Parábolas
de uma Professora
iogurte
na mesa
baitasar
e paulo e marko
Alguém viu minha bolsa... acabei de comprar... meu Jesus Cristinho, me ajuda...
camila foi a única que olhou abigail com atenção e paciência, fechou seu armário e circulou o redondo dos olhos azuis ou castanhos, sei lá, mas isso não importa, rodeou com os olhos verdes o abrigo, parecia incomodada, mas gostava de servir, ajudar, mitigar, tudo em nome da paz e do sossego
Não é aquela ali? apontou para uma bolsa de couro falso, preta, com detalhes dourados, caída no chão, perdida entre sapatos de couro e lona
É! abriu o sorriso, talvez para camila, à bolsa ou a ninguém, O que vocês acham gurias, não é a minha cara? colocou a bolsa a tiracolo
olhamos descuidadas para o rosto vermelho da abigail e a bolsa falsa preta no tiracolo do colo. grande para caber tudo e não encontrar nada, abarrotada de angústia ou cheia de solidão. não agradeceu. comprou na feirinha do corredor. as mercadorias não variam muito das bolsas, blusas, roupas da intimidade: calcinha, sutiã taça, meia-taça, tomara que caia, livros didáticos, histórias infantis e a autoajuda. o pagamento com cheque pré-datado facilita a conveniência e o consumo de nós mesmas. está bem, está bem, eu sei que sou uma chata
Gurias! Hoje não tem reunião?
pronto. conseguiu a atenção das abrigadas, paramos para uma reunião que não queremos, mas parar é bom, Fica quieta, Abigail...
saio desenganada para o pátio. caminho desembrulhada das fantasias pedagógicas. olho para os lados e o vejo sentado com seu chimarrão, falamos com os olhos, Preciso fugir, sair daqui, ir além das tentativas para acalmar minha consciência, cansei das orações purgativas, ele me responde, sorrindo, A fúria do pensamento inconformado, respondo desajeitada, Não quero acomodar dores que nunca acabam, não quero calmantes para confortar a miséria e a fome que sempre existiu.
o homem dos meus olhos, me diz
Calma, professora, um pouco de água de melissa e tudo se ajeita, tenho vontade de lhe dar uma mordida, paro de respirar
É tudo premeditado, você não vê, pergunto, não me responde, seus olhos parecem que dizem outras coisas, outras vontades, Esqueci o vinho, respondo que não quero ser a sua comida, mais uma mentira. não é bem uma mentira, é quase uma indecisão. será que o meu corpo pode ser controlável? tem vezes que me acho o lugar de todas as proibições, outras quero ser a paragem de todas as solturas do atrevimento. continuo desenterrando ossos miseráveis da realidade inacabada e imperfeita que as pessoas envinagradas usam para deitar o prumo nas vontades dos mansos
a estrada se mexe sob os meus pés, eles cansam, são poucas idas e muitas voltas, tenho os pés machucados. as brincadeiras da estrada são de morrer.
a reunião não começa.
aceito outro chimarrão, a água está morna, reclamo que o gosto parece com um prato de arroz sem feijão, Vou aquecer mais água, voltei ao abrigo
Tudo bem, Samuel, é válido. Mas utópico. Exige tempo para elaborar, refletir... não temos esse tempo.
É uma grande contradição, Abigail. Pedes ações práticas dos outros, mas não queres conviver...
discursos vazios ou românticos não sobrevivem ao cotidiano que se reinventa sem limites, é preciso à práxis. abigail é reconhecida pelos seus suspiros de impaciência
Samuel, já parou para contar? É muita criança... gurias, alguém viu minha bolsa? Não é possível, perdi de novo.
É muita confusão na terça-feira, sentencia lélia, despedaçando seu bolinho de batata recheado com carne, sempre impecavelmente sóbria e séria. o cabelo channel, sem demasias no vestir ou pinturas no rosto. não se permite voos fantásticos e imaginários há muito tempo, está pronta para a parcialidade da paixão, como eu mesma sinto a necessidade da invasão desordenada, a sede do afeto ardente, descuidado e perfeito, o doce que seduz
Só na terça-feira?
essa é a cabayba, sua origem é bancária, o sarcasmo parece confirmar que continua bancária com seu iogurte de morango e granola. o que se diz dela? maluca. sinto no seu olhar o desprezo pelas ideias de todos, parece nascer todos os dias um pouquinho pior
Abigail...
viro-me na direção daquela voz inconfundível
... o coletivo não deve parar na sua desenvolução, pois a forma de existência do coletivo humano livre é o seu desenvolvimento.
é o marko, um professor recrutado entre o povo nômade invasor, como a cavalaria dos cosacos
Hahaha... o movimento coletivo deles é a destruição, uma maçã podre e tudo se perde, tive vontade de perguntar se a reunião já havia iniciado, apenas para poder sair
Abigail, e qual o exemplo que oferecemos? Parecemos predadores? Parecemos perdidas de um sentido que não seja o da sobrevivência na selva? Perdemos a poesia? Parecemos constantemente crescendo para baixo, feito pão-de-pobre?
tenho vontade de rir do olhar confuso da abigail, quase sinto dó, pão-de-pobre é mais conhecido como mandioca ou aipim. planta leitosa, rica em amido, largo emprego na alimentação, serve para farinhas de mesa, mais é bom estar atenta, existem espécies venenosas. estou rindo. sinto que estou sorrindo. isso é bom. silêncio. os chás, cafés e bolos continuam sendo engolidos
Marko...
o pequeno professor se volta na direção da camila
E o que dizer das LV?
O que é isso?
Licença Vingança são licenças que não precisamos usar, mas gozamos como desforra naqueles que se esbaldam em faltas e omissões. O coletivo da doença...
Façamos o mesmo, Camila. E aos poucos deixamos de existir, insatisfeitas. Viramos reclamações, conversas vazias de tangos e tragédias sobre o dia da aposentadoria: a inatividade será o começo da nossa vida e o chá de boldo. Esse é um bom jeito de consentir-se uma das vítimas, misericordiosa consigo mesma, pouco rigorosa no cumprimento com as obrigações.
a água ferveu, encho a térmica enquanto o marko é interrompido pela zombaria da cabayba que largou o copo com iogurte na mesa para aplaudir
Coletivo? Alguém sabe o que é um coletivo? Coletivo humano livre? Marko pega mais leve, isso tudo é um teatro.
o refúgio do abrigo já teve tardes mais tranquilas
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