncias, não parecia que lhe davam mais importância que o chefe perjuro

O que o sinhô Padre quer dizer com isto?

os bodes aumentaram o silêncio e pude ouvir os latidos do cãozinho, lá fora. A janela fechada. Um desabafava, o outro latia. A ladainha do tamanho dos donativos, Exatamente isso... das cem tábuas que são anunciadas, só vinte tábuas fazem sua aparição. O milagre da diminuição. Metem a mão na paz da cruz. Poderíamos concluir a construção da nossa igreja em dois ou três ou quatro anos, no máximo, com os donativos anunciados de boca cheia e pomposa.

Isso é uma boa notícia!

o padre ergueu as mãos, depois se ergueu todo. Até que a voz também subiu, estava notório e visto que ele era muita tristeza e desanimação com a cegueira inescrupulosa que o escutava, mas não queria ouvir. Todos ali sabiam do assunto tratado, ele continuava pasmado com o cinismo e a hipocrisia, Boa notícia, mas que boa notícia é essa? O que é anunciado é muito menos do que é doado!

não foi preciso pedir silêncio, todos se calaram mais um pouco. Um ataque direto requer alguém descarado para fazer o padre continuar suas queixas sem nada temer das queixas, um tartufo

O que o sinhô Padre quer dizer com isto?

os bodes aumentaram a mudez, continuavam colados ao tamanho dos donativos que encurtavam depois de anunciados. Não é fácil desmentir a mentira feita que todos sabem ser mentira, ela desqualifica a realidade. E o jeito mais usado pelos tartufos para garantirem que a mentira é verdade é aumentarem a mentira, o segredo é empilhar as mentiras, Sinhô Conde da Hora é bode novo e não deve saber das outras reuniões, ou sabe?

Outras?

Foram feitas para desmaranhar essa situação embaraçosa.

Mas que situação embaraçosa, sinhô Padre?

a pergunta do bode fresco, recém chegado, me faz lembrar um cachorrinho que late para minha janela toda vez que a abro ou fecho. Todos os dias. Quando abro ou fecho a janela ele late. Ele não foge, corre até a janela e late. Ele não lateja para mim ou por minha causa. Não sabe que existo, talvez saiba, mas não importa quem abre ou fecha, importa a janela. Para o cachorrinho é somente a janela que existe, sempre no mesmo lugar. Um dia, é bem provável, ele canse de latir para minha janela, ou quem sabe, eu me aborreça com os latidos do cachorrinho e pare de abrir minha janela. Dane-se o cachorrinho, a luz e o calor do dia. O que ele fará? Talvez até morra esperando a janela agitar-se sem nunca mais sair do seu lugar de vigília ou esqueça da janela ou esqueça de latir. Ou procure outra janela. É fácil vigiar. De qualquer maneira, o padre parece que não se cansou da sua janela nem do cachorrinho, Poderíamos concluir a construção da nossa igreja em cinco anos, no máximo.

Isso continua sendo uma boa notícia, foi o murmúrio dos cachorrinhos para a janela recém alguma coisa, qualquer bosta abrindo ou fechando

Mas teremos um grande atraso na sua conclusão, ouvi alguém dizer que os cachorrinhos latem porque têm medo de janelas que abrem ou fecham um lugar que se repete, um novo começo igual a cada vez, O que escondes, Janela? por que te abres e depois te escondes? o meu mundo é do teu tamanho, Janela? au au au

E qual é o tamanho deste atraso?

o padre abriu a janela, queria provocar os cachorrinhos, Uns cem anos! eles se lançaram em carga de cavalaria num ataque irado, o seu devotamento ao ataque à janela continuava intocado

Quanto tempo?

Cem anos!

todos latiam opiniões, sugestões, acusações. Todos estavam ao gosto do tartufo, descontrolados. Acreditavam no próprio fingimento. Depois de alguns anos, o cachorrinho já estará velhinho, mas não estará sozinho. Outro cachorrinho o acompanhará nos ataques à janela. Imitará o ancião latindo. Em nome do que continuará latindo? O chefe perjuro lembrou que o seu serviço não tinha mais recursos que o padre, Vigiar e prender é a minha tarefa, a sua é vigiar e rezar, realmente se espera muito desses dois serviços, mas não queremos dispor de mais recursos. Eu, no meu caso, já estou aceitando negro forro nas fileiras da polícia. No seu caso, o uso das mãos dos negros escravos não aparece nos custos.

São tempos difíceis, Perjuro.

Eu sei, sinhô Padre. Mas, aqui na Villa, parece que os tempos nunca melhoram. São sempre difícieis, já estou conformado e embrulhado.

parei com as memórias do ocorrido e perguntei ao governador presidente se ele lembrava das palavras do chefe da polícia, proferidas na frente dos bodes e do chefe da igreja, junto deixei minha recomendação, Sua Excelência precisa manter esse Perjuro debaixo do seu controle absoluto.

Não se preocupe, Pensavento. O Chefe Perjuro sabe das palavras que pode fazer uso e o que não pode ser escrito, lembrou-se da pergunta que o perjuro fez à queima-roupa para o safado do conde, Ele foi direto, lembra?

O sinhô Conde tem notícia do desembarque das tábuas e das tipas que foi anunciado?

o bode recém batizado não mostrou se acusou o golpe, ele é bom no próprio conserto. De qualquer maneira, o que se viu é que foi rápido na resposta, Já foram entregues. O sinhô Padre pode confirmar, subiu o tamanho da voz para ficar acima dos latidos na janela, Agora, é só esperar o bom uso!

O melhor dos usos será dado, respondeu ou poderia ter respondido o padre, não lembro com certeza, têm coisas que a memória inventa para ter mais colorido nas lembranças. Nada tem garantia. A memória pode ser um sonho ou um marasmo cruel, a nossa vigília da punição e dos resmungos da súplica, dois contratos do medo sustentando um equilíbrio insano

E o noticiarista irá se encarregar de semear a boa notícia, sua Excelência tem lembrança das suas palavras?

relembrei ao governador presidente que o bode era perigoso, mas devíamos ter cuidado e vigília com o perjuro e o noticiarista. O governador presidente me fez um aceno de concordância, mas tratou de acalmar meus cuidados, Não há razão para ter medo do noticiarista, nosso anunciador das ideias da Irmandade. Pregador entreguista. Alcoviteiro. Cara de paisagem. Mas que tem lado, o nosso. O filho-da-puta sabe o que mais lhe convém e os perigos que não tem cabimento assumir. Um cretino com muitos interesses esparramados que não quer se preocupar com as despesas de aluguel, comida, ou a verdade dos fatos. Quer criar o jornal o Realista, mas antes precisa ajustar suas contas com as doações da Irmandade. O grosso do seu ajutório. Depois virá pedir o meu apoio. Mas temos um problema, ele diz não gostar de escrever. Acho que não sabe escrever. Não sei como vai solucionar esse problema de não gostar de escrever ou de não saber escrever. Isso é com ele. Para contar histórias ele só precisa ser abastecido com run, cerveja ou vinho. A língua fica solta. E para escrever basta papel e tinta.

Sua Excelência não vê necessidade da Villa ter um jornal?

Sim, Pensavento. Eu sei que não podemos depender apenas da memória e da língua do Noticiarista.

Sua Excelência poderia comprar alguma tipografia antiga. Faça uma subscrição pública. E com um impressor e tipógrafo poderíamos ter na Villa um jornal a favor do seu governo. Nada muito dispendioso. Um formato reduzido com assuntos da vida corriqueira misturado com as publicações oficiais.

E depois?

De um jeito ou de outro os periódicos partidários irão surgir, saia na frente. Ou eles irão nos fazer sair da frente.

E o Noticiarista?

O que tem ele?

Chegou na Villa graças a minha interferência. Foi embarcado da capital do Império em navio militar até as terras despovoadas do sul. Um desterro fraterno. Um pagamento de cortesia depois das liberdades de cama que tive com as irmãs do fugitivo. Um português que queriam enviar para o além-mar. Não queria, mas devia a mais do que podia pagar. Trouxe as irmãs sem recido de compra nem uso de dinheiro. Oferecendo favores, esquecendo deveres.

assim, iniciou-se a gestação dos jornais na villa, mas isto estava além das compreensão dos bodes, Sua Excelência pense num jornal com pequenos anúncios de compra e venda, aluguéis, achado, perdas e fugas, entradas e saídas de embarcações. E as publicações oficiais.

Vou ajuizar-me, Pensavento.



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